Canarinho e Tiziu

Revista Siesta
SIESTA
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15 min readMay 28, 2021

Por Jotapê Jorge, para Luan Flavio Freires

Ilustração por André Silva

Absorvente íntimo, 10 reais e 40 centavos. Duas escovas de dente, 15 reais e 20 centavos. Um pacote de pão de forma, oito reais e 90 centavos. Uma caixa com 12 ovos brancos, sete reais 49 centavos. “A senhora vai querer nota fiscal paulista?”

Sem levantar os olhos da bolsa, a mulher respondeu que não.

Naquela noite, Eleutério voltou sentado no metrô. Era raro que isso acontecesse. Olhando os faróis dos carros que passavam pela Radial, pensou que a vida era boa. Difícil, dura. Às vezes estúpida. Mas boa. Chegando em casa, jantou picadinho com arroz e feijão. Era um de seus pratos preferidos. A mulher cozinhava-o com extrema delicadeza, nunca excedendo os temperos, o feijão gostoso e o arroz soltinho. Ainda antes de dormir, assistiu à novela.

A vida era boa.

Cada um de meus irmãos nasceu duma cor. Eutrópio, o mais velho, foi moreno café-com-leite. Eusmara tinha a pele quase branca, ou pelo menos assim a mãe contava, porque eu não conheci. Conheci poucos dos meus irmãos. Os pais tiveram dez filhos. Desses, uns se perderam na vida e outros morreram. Sobraram quatro: eu, Ermindo, Eustáquio e Ermenegildo. Ermindo e Estáquio eram mulatos claros, um um tico mais claro que o outro. Já Ermenegildo é pingado, bonito, como se tivesse nascido bronzeado, a pele luzindo numa cor diferente, que chama a atenção e mostra bem dentes grandes, bonitos, muito brancos. Os cabelos também são claros, claros como os da mãe. Um castanho alourado, ou loiro velho que, ajuntado aos olhos verdes, faz lembrar, de longe, um espanhol ou italiano. Um gringo perdido no centro do Brasil.

Eu sou preto. Preto escuro. Preto azul. Preto de sumir na noite. Com o cabelo em carapinha e o nariz fino, ainda em Goiás recebi o apelido de “Tiziu”. Assim me chamavam os irmãos e os amigos da escola, mas eu não ligava. Também não teria como encrencar. Ainda hoje sou miúdo. A mãe dizia que nasci mirrado, sem recheio, que em criança quase sumia nos braços do pai. Também falava que eu era curioso, que tinha “fogo no olhar para saber das coisas” e que passava horas no quintal observando as formigas. Para o pai, aquilo era coisa de gente “atrasada da cabeça”. Ralhava comigo, e quando ele ralhava, era com Ermenegildo que eu ia me abrigar.

O mano era pouco mais novo que eu, mas para mim podia ser meu irmão mais velho. Sob o sol, com os cabelos louros, ele aparecia como um super-herói de desenho animado. Ajudava que não se curvasse diante dos maus bofes do pai. Era respondão, e ser o preferido da mãe garantia dose extra de proteção.

Dengoso, quando criança o Canarinho vivia agarrado às saias dela, não deixava que trabalhasse na cozinha e na rocinha do chuchu, do quiabo, do maxixe e da mandioca. Foi dona Marieta quem apelidou assim. “Canarinho”. Dizia toda orgulhosa “meu Canarinho”, enquanto penteava com os dedos os seus cachos grossos. Ao filho favorito, e só para ele, talhava cavalinhos de madeira e bonequinhos de sabugo de milho, que depois a gente roubava.

