Cemitério Israelita na Rossau

Wertheimer Lucas
SIESTA
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16 min readFeb 13, 2021

Segundo episódio da série Siesta. Descanse em paz.

Dois entregadores da UPS no seu tradicional uniforme marrom, entretém-se em seus minutos de folga com algo que um deles mostra ao colega na tela de seu smartphone. Um tecno dos Balcãs estourado ecoa naquela via de mão única no nono distrito de Viena. Operários pendurados no andaime berram entre si e suas gargalhadas amalgamam-se à batida incessante enquanto alguns metros abaixo, uma picape com material de construção na caçamba, manobra para estacionar. O motorista da Mercedes preta logo atrás, afunda impacientemente a mão na buzina. Uma velha que vem arrastando seu carrinho de feira calçada abaixo, ao passar rente a mochila que eu apoiei com o zíper aberto no meio-fio, olha descaradamente para ver o que eu levava nela. Um dos funcionários da UPS, de pouca estatura, bermuda e camisa polo e boné com o logotipo da empresa, arrisca alguns passos de dança. Eu me posto no meio da rua perpendicular à Seegasse e fotografo a faixada de um asilo.

Atrás dos cinco ou seis pavimentos que por via de regra são o último endereço de seus residentes neste planeta, fica, escondido do olhar dos transeuntes e distante do ritmo frenético da cidade, o cemitério israelita de Rossau. Os judeus o estabeleceram na metade do século XVI.

Dei então os últimos cliques e resolvi entrar. Passei cabisbaixo pela recepção do asilo e murmurei um “Grüßgott“ encabulado para a recepcionista. No hall de entrada, cruzou o meu caminho uma moça corpulenta e de jaleco empurrando uma anciã grisalha na sua cadeira de rodas. O prédio é do final dos anos setenta, e se a faixada marrom, com suas janelas salientes, formando um padrão de formas geométricas ainda deixava alguma dúvida, o piso laranja e a mobília embutida são quase uma certidão de nascimento.

No final do pequeno saguão, uma porta de vidro dá para a ampla varanda. Trata-se na realidade de uma estrutura metálica sobre pilastras, virada para o pátio interno e fixada aos muros do edifício: foi a solução encontrada nos anos noventa, para substituir o caminho ao nível do chão, que possivelmente seguia em parte sobre ossadas, uma ofensa ao jacente, segundo a crença judaica. Dela, se tem a visão de toda a necrópole: Um quadrilátero flanqueado no Leste e no Sul pelo próprio asilo e no Oeste e no Norte por uma antiga mureta, que separa o terreno do jardim das edificações do entorno. A maior parte das lápides encontra-se daquele lado. A disposição das lajes sepulcrais é, no entanto, bastante irregular. Grandes espaços vazios, como clareiras, chamam a atenção de quem contempla o campo santo.

Aqueles que já visitaram o famoso cemitério judeu de Praga e pagaram uma salgada quantia para perambularem entre o mar de pedras com seus belos epitáfios e adornos, devem estranhar a impossibilidade de poderem repetir a experiência em Viena. De acordo com o ritual funerário judeu, os corpos de seus mortos devem ser enterrados a no mínimo seis palmos, aproximadamente quarenta centímetros uns dos outros. Em Praga, por falta de espaço, esta regra também se aplicava na vertical. Mas nada impede que sendas, desde que respeitem a disposição das covas, cortem o terreno. Acontece que toda a Rossau, uma baixada que se estende ainda nos dias de hoje até as margens do Donaukanal, foi assolada inúmeras vezes por enchentes. Antes da correção do meandro sinuoso do braço principal e a canalização de tantos outros menores, a área era um charco. A força das águas chegava a ser tamanha, que lápides inteiras foram arrastadas e uma camada de sedimento trazido pelo rio e de até seis metros de espessura, acumulou-se ao longo dos séculos sobre os restos mortais lá enterrados. É, portanto, impossível saber sequer de maneira aproximada, se ao pisar neste pedaço de terra, se perturba a paz eterna de algum ancestral.

