Escala no Rio

Wertheimer Lucas
SIESTA
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17 min readFeb 13, 2021

1. Teófilo Schultz pendura o jaleco

Teófilo Schultz pendura o jaleco, passa à secretária últimas instruções e sai à travessa Tuyuty com um cigarro bambo entre os lábios. O fumo incandesce e a mortalha queima enquanto aguarda a condução, linha Poá-Navegantes. Reside na Voluntários da Pátria, número tal, em um sobrado de frontispício discreto, quintal amplo e mureta baixa. Recostado, de testa contra a janela, deixa esvair de sua mente abarrotada os enfados e as aflições que turvam o seu cotidiano. Absorto no deleite de não pensar em nada, tomando a trepidação como melodia e os solavancos como percussão, o doutor acompanha o decorrer do meio-fio no emaranhado da cidade até desembocar na sua parada a três quadras do Guaíba. Aguardam-no em casa um Simca Chambord verde marítimo e Marujo, um pastor alemão de pedigree apurado. Marujo possui olhos de formato e cor amendoados, o stop moderadamente marcado, o focinho alongado, a trufa húmida e negra, orelhas alinhadas e sem inclinação lateral e pelagem estilo capa preta. Na altura da cernelha mede sessenta e cinco centímetros. Ao assomo do doutor, dobrando a esquina em passos largos, Marujo lança-se ao portão de ferro fundido e recebe ofegante o seu amigo. Recebe-o ereto, sob duas patas, as ancas musculosas, o dorso esticado e o pelo lustroso e denso. À mão que afaga quase não reage, mantém a compostura à guisa de quem recebe o que lhe é de direito. Abana a cauda entretanto. O portão range nas charneiras e Marujo senta-se, estufando o peito, boceja, deixando à mostra sua mordedura articulada em tesoura, pois quando torna a cerrá-la, os incisivos da arcada superior tocam pela frente os da arcada inferior em oclusão justa. Acompanha, me atrevo a afirmar que com certa apreensão, seu dono desaparecer na sombra dos aposentos, para apenas em instantes voltar à eira do pátio, vestindo outra camisa e só de cuecas. Levando então a mão direita à testa para logo dar a meia-volta. Ecoam em seguida ruídos de portas batendo, gavetas emperradas, forçadas e puxadas e fechadas, passos, suspiros e mais passos e enfim o leve estalo da trava de uma valise. Lê-se nitidamente no semblante de Marujo, que lhe escapa por completo razão e sentido nos movimentos afobados de seu dono. Tampouco compreende um certo aperto que lhe dá no estômago, o qual nós humanos interpretaríamos como um mal-pressentimento. E assim é abordado por Teófilo, carinhoso e complacente, mas em cujos olhos suspeita terceiras intenções. Hesita por um instante antes de inquietar-se, ensejo este aproveitado pelo doutor, pois ao toque do dar-se conta já estava encoleirado, sendo inútil qualquer tipo de resistência. É arrastado mais por mal do que por bem até o banco traseiro do Simca Chambord, revestido de couro bege caramelo mas coberto por duas toalhas. A chave já estava no contato. Teófilo dá a partida, sai da garagem só na embreagem e ao envergar na Comendador Tavares, Marujo já esquecera qualquer ressentimento e regozija-se com a paisagem em movimento. Pela fresta da janela o focinho ao vento enquanto do rádio ecoa: “entra meu amor fica a vontade e diz com sinceridade o que desejas de mim. Entra, pode entrar a casa é tua, já que cansastes de viver na rua…”