“Você tem que estudar”, ela dizia. “Que de tabacudo e rude já basta eu e teu pai.” Era gente simples, de verdade. O pai, uma figura. Preto, mas não como eu. Era de um preto mais claro, misturado. Também era enorme. Tinha mais de dois metros de altura, bem socados. Um bloco de homem, como se feito de mármore escuro ou ébano. Apesar da pobreza, andava empertigado. “Príncipe negro”, brincavam os vizinhos. De manhãzinha comia pirão, café com rapadura, ovos de pata. Na boia-fria, fosse qual fosse, tomava um trago de cachaça. Casou com a mainha quando ela tinha 15 e ele estava pra fazer trinta. Ela branca, ele mulato. Trabalhamos todos desde cedo, no cristal de quartzo e na roça, onde o sol roça a pele e faz cair da testa o suor que Deus mandou ao homem. “Gandaieiro não vai pra frente”, o pai rosnava, e ai de quem o arremedasse ou fizesse corpo mole. O velho pegava a enxada e capinava meio lote, para dar o exemplo.

Seu Ercílio tinha seus sonhos. Era tocador. Animava as festas lá no arraial, os casais no forró juntinho, e não raro diziam para ele, anos depois, “fulano nasceu por causa do senhor!” Como fôssemos crescendo, foi nos ensinando. Em meio às brincadeiras de luta entre irmãos, onde imitávamos Van Damme e Jackie Chan, nos arranjou uma violinha. Nesses momentos, em que eu e Ermenegildo fazíamos dupla sertaneja, imitando Leandro e Leonardo, dizia que íamos fazer sucesso. “Já têm até nome, é o ‘Canarinho e Tiziu’.”

Todo dia de São Jorge, seu Ercílio fazia uma cabritada, soltava fogos em homenagem ao santo, que era o da sua devoção. Tocava e nos botava para tocar. Ermenegildo era bom aluno, não se importava com o professor rígido. Dedicava-se, levasse o cascudo ou a carraspana que fosse. Logo estava tocando tão bem quanto ele. O pai não se enciumava. Achava era graça do menino que dedilhava Stairway to Heaven.

Assim, aprendemos.

Dizem que foi o diabo quem ensinou ao homem as coisas da vida. Depois, se arrependeu. Às vezes acho que o pai se arrependeu de nos ensinar. Quando não estava, o Canarinho subia num banco para pegar escondido a viola. Brincadeira arriscada! O pai tinha um zelo tremendo naquele violão, que escondia dentro de uma caixa de couro lustroso. Nos pegou apenas uma vez, quando apanhamos os dois de rabo de tatu. Para o Ermenegildo, valeu a pena. O Canarinho era assim, quando metia uma coisa na cabeça, era difícil de tirar até que conseguisse. Brigou com o pai e nunca mais falou com ele. Quando foi embora pra Brasília, saiu amuado. Abraçou a mãe rápido e subiu na moto que o levaria à rodoviária.

No dia em que sumiu, Dorica me ligou. Coisa rara. Ela não me incomodava no serviço. Sabia da importância dessas coisas, das dificuldades que passamos, das brigas que tive, da carreira frustrada pela gravidez.

Naquele dia, o celular vibrou três vezes.

Num alarido estridente, a campainha tocou. Dora, a mulher de Eleutério, enxugou as mãos no avental e atendeu desinteressada. A casa onde moravam dividia o terreno com outras, e não era raro que uma vizinha viesse lhe pedir açúcar para um bolo, um pouco de óleo para o arroz, ou que quisesse apenas fofocar. Foi até a porta e viu dona Marieta. Estava aos prantos. Daí o susto daquela tarde de sol baixo e calor abrasante. Marieta, as mãos enrugadas tateando o batente, os olhos leitosos da catarata. Vertendo lágrimas.

– Marinha, se acalme!

– Mas, Dorica, o Canarinho sumiu… Sumiu de vez.

O celular vibrou duas, três vezes. Na quarta, resolveu olhar. Três mensagens. “amor me liga qndo vc puder”, “amor eh importante”, “me liga!!!”.

“Deve ser algo sério”, pensou, as mãos suando e um nó na garganta. A cabeça voou imediatamente para Matheus e Giovanna, os filhos por quem labutava incessantemente naquele supermercado, e por quem dirigia um Uber nos dias de folga, para chegar ao fim do mês.