No final da rua: a fachada da casa de velinhos, o “Haus Rossau”

A primeira menção, da qual se tem notícia, do cemitério dos judeus na Seegasse, foi feita em um documento de cinco de agosto de 1629. Mas não se sabe a data exata do primeiro sepultamento. A inscrição sepulcral mais antiga em uma pedra encomendada para esta necrópole e ainda conservada, indica o ano de 1582, como o ano da morte de Ester, filha de Akiba. Esta não é, entretanto, a lápide mais velha. Na virada do século XIX para o XX, no âmbito do “bota-abaixo” generalizado em meio ao crescimento frenético da metrópole (então a terceira maior do mundo), foram encontradas inúmeras outras do século XIII e XIV. Elas provêm do cemitério judeu medieval “im Greut”, que existia na região do atual Opernring, no entorno de onde desde 1900 um monumental Goethe de bronze repousa comodamente em seu trono. Estas placas com inscrições em hebraico eram parte de muros e fundamentos de edificações erguidas após os fatídicos anos de 1420 e 1421. Pois o local de repouso eterno dos judeus, foi então repassado à administração de um mosteiro que tratou de construir algo no terreno, as lápides foram doadas ou vendidas como simples material de construção. Depois de redescobertas, quatrocentos ou quinhentos anos mais tarde, foram, na maior parte, realocadas para a Rossau. A exceção é uma placa de 1349, do menino Aaron, vítima da peste e filho de um tal de Baruch, que pode ser apreciada no museu no Judenplatz.

O fim abrupto, quase sem deixar vestígios desta necrópole da baixa idade média está vinculada a um dos mais trágicos episódios da história da cidade. Durante o reinado do duque Albrecht V. (1404–1439), a situação da população judia foi piorando gradualmente. Na noite do dia cinco de novembro de 1406, um incêndio, não se sabe se acidental ou criminoso, consumiu a sinagoga. As severas leis do sabá, porém, não permitiam à comunidade combater as chamas. Os cristãos, pasmos e incrédulos, testemunharam então como os israelitas rezavam em torno do templo condenado às cinzas, suplicando por intervenção divina. Uma turba de cidadãos revoltosos enxergou na tragédia ensejo para dar ar ao rancor contido, seja por desavenças pessoais ou por fanatismo religioso, e pilhou durante três dias o bairro judeu. A dimensão do prejuízo deve ter sido considerável, já que o duque, mesmo com as finanças públicas no vermelho, prometeu isentar os judeus de contribuições extraordinárias até o ano de 1415. Mas se antes da grande calamidade, os hebreus gozavam de um mínimo de prestígio, ou faziam-se indispensáveis graças à prosperidade de seus negócios e principalmente à concessão de créditos, agora arruinados, boatos perniciosos e acusações se alastravam sem qualquer tipo de coibição, chegando logo aos ouvidos ducais. Entre imputações de profanação de hóstias e obscurantismo, a mais grave das (falsas) denúncias, foi a de que os judeus haviam se aliado aos Hussitas, reformadores da Boêmia, com os quais Albrecht V. estava em guerra. Rumor que culminou no dia vinte e três de maio de 1420, antes de uma nova investida contra os Hussitas, na ordem de encarceramento de todos os judeus que viviam nos domínios do duque. Em dez de agosto do mesmo ano, as tropas voltaram derrotadas à Viena e o soberano encontrou nos israelitas seu bode expiatório. Aprisionados em parte no Schergenhaus, uma espécie de delegacia provida de celas e em parte na própria sinagoga, os judeus vienenses passaram por todo tipo de martírio. A investida dos cristãos havia tomado um aspecto missionário e os aprisionados que se recusavam a se converter eram executados. Ao saberem que menores de quinze anos seriam arrancados dos pais e de maneira compulsória, batizados, aqueles aprisionados na sinagoga, guiados pelo rabi Jona e entregues ao desconsolo, decidiram que a vida não valia mais a pena ser vivida e mataram uns aos outros em um atroz suicídio coletivo.