2. Quem conhece, sabe

Quem conhece o comandante, sabe: ele não simpatiza com cariocas. No saguão de Cumbica, com o blazer sobre o uniforme, no Captain’s bar do hotel Comodoro, fumando seu London Dock ou seja lá onde e como for, quantas de suas anedotas não carregam consigo a seguinte moral: Carioca, deguste com moderação. Em nosso último encontro, contou-me, em tom de censura mas com um quê de satisfação por ter uma vez mais sua teoria atestada, o episódio que testemunhou no aeroporto Salgado Filho. Um sujeito, a julgar pelas olheiras um médico, atônito entre os transeuntes, indaga em brados para todos e para ninguém o que fizeram com o seu pobre Marujo. Com aquela espécie de caixa para o transporte de animais aos pés do fulano, o comandante logo compreendeu tratar-se de um animal de estimação, provavelmente um cachorro, chamado Marujo. A primeira suspeita não deixou de comover um punhado de outros passageiros incluindo o próprio comandante, também ele um cinófilo. O coitado do cão não sobreviveu à viagem, faleceu sozinho no porão da aeronave, entre o frio da fuselagem e a bagagem empilhada. E comiserados pelo sofrimento do dono, que encontra jacente seu amigo, seguem, homens e mulheres, com um aperto no coração para recolherem suas malas ou à aduana. O comandante entretanto, a espera da tripulação, entre as primeiras tragadas do ansiado cigarro, continua a espreitar o senhor em comoção e como este é abordado por dois funcionários, ao que tudo indica muito prestativos, que entretanto parecem não compreender a razão para tanto desespero. Olham para a caixa contendo o suposto animal defunto, olham um para o outro e encolhem os ombros. É neste instante então que o meu amigo, cronista desta história, enxerga entre o gradil daquela espécie de canil itinerante, uma cadela preta, vivinha da silva! Pasmo, conclui que se não foi o cão que no vôo perdeu sua vida, foi o dono que perdeu o juízo. Intrigado, aproxima-se da cena e com muito tato e a serenidade que lhe é característica, logra acalmar os ânimos do dito senhor. Este por fim, dando ar à todo sua indignação, exclama:

— Este não é o Marujo! Não é o meu cão!

— Mas como não? o senhor tem certeza? — Emendou um dos funcionários. O que aparentava ser o mais novo.

— É claro que tenho! — esbravejou o doutor. Já não podia conter-se. Interveio então o funcionário mais experiente:

— Não é possível! Nesse caso o senhor deve ter confundido os canis, tomou o de outro passageiro, que aliás deve estar desesperado, pensando que seu cão foi extraviado. Estando assim o Marujo na área de coleta de bagagens. É só o senhor me seguir.

O doutor não deu um passo sequer. Tomou ar e com a voz trêmula de quem recorre ao seus últimos recursos para conter a ira, explicou:

— O canil é o meu, tenho total e absoluta certeza. Preto, da marca tal, com o adesivo do Kennel Club de Porto Alegre na lateral e tudo mais. O cão por outro lado, não. Nunca vi na vida, não faço ideia de onde veio esse vira-lata!

Seguiu um momento de silêncio, quebrado enfim pelo mesmo funcionário, aquele mais experiente. Procurava um resquício de lógica naquela insensatez.

— O voo do senhor é proveniente de onde? O senhor recorda ter despachado o cachorro com todos os conformes no balcão da companhia? O senhor está certo de que ele estava na caixa de transporte naquela ocasião?

— Chego de Fortaleza, onde passei o feriado prolongado. Sim, em hipótese alguma, o coitado do Marujo não embarcou. A atendente foi inclusive muito atenciosa. Juro que não sei que cagada vocês fizeram! Um pastor alemão, pelo amor de Deus!

Segue um silêncio constrangido, até que no semblante do desapossado, nota-se uma ligeira alteração. Parece que algo lhe ocorre, para então, ainda mais sombrio que antes, dizer:

— Fiz escala no Rio.

O comandante interrompe a narrativa. Com a boca apenas esboça o sorriso que seus olhos já não podem ocultar. Levo a xícara de café aos lábios, está morno. Me é oferecido um pedaço de bolo de fubá. Aceito. Pra mim, um sociólogo de botequim, essas histórias são um prato cheio.