Avisou aos funcionários que iria “ali” atender ao telefone. O dia estava mesmo de pouco movimento. Aproveitou para acender um cigarro. Vinha tentando parar há alguns meses, mas sempre desistia, fosse por uma derrota do Corinthians, por alguma briga boba com a mulher, por um dia estressante no trabalho — qualquer situação que fugisse minimamente de sua rotina, rendia-o.

– O que aconteceu? — ele perguntou, a mão tremula segurando o telefone celular.

– Tua mãe me apareceu desesperada dizendo que o Gil sumiu.

Eleutério suspirou, e por um instante teve raiva. “Tudo isso para isso?” Não era a primeira vez que o irmão “sumia”. Ermenegildo às vezes ficava dias sem aparecer em casa e, quando voltava, estava em estado deplorável, lamentável. Um farrapo humano.

– Deve estar na cachaça — disse, desanimado.

– Eu sei… Mas tua mãe me pareceu assustada. Disse que teve um pressentimento, que sonhou que ele não voltava mais, está aqui na sala aos prantos. Nunca vi assim.

Eleutério engoliu um pigarro.

– Acalma ela, diz que mais tarde eu vou estar em casa e a gente conversa.

Desligou o telefone e encostou-se de leve ante a porta de vido do supermercado. De cabeça, listou todos bares e botequins que sabia que o irmão frequentava. Nesse ínterim, aproveitou para acender um segundo cigarro na guimba do primeiro e depois um terceiro antes de voltar definitivamente ao trabalho.

Às vezes, o Ermê dava dessas. Sumia no mundo, no rastilho de uma garrafa de bebida. Dorica dizia que era pela dor de ter falhado. Para mim, era pela esbórnia, mesmo. Ainda no Goiás, já gostava de beber. Tinha uma turma que se encontrava sempre no bar do seu Charles, tomar batida de limão. A coisa foi piorando com o tempo, mas nunca achei que fosse se tornar alcóolatra, ou sei lá o quê. Mesmo hoje, ainda não acredito. O irmão tem saudades de outro tempo. Acredita que ainda toca? Nem que fosse na esquina de casa, no boteco do seu Joca, onde batia ponto e de onde dá para ver o estádio. Pegava um banco alto e tocava as modas antigas da carreira.

Foi por lá que primeiro eu procurei. Mas o português não tinha notícias.

Depois fui varando a cidade, de leste a oeste, seguindo o caminho da Linha Vermelha. Na Mooca e pelos barzinhos de bolivianos do Brás, pelo centro da cidade, onde o irmão tinha feito a alegria das putas, nos muquifinhos perto da estação da Luz e também nos hoteizinhos perto da rodoviária da Barra Funda, onde sabia que ele às vezes dormia. Até nos risca-faca do Largo da Batata eu procurei. Foi uma volta pela memória. No começo dos anos 2000, quando chegamos com sonhos grandes, com vontade de estourar, de fazer sucesso, aquela cidade me pareceu o lugar mais bonito do mundo. Um gigante, um Golias, que nós íamos enfrentar. Ermenegildo não gostou. Disse que eu era tonto, que só dizia aquilo por conhecer pouco do mundo. É engraçado. Quando a gente sonha, nunca sabe se é devaneio. Em pouco tempo, estávamos tocando em botequins decrépitos, lugares parecidos com aqueles por onde eu agora passava. São Paulo ficou feia. Foi aí que o Canarinho se apaixonou.

Então Dora ficou grávida, e de repente tudo aquilo — a roupa de cowboy, a viola, as madrugadas em claro tocando para bêbados e prostitutas — pareceu ridículo. “Pra mim não dá mais.” O irmão ficou possesso. Nunca vi ele com tanta raiva. “E como fica nossa carreira?” ele gritou. Respondi de pronto: “Mas que carreira?” Àquela altura, ele já exagerava na bebida. Com fúria nos olhos, partiu para cima de mim. Numa situação normal, teria apanhado. O irmão sempre foi maior que eu. Mas ele estava tão bêbado que logo levou uma rapa e caiu no chão. Ficamos brigados por meses. Ele nem viu a Giovanna nascer. Foi a primeira vez que sumiu.