O encarceramento do restante dos judeus, noventa e dois homens e cento e vinte mulheres, durou mais dez meses até doze de março de 1421, quando foram levados à fogueira e assados vivos. As crianças passaram à custódia de mosteiros.

Após tamanho ato de barbárie, não surpreende que a volta dos judeus às terras que se denominava então de Áustria, foi lenta e relutante. Apenas em 1451, um decreto pontifício, “pro necessitate vitae Judeorum et commoditate Christianorum”, permitiu aos israelitas por aqui se reestabelecerem. Mas aos poucos, retornando de países vizinhos ou vindos de nações distantes, estes pioneiros medraram à uma nova colônia digna do nome. E durante o reinado de Rudolf II (1576–1612), que reconheceu logo a influência fundamental e positiva dos judeus nas finanças da casa real, a comunidade pode enfim, uma vez mais, florescer. A população semita cresceu então rapidamente e às margens do Donaukanal, numa área chamada de “Im unteren Werd”, ergueram suas moradas. Nos quarenta e cinco anos, do estabelecimento do núcleo de povoamento até a nova expulsão de seus residentes em 1669, o que não passava de uma várzea e um tremendo atoleiro, tornou-se um centro cultural de referência para toda Europa central. Foram erguidas três sinagogas, escolas e centros de estudos religiosos e eruditos do Talmude, da Mishná e da Torá, vinham de longe para dar as caras por estas bandas.

Os seus mortos, enterravam-nos do lado oposto do canal, no cemitério da Rossau. Desta época tem-se também um registro escrito de uma casa de assistência, um pequeno hospital erguido no lote ao lado do campo com os jazigos.

O jardim interno do asilo abriga o secular cemitério israelita

Reviravolta. Quem agora (a partir de 1658) segurava mais ou menos firme, o reino (Sacro Império Romano) pelas rédeas, era Leopold I. Me abstenho de comentar suas virtudes e defeitos, pela simples razão de não os conhecer. Mas recomendo que procurem por um retrato do soberano, de autoria do pintor flamengo Jan Thomas van Ieperen. As vezes a imagem ajuda o leitor no esboço mental da figura descrita. De qualquer maneira, a situação dos judeus que viviam na cidade e nos subúrbios de Viena se agravou uma vez mais. Se foi sua instrução, que Leopold obteve em um seminário, ou o ferrenho antissemitismo ibérico importado por sua esposa Margarita Teresa de Espanha, ou os sonhos de uma cruzada contra Israel do Bispo de Wiener Neustadt, Leopold conde de Kollonitsch, ou a pressão das guildas, que queriam se livrar da concorrência, ou das suspeitas e acusações de colaboração e aliança com os inimigos otomanos ou até mesmo a má impressão que causou na corte o alvoroço suscitado na comunidade judaica pela aparição messiânica de Sabbati Zewi em algum rincão da Turquia ou se foi tudo isto mais a indelével intolerância cristã, o motivo para a hostilidade, é difícil de dizer ao certo. Fato é, que em dez de julho de 1669, o imperador determinou que dentro de um ano, todos os judeus que não estivessem dispostos a se converter ao cristianismo, tinham que abandonar a cidade. E assim desfez-se por completo a comunidade israelita pois ninguém, nem uma única alma passou a reconhecer o filho do carpinteiro de Nazaré como encarnação de Deus para poder esquivar-se da mudança de endereço.

Entre as famílias forçadas ao exílio, a de Köppel Fränkel era uma das mais abastadas. Após fixarem sua nova residência em Fürth, na região da Francônia, Köppel empenhou-se na luta pela preservação do cemitério na Rossau. Pois além do valor e da importância assentes no judaísmo, de toda terra que recebe os restos mortais dos filhos de Israel, o bom homem havia enterrado naquele campo santo, sua primeira esposa Vittoria, sua filha Kröndl, morta aos vinte e dois anos de idade, sua segunda esposa Zartel e outros parentes mais. Depois de uma série de tratativas frustradas com a cidade de Viena, firmou-se enfim um acordo, segundo o qual, mediante o pagamento de quatro mil florins e a quitação de dívidas em aberto de membros da comunidade no valor de vinte mil florins, a cidade comprometia-se em manter o cemitério “por toda a eternidade”.