3. As velas do Mucuripe

Vão sair para pescar. Vou levar as minhas mágoas, pras águas fundas do mar… é o que ecoa do rádio enquanto o veículo corre sobre a Barão de Sobral. Em frente ao Hotel, estacionam torto sobre a guia da calçada. Segurando Marujo pela coleira, Teófilo acerta a conta da corrida com o taxista. Toma então a valise pela alça, para passarem pela porta giratória e cruzarem o Lobby até o balcão da recepção. A trela frouxa entre cão e dono revela a disposição combalida do habitualmente vigoroso pastor alemão. Os olhos baços, as pernas bambas em passos vacilantes: ainda não recobrou o alento que o deixara instantes após o veterinário cravar a agulha da seringa entre suas costelas. Que dia!

A silhueta de meia dúzia de navios cargueiros enfileirados no horizonte, minúsculos sob a cordilheira de nuvens, o mar encrespado e o ruído das ondas quebrando na praia de Iracema. Raia o dia na cidade de Fortaleza. Teófilo põe a camisa para dentro da calça e aperta a fivela do cinto. Traja-se em tons assorvetados. Às 8h20 passa acompanhado por Marujo, por debaixo de um pórtico com a seguinte inscrição: colégio militar — casa de Eudoro Corrêa. Contornam a ala norte do imponente edifício, seguindo as indicações até chegarem às quadras poliesportivas. Um banner de pano preso ao gradil dá as boas-vindas à visitantes e competidores da XI° exposição panamericana de cães. Com corações palpitantes, o doutor por levar aquilo tudo bastante a sério e Marujo por sentir a agitação do dono, aguardam a sua vez na fila da inscrição. Ao serem enfim atendidos, lhes é conferido, mediante o pagamento de uma taxa, um número de matrícula. Conforme o cronograma, tem agora apenas mais cerca de uma hora até o princípio do desfile. Marujo concorre pela classe grande campeonato no chamado Grupo 1, composto por cães pastores e boiadeiros, exceto os suíços. O tempo remanescente é preenchido com intensa escovação da pelagem, a fim de deixá-la lustrosa. Recorre-se também à um secador. Teófilo está ciente de que tem em Marujo um campeão. Dispensa laços e fitas e confia plenamente na impressão que invariavelmente causará. E de fato, com os participantes a postos, senhores e senhoras de braçadeira branca e à direita de seus respectivos cães, e cães sentados, cônscios de alguma maneira da relevância do que se dá ao seu redor, passam um por um os membros do júri, equipados com o olhar clínico e implacável que ao repousarem em Marujo entretanto, abrandam. Os murmúrios e sussurros que seguem atrás da bancada não passam de mera formalidade, antes do anúncio oficial, o veredito já havia sido dado.

Ao leigo convém explicar, que o ponto culminante, envolto em expectativas, de uma exposição canina reconhecida pela associação cinófila brasileira e por tabela pela comunidade cinófila internacional, consiste na nomeação do “best in show.” Os campeões de cada uma das dez categorias disputam entre si a coroa. A dupla gaúcha então, com sua vaga já garantida, confronta-se com um tremendo chá de cadeira. Restam pela frente nove baterias. Se tudo correr conforme o planejado, serão julgados às 10h45 os cães do tipo Pinscher e Schnautzer, Molossos e boiadeiros suíços, às 11h30 os Terriers, às 12h30 os Dachshund. Entre 13h15 e 14h30 almoço e evento preparado pelos patrocinadores. A retomada das atividades da comissão que forma o corpo de jurados está prevista para às 14h45, serão avaliados então cães do tipo Spitz e do tipo Primitivo. Às 15h30 será a vez dos cães tipo Sabujo e Rastreadores, seguidos pelos cães de aponte, depois pelos cães levantadores, recolhedores e de água, mais tarde serão os chamados cães de companhia que se submeterão à prova de fogo, para enfim, às 18h30 ser chegada a vez da aristocracia das raças caninas, digo dos cães Lebréis ou Galgos.