Eu fui fazer minha vida. De tanto acordar às 4h da manhã e de tanto cruzar a cidade no busão lotado, hoje tenho essa minha casinha, pequena mas confortável, que você vê aqui e ainda pago o aluguel de outra, onde vivem a mãe mais o Ermenegildo.

Quando ele vive.

A família estava diante do televisor Semp Toshiba 29 polegadas comprado um ano antes para assistirem ao pentacampeonato. Já não viviam mais na pobreza abjeta, porque o progresso também é uma fatalidade. Aos 57 anos, Ercílio olhava para o mundo e não escondia um sorriso. Criara a família, e agora os netos corriam pela pequena sala, ranhentos e malcriados. A esposa acariciava-lhe a coxa e os mais novos abaixavam a cabeça respeitosamente ao vê-lo transpassar a porta. Os dias de labuta intensa rarearam. Foram substituídos por doces tardes na rede e longas rodas de viola. Em pouco, os filhos queridos — os mais adorados –, realizariam seu sonho ao estrear no programa Show de Sucessos da TV Goiânia.

Seu Ercílio pegou um punhado de amendoins da cumbuquinha de argila e aconchegou-se ao lado de Marieta. O futuro era brilhante. Não podia existir vitória maior. No Show de Sucessos, o “Tigrão do Norte” berrou:

— A nossa próxima atração é uma dupla que está arrebentando a boca do balão… Eloooooooy e Eliiiiiiiiii.

Chovia fininho quando descemos do ônibus no Tietê. Era um frio que eu não imaginava, que invadia nossas jaquetinhas de denim. Àquela altura, Eloy & Eli eram um nome estabelecido no norte do Goiás, não havia baile sertanejo entre Água Fria e São Valério da Natividade que não contasse conosco. Mas o Ermê sabia que para estourar de verdade era preciso conquistar o sul. Não foi difícil me convencer. No fundo, eu também sonhava com o Domingo Legal. Descemos para São Paulo trazendo na bagagem um demo com Vou (vou te buscar/pra te amar/em cima da cama), sucesso absoluto nos bailões, além de Incertezas (certo que te amo/vou correndo contra o tempo/mas as suas safadezas/me causam incertezas), nossa nova canção de trabalho.

São Paulo cheirava a molhado, um cheiro úmido a que eu não estava acostumado. A cidade, com seus prédios de concreto armado, suas construções de concreto exposto, sua gente de concreto na alma, os paulistas, tão sérios e sisudos. O metrô. Até hoje me admiro com um trem que corre por debaixo da Terra. Posso passar horas sentado na estação observando os trens e as gentes que passavam apressadas pela escada-rolante.

Foi estranho ver o irmão no cartaz de “desaparecido”, que nos cotizamos para espalhar por A.E. Carvalho. Na foto mais recente, do Natal, o Canarinho estava envelhecido, inchado, aparentando uns 60 e poucos, e não os 45 que acabara de completar. Dos cabelos, que tanto lhe renderam a sorte nos cabarés, sobrara uma careca triste, que ele tentava esconder penteando para o lado. Sob os olhos, grossas bolsas de gordura. Nunca tinha reparado, mas Ermê estava acabado.

Acostumada a perder filhos, a mãe resignou-se. “Uma hora Deus o traz”, dizia, olhando sem ver pela janela, na esperança de que ele aparecesse no vento. Mas a falta logo bateu. É duro admitir, mas Ermê era seu filho querido, seu Canarinho. A falta feria, e ela, que antes evitava a rua, agora fechava-se em si. De início, podia ainda ouvi-la reclamar pelo quintalzinho comum, onde as famílias criavam galinhas. Mas aquietou-se. Os moleques a apelidaram de “dona doida” e cantavam “Marieta dona doida, mãe do cachaceiro, o filho se desapareceu, dentro de um puteiro” na janelinha basculante que dava para a sua cozinha.