Terceira colônia israelita: o judeu ou o fator da corte. Grana, sempre ela, convenceu Leopold I. a revogar sua resolução de 1669. E já em 1673, puderam voltar os mais endinheirados, garantindo o direito de residência a si e aos seus, adiantando ao fisco uns tantos mil florins. Com a rainha espanhola morta e enterrada, o imperador já a desposar outra, que cultivava um antissemitismo menos latente, sopravam naquele final de século, ventos mais favoráveis. A nova comunidade israelita, entretanto, desenvolveu-se de forma bastante distinta daquela que a precedeu no antigo “Im unteren Werd”. Seus membros, antes unidos em torno da crença e que seguiam à risca os mandamentos da Torá, mantinham agora uma postura mais mundana. Poderosos banqueiros e financistas, que souberam fazer valer de seu talento e treparam a escala social até as altas esferas do poder, uma vez na Hofburg, deixaram-se contaminar pela febre da opulência do período barroco. Mas não Samuel Oppenheimer. O mais brilhante entre os judeus da corte (“Hofjuden”) da primeira geração, oriundo dos lados do Palatinado Renano, Oppenheimer, apesar de ascender ao posto de principal fornecedor das tropas imperiais, jamais deixou de ser um homem de costumes simples e temente a Deus. Comprometido com o bem da comunidade, financiou a construção de templos e casas de estudo, ajudava estudantes, inclusive católicos e comprou em 1696 o cemitério na Seegasse. O adquiriu em estado deplorável, pois os turcos que no sítio de 1683, de modo geral pouparam a Rossau, causaram, justamente nos jazigos judaicos, danos substanciais. Como proprietário, custeou então os reparos necessários e patrocinou a construção de um novo hospital, que funcionava também como asilo e abrigo para os pobres. A partir de sua inauguração em 1698, a casa contava com quarenta ou cinquenta leitos que atendiam anualmente de quinhentos a seiscentos pacientes.

Larguei a mochila ao lado da porta de vidro, peguei a câmera e tratei de fotografar o cemitério. Tudo em preto e branco, para enaltecer a história dramática que cada uma das lápides tem a contar. Também achei que combinaria com o layout do texto. Agora me arrependo, mas paciência. Entre as quase quatrocentas pedras com suas inscrições em hebraico, que aos trancos e barrancos e graças ao inacreditável empenho de um grupo de pessoas, puderam, pouco a pouco desde o final da guerra, serem recuperadas, uma das sepulturas se destaca das demais. Duas placas de mármore, cujos adornos emolduram o epitáfio que chega quase a ser um romance, encabeçam a parte central, formada por duas pedras inclinadas, à guisa de um telhado, também cobertas de caracteres hebraicos. O mármore é claro, o monumento está em estado impecável. Milagre? Não. O sepulcro de Samson Wertheimer (1658–1724) foi reconstruído em Israel em 1995. O visitante, ao se deparar com o faustoso mausoléu, deve atinar que não é um pé-de-chinelo que jaz sob aquele quinhão de terra. E de fato, Wertheimer, de Worms no sudoeste da Alemanha, emigrou com vinte e seis anos para Viena para dentre alguns anos ascender ao posto de mais poderoso homem de finanças do reino. Começou como procurador no escritório de seu tio Samuel Oppenheimer e assumiu os negócios após o patrão resolver se retirar da vida pública para dedicar-se integralmente ao estudo da religião. Abriu mão do comércio e focou no ramo das finanças, emprestou para Deus e o diabo, foi paparicado pela corte, foi amigo pessoal do príncipe Eugênio de Saboia e seu tostões e vinténs foram cruciais na segunda campanha e na vitória final contra os otomanos, na batalha de Belgrado em 1717. Também foi parar atrás das grades, o que não é de surpreender, levando em conta que tudo quanto era aristocrata e até mesmo o poder público tinha que lhe pagar juros e vencimentos no final do mês. Mas Samson soube bem se garantir, foi indispensável para nada mais que três imperadores: Leopold I., Joseph I. e Karl VI. Dentro da comunidade judaica, se tinha grande apreço por Wertheimer, que se servia de sua posição de prestigio e de sua influência para defender os interesses de outros membros menos abonados. E através de generosas doações, colaborava com diversos programas com fins caritativos. Seu filho Wolf e a esposa Lea também estão enterrados na Rossau. Wolf, ao contrário do pai, não tinha o mesmo tato para os negócios e sob a sua direção, ruiu o império da família.