Já ao escorrer das primeiras horas, dissiparam-se os últimos resquícios de nuvem, para o sol fulgurar em todo seu esplendor. Se na manhã abafada, na canícula de meio-dia ou no bochorno da tarde, não importa, Teófilo sua em bicas enquanto Marujo pena, atravessando um verdadeiro martírio. A bandeira nacional hasteada no centro do pátio, queda frouxa e intrêmula, as coroas das palmeiras contra o fundo azul e azul do céu, agostadas. Um mar de pernas e a maré alta do estrépito dos passos e do barulho das vozes transborda e inunda seus sentidos caninos. O gato da vizinha, lá do bairro de Navegantes, passa lentamente à sua frente. Marujo mostra os dentes, dá um salto mas o gato dissipa-se no ar, vira fumaça. Confuso, procura o rosto conhecido de Teófilo. Encontra-o. Encontra vários, inúmeros! Para onde quer que olhe, todos são Teófilo. Teófilo alto, baixo, magro e gordo, Teófilo de bermuda, de vestido! Ao fundo marcha um pelotão de recrutas, todos Teófilo de uniforme cáqui e carabina sobre os ombros. Marujo late e Teófilo, o primeiro e único, notando o comportamento estranho de seu cão, lhe faz um carinho para acalmá-lo.

O sol se põe mas a temperatura pouco oscila e apostos, a formar em renque a nata da competição, Marujo e seus rivais sentem o açoite que é o bafo dos trópicos. Doutor Schultz enxuga pela milésima vez nesse dia o suor do rosto. Em torno dos Holofotes acesos, enxames de insetos orquestram um zunido que remete à um geladeira velha. Os juízes entram em cena com pompa e circunstância ao som da capela militar. Ao silenciar então dos clarins e bombos, começa a grande final. Um após o outro, os cães encontram-se uma vez mais a mercê do pedantismo dos jurados. Apalpam-nos as mãos estranhas, vem com otoscópio, estetoscópio e fita métrica e anotam tudo na prancheta. Chegada a sua vez, para surpresa e desgosto de seu dono, Marujo mostra-se relutante em permitir que o examinem. E ao insistir da senhora juíza, o desastre. Morde-a. A comoção é geral e imediata. Uma moça com panos e gazes e outro rapaz com gelo e Mertiolate, aparecem como vindos do nada. Da tribuna ecoa e reverbera indignação. Os demais proprietários finalistas, enquanto fingem assombro, alegram-se ao verem-se livre de um concorrente e o corpo de jurados por sua vez, cai sobre Teófilo. Teófilo quase tão branco quanto o Samoieda ao seu lado.

Tomam um Táxi de volta ao Hotel. Sob os pés do doutor parece abrir-se um abismo. Estonteante é a perspectiva da dupla não só desclassificada, mas também banida de competições oficiais. Porém não é dado a Teófilo o tempo para assimilar o acre na boca que acompanha tal humilhação. Sobre o mar estende-se uma avenida prateada que parece levar à lua e alcança enfim a orla uma leve brisa, trazendo alívio à cidade. Alívio que para Marujo chega tarde. Está morto.