Mas ninguém sofreu tanto quanto eu. Apesar das brigas, das discussões, apesar de sermos tão diferentes, um preto e outro branco, um calado e outro falante, um sério e outro gandaieiro, um matuto e outro acabrunhado. Canarinho fazia parte de mim. Mesmo tão diferentes, existia quem nos confundisse. Gêmeos sem ser, numa união em que um quase sentia a dor do outro. Quando viemos para São Paulo, Ermenegildo demorou para se acostumar com o frio. Tilintava debaixo do cobertorzinho Parahyba, na pensãozinha fuleira onde nos instalamos. Depois, no meio da madrugada, descia as escadas rangendo e ia se esquentar na cachaça. Eu às vezes o acompanhava. Mesmo mais velho, foi ele quem sempre me protegeu. Depois isso mudou. Quando a dupla desformou-se, me senti obrigado a salvá-lo, a abraçá-lo. Ele resmungava. Falávamos em silêncio, em longos olhares e suspiros profundos.

Quando sumiu, a mulher estranhou. Disse que algo dentro de mim corroeu ou matou, algo pequeno morreu no peito. Disse que mudei, que comecei a beber mais do que antes, a frequentar o bar do Joca, coisa que na verdade sempre fiz. Mas é verdade que, de uns tempos pra cá, senti mais falta daquela vida de antes, das zonas e dos perfumes baratos. Talvez seja a velhice ou as saudades da mocidade. Ou talvez um pouco dos dois.

*

Em criança, já falavam que eu ia ser um sucesso. Me botavam de roupinha de sertanejo, com a camiseta de chita xadrez e botinhas de couro, para imitar o Sandy & Júnior. Cantava “Maria Chiquinha” sempre que ia gente em casa. Desde pequeno, meu pai me pegava no colo e dizia que eu ia no programa do Faustão. Me ensinou os primeiros acordes quando eu mal sabia falar. Lembro do violão do pai. Do cheiro de madeira envernizada, um cheiro doce, diferente de tudo. Lembro dele tocando, dos desafios de repentes, da tristeza do choro do sertanejo que lembra do bicho magro e do bicho morto. O velho cresceu na Chapada Velha, passou o pão que o diabo amassou, migrou de lá pra cá até chegar à fazendinha onde nasci.

Tinha traços fortes, a pele preta queimada, enrugada do sol, um rosto quadrado, talhado a faca, onde brilhavam uns olhos verdes, o cabelo encaracolado. Cansei de ouvir nas festas, fossem as juninas ou de santos, que era um homem bonito. Com quase 200 kilos em 1,90 de altura, o velho chamava a atenção. Quem visse de longe, no escuro da vereda, era capaz de crer em assombração.

Na roça, não me deixava pegar na enxada. Dizia pra eu não estragar as mãos, que no futuro elas iam dar de comer para toda a família. Como se ele, de mãos calejadas, não fosse o melhor tocador do arraial. Como se não se transformasse, e de suas mãos grossas, calejadas, com as palmas ásperas e nós duros, não saísse um som doce como do sabiá-da-mata-cantador. Às vezes eu tinha inveja dos irmãos, trabalhando com o pai, enquanto eu ficava para trás, com a mãe, fazendo coisas de menina.

Mamãe me queria doutor. Ou não doutor, porque para ela, que mal sabia garranchar “Marieta do Rosário Costa” na firma do documento, aquilo estava fora de qualquer propósito. Mas, quem sabe, que pudesse terminar um curso ginasial, ser gerente de alguma fazenda. Eu nunca fui dos estudos. É difícil para quem não tem cabeça. O Tiziu sempre foi mais esperto, era bom de letra e número. Para mim, só existia o mundo do violão.