Eu, que redijo este singelo compêndio de informações relacionadas ao cemitério, tenho em comum com o velho Samson, o sobrenome. Ignoro, entretanto, se há algum parentesco.

Seguimos adiante. A última lápide a ser fincada na Seegasse é de uma senhora Ascher Anschel, que faleceu em dez de dezembro de 1783, aos setenta e seis anos de idade. Ocupava então o trono Joseph II. o monarca esclarecido, que no embalo de seu conjunto de medidas e reformas, determinou também, que todos os cemitérios dentro dos limites do Linienwall, um sistema de muralhas de defesa, que delimitavam o perímetro em torno do bastião da cidadela, fossem fechados. Novos sepultamentos, somente além deste Linienwall (seu traçado corresponde nos dias de hoje a grosso modo ao Gürtel, um importante anel viário que liga praticamente todos os distritos da cidade), ou seja, no campo. A comunidade israelita adquiriu um terreno anexo ao novo cemitério de Währing, inaugurado em 1784.

O cemitério, que deixou de receber novos inquilinos (sim, são apenas locatários, pois quando vier à terra o tão esperado messias, se reerguerão os mortos) no final do século XVIII, permaneceu parado no tempo, ilhado pela metrópole em impetuosa transformação. As em torno de novecentas lápides formavam um acervo histórico a céu aberto até a derrancada de 1941.

Eis o estrago: ao fim da segunda guerra, o cemitério não era mais reconhecível como tal. Um artigo de jornal de 1947 dá uma ideia do triste cenário. Lápides foram arrancadas do chão e estavam espalhadas em pedaços pelo terreno. Apenas uma única, uma mísera pedra permanecia de pé, no seu local de origem. E ainda se passaram décadas antes que as primeiras medidas fossem tomadas. De acordo com um plano de 1974, dez lápides estavam fincadas no solo, mas muito provavelmente escondidas entre o matagal que pululava por toda parte. Tanto que um senhor chamado Joseph Toch e que visitou o local em 1979, descreveu o terreno como um lote abandonado, no qual não é possível identificar um único túmulo.

Após a ordem de fechamento de todos os cemitérios judaicos na cidade de Viena, emitida pelos nazistas em oito de janeiro de 1941, pilhagem e destruição sistemática tornaram-se rotina. Tramitava até mesmo um projeto para instalar na área um playground para as crianças. Os antigos jazigos dos Arnstein, Eskeles, Königswarter, Oppenheimer, Wertheimer e tantas outras linhagens tão atreladas à história da própria cidade tinham como destino certo a britadeira. Mas graças à intervenção de alguns poucos indivíduos, o estrago pode, na medida do possível, ser contido. A começar por Robert Kraus, que ocupava na época o cargo de secretário de cultura. Era um homem que dava ao legado histórico da cidade a devida importância e soube, através de artimanhas, entravar a voraz devastação que desejavam tão ardentemente os nacionais socialistas. Conseguiu convencer o município a comprar os terrenos das necrópoles desapropriadas (Währing, Floridsdorf e Großenersdorf) e se comprometer em mantê-los por dez anos, antes de tomar uma decisão a respeito de seu desígnio final. Por sorte, o terceiro Reich, o reinado de mil anos, não durou tanto. Uma parte do cemitério de Währing, entretanto, foi escavado para a construção de piscinões que serviriam para apagar eventuais incêndios causados por bombardeio inimigo. As ossadas lá encontradas foram enviadas ao museu de história natural, para que através de medições antropológicas, a inferioridade do esqueleto semita pudesse ser provada cientificamente. É claro que a refutação dessa hipótese estapafúrdia não era desejada. O estrago teria sido ainda maior, se por iniciativa de Kraus, boa parte do cemitério de Währing não tivesse sido astutamente declarada área de preservação com intuito de proteger espécies endêmicas de pássaros.

O cemitério em registro de 1905 (Wien Museum, Inv.Nr. 29257/4, Foto: A. Stauda).

Mas como foram recuperadas tantas das lápides, a olho nu me arriscaria a dizer cerca da metade, partindo praticamente da estaca zero no final dos anos setenta? Pois vivia em Viena, durante a guerra e em condições desumanas, um pequeno grupo de judeus que executava forçadamente os mais pesados trabalhos braçais como carregar e descarregar dos vagões de comboios cargueiros, barras de aço. E na calada da noite (não sei se foi de fato de noite), alguns deles ainda encontraram forças para resgatar inúmeras das placas de pedra maciça, imaginem o peso, e escondê-las de seus opressores. Algumas, as enterraram lá mesmo, na Seegasse, outras em um canto pouco frequentado do gigantesco cemitério central. Curiosamente, estas, soterradas não só por terra, mas também por escombros, pois o cemitério central foi bombardeado, sim soltaram bombas sobre os mortos, pois descansam ao lado de uma refinaria, estas lápides foram encontradas bem antes das outras escondidas na própria Rossau. E entre 1981 e 1983, trouxeram centenas de placas à luz do dia, que estavam empilhadas, sempre com uma camada de terra entre elas, para as proteger de danos. O então secretário geral da comunidade religiosa judaica, Avshalom Hodik, além de se empenhar energicamente para que todos os artefatos fossem restaurados e retornados ao local de origem, arregaçou as mangas e se dedicou pessoalmente ao penoso trabalho de decifrar as inscrições em hebraico. Em muitos casos, era primeiramente preciso encontrar os fragmentos para em seguida tentar juntá-los como em um quebra-cabeça. O resultado de seus esforços foi a identificação de duzentas e oitenta lápides.

Em quatro de setembro de 1984, o cemitério na Rossau foi reaberto ao público e pode ser visitado entre as oito da manhã e as sete da noite. E com a porção das placas de pedra que puderam ser recuperadas, de pé e em seu devido lugar, foram encontradas sob uma saliência que se tomava por um montículo natural, mais cerca de oitenta fragmentos de no mínimo trinta lápides.

E, ufa, em 2013 ainda foram encontradas por lá (Rossau), mais vinte lápides em estado relativamente bom e diversas lascas e pedaços. Com isso e graças a um plano detalhado do pesquisador Bernhard Wachstein, dos tempos pré-guerra e que especifica como era a disposição exata dos sepulcros, o cemitério israelita na Seegasse é hoje um dos mais importantes do continente e o único que tem o aspecto relativamente próximo do que costumava ser, antes da onda de destruição nazista.

Agora, tendo feito todas estas considerações, que preenchem algumas laudas, mas que não sei bem se fazem jus à rica e movimentada história do lugar, tampo a lente da câmera, penduro a mochila e com alguns passos largos e um “Aufwiedersehen” encabulado para a recepcionista, volto a botar o pé na rua, na Seegasse. Logo ao lado da entrada com as portas automáticas, discreta e cravada em mármore, a indicação do caminho à necrópole. Foi a pedido de Valerie Ullitsch, a época da reinauguração a única sobrevivente do grupo que escondeu tantas das lápides, que a placa foi lá afixada. E me afastando do edifício, olho uma vez mais para a fachada com seus renques de janelas e me pergunto atrás de qual delas vive Traude Veran, a senhora que escreveu “Das steinerne Archiv”. Um livro dedicado a contar a história daqueles que são agora seus vizinhos. Um livro que li com grande interesse e que serviu de base para este texto.

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