Ainda assim, o pai reclamava. Dizia que eu não me esforçava, que viola não é fácil, não. Que eu era burro, e que se fosse para ser como ele, que ficou de gandaia no interior de Goiás e nunca foi pra frente, era melhor nem começar. O pai gostava de reclamar. Na Bíblia, Deus diz a Adão que não coma da fruta proibida. Pois o pai me ofereceu de pequeno o fruto, e eu me lambuzei. É como diz o ditado, “quem nunca provou do mel…” Foi chorando que um dia eu dei adeus à dona Marieta e levando nas costas o violão Yamaha que comprei por dez vezes de 16,90 nas Casas Bahia fui à luta.

Vocês não sabem, mas, apesar de tudo, eu não comecei com o sertanejo. O sertanejo é que acabou me escolhendo. Meu negócio quando moleque era o rock. “Billy Dylan.” Eu tinha um cabelão, era bonito, tocava em barzinhos de Alto Paraíso de Goiás. Depois fui para Brasília. “Meu Deus, mais que cidade linda”, quase chorei quando cheguei na rodoviária. Mas as versões de “Hurricane” faziam mais tanto sucesso entre os malucos-beleza da Chapada dos Veadeiros, não faziam mais sucesso por ali. O que o povo queria mesmo era ouvir os hits de Leandro & Leonardo, Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano e João Paulo & Daniel. Você sabe, a voz do povo… Raspei os lados do cabelão e virei “Billy Gil”. Até que fazia sucesso, viu? Entre um “Chuva no Telhado” e um “Você vai Ver”, fui vivendo. Não raro, ganhava em dólares. Depois, gastava tudo na noite. Às vezes, ia para cama com paulistas e gaúchas, com filhas de diplomatas. Mulheres louras, altas, de pele branca e sardenta. Mais de uma vez, com o marido assistindo. Vai entender…

Posso dizer que fui feliz. Vivi. Cruzei o país, me apresentando em tudo o quanto era canto: em boates mal faladas e prostíbulos escancarados, em cima de picapes e caminhões Ford, em palquinhos improvisados no coreto da praça. Cheguei a tocar na casa de políticos, prefeituras perdidas entre o meio do caminho e lugar nenhum, em alguma parada de beira de estrada na Belém-Brasília.

Até encontrar Jefferson Gustavo.

Cabelo brilhoso, óculos de sol bem escuros e ouro no dente, o Jeff parecia vilão da novela das oito. Um pilantra. Mas falava bonito. Era o “empresário das estrelas de Imperatriz”. Prometeu que no ano seguinte estaria tocando no Domingo Legal, e jurou estendendo as vogais, como se imitasse o apresentador Gugu Liberato, que ele seria um sucesso. Mas precisava de um parceiro, que ninguém ia entender uma dupla sertaneja de um só.

Então fui buscar o Tiziu.

Tiziu era bom tocador. Não como eu, pois faltava um coração naquele peito. Tocava como se resolvesse um problema, concentrado, o olhar parado no nada. Mas tinha a voz bonita, algo tinha de ser, naquela cara preta. Por isso tudo a dupla funcionou. É duro, mas não teria chegado a São Paulo sem ele. Também me salvou quando o Jeff sumiu no mundo com nosso dinheiro.

Quando pequenos, o irmão me protegia. O pai sempre disse que precisávamos ficar juntos. “O que um tem, falta ao outro. Você tem de seguir o Tiziu, Canário, porque você tem muitas coisas, mas te falta cabeça.”

*

Na parede do bar, colocada bem diante da porta, o pôster envelhecido perdera os matizes de vermelho e tornara-se um borrão azulado, mas seu Joca contava todo orgulhoso da dupla ali retratada. A quem pedisse, ainda botava o CD para tocar, o som granulado deixando transparecer um conjunto competente de vozes e violão. “Eloy & Eli”, ele dizia suspirando. “Foi uma pena o que fizeram com eles. Tinham talento.”

A esta altura, Ermenegildo já há muito sumira no mundo. Eleutério logo seguiu. Ele, que era tão pequenino, tão mirrado, cresceu a ponto de caber dentro irmão. Na falta que sentia, emprestou-lhe o corpo para que o outro habitasse. Seu coração batia por dois.

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