4. A república do Galeão

Ou república dos cariocas, é a alcunha dada pelo comandante ao aeroporto internacional do Rio de Janeiro, na ilha do Governador. Às 14h25 de uma segunda-feira de céu nublado, aproxima-se sobre a Guanabara em glissada lateral, com os comandos cruzados, um Sud SE-210 Caravelle da Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul. A aeronave então cruza a cabeceira da pista, para apenas no momento exato do arredondamento, alinhar-se. Toca o solo primeiramente com uma roda, depois com a outra. Acerca o terminal em taxiamento até parar por completo na vaga designada. O serviço de apoio de solo efetua de imediato seus devidos encargos. É posicionada a escada de passageiros e enquanto descem em fila indiana os viajantes, um trator de pequeno porte, designado para a movimentação de bagagem, tem as duas carretas, engatadas em comboio, gradualmente carregadas por malas e valises de formatos e dimensões distintos. Ocupam-se desta tarefa, três funcionário trajados em macacões verde-aspargo e com abafadores auriculares laranjas. O mais franzino, agachado no porão do avião, lança o que vai encontrando ao companheiro equilibrado sobre a carreta de reboque. O terceiro aguarda ocioso na cabine do trator. O procedimento aparenta seguir um certo compasso, dentro do qual peça após peça lançada, projetada em parábola no ar, aterrissa brusca nos braços do homem. Não lhe escapa uma sequer.

Envolve-os aquele mormaço de sempre, o calor a evolar do concreto da pista e o zunido intenso do maquinário. Contra o branco encardido do firmamento encoberto, o azul Capri do uniforme de talhe justo de duas comissárias de bordo, marca, encabeça e desfecha o renque de passageiros no exato instante do desembarque. Notoriamente uniforme, de cabo a rabo, enfileirados, viajantes de meia idade com chapéus à mão ou à cabeça. Intercala-os, como a exceção a confirmar a regra, uma morena de parar o trânsito, razão e causa para o espatifar de uma maleta no pavimento da pista. Lançou-a o franzino, passou porém à queimaroupa do colega, que sequer ensaiou agarra-la. Vidrado na moça, esqueceu da vida, de onde veio e para onde vai, de amigos e familiares, do Botafogo e da taça Guanabara, esqueceu para o que é pago: apanhar bagagem. Tudo bem, o magrelo nem diz nada. Enxerga o companheiro estarrecido e inclina-se para fora da fuselagem, indaga aos berros do que se trata. Não obtém revide, salta para aterrissar de cócoras na pista de pouso. Procura e encontra nos olhos daquele que abstêm-se de lhe responder, o pivô do imbróglio. Esquece para o que é pago: retirar bagagem de aeronaves (entre outras coisas), une-se ao camarada para ademais, em ato de camaradagem, acenar ao terceiro com a mesma mão direita com a qual então indica em direção à dianteira da aeronave. Este, ao ver do que se trata, por conseguinte buzina, para a sua sorte não com a intensidade necessária para ser notado, e torna por fim a face jocosa aos colegas. Esta pequena comoção dura não mais do que alguns instantes, basta entretanto para deixar estes três funcionários da ARSA (Aeroportos do Rio de Janeiro S.A) de bem com a vida. A morena desaparece no interior do terminal e cada qual retorna então ao seu devido posto. Malas, caixas e valises tornam a ser lançadas em parábola pelos ares, para aterrissarem nos braços firmes do encarregado. Agilizam, dobram o compasso, uma chuva de bagagem, para dentre pouco, restar apenas um objeto no fundo escuro do compartimento. O franzino, agachado, estica-se todo para tomar o volume pela alça lateral e arrastá-lo à luz do dia. O peso considerável e as duas bisnagas que constituem seus muques o impedem de lançar tal caixote ao companheiro. Acena, solicita também auxilio ao terceiro, até então baldado em ociosidade. E enquanto este, com certo desdém e morosidade patente, aproxima-se para dar uma mão, o sujeito metido no porão de cargas entrevê enfim algo do conteúdo. Por entre o gradil, o pelo. Um cachorro. O rapaz regozija-se, abre um sorriso velhaco e com três passos alcança pelo cabo de madeira, uma vassoura. Aos brados mas em tom de motejo, insiste então que o colega se apresse. Esse dá pouca bola e segue a arrastar-se pelo mormaço. É um tipo de pouca estatura, peitoral ancho, braços curtos e mãos calejadas, os olhos apartados, barba feita e cabelo preto e rente. Viu o canil aos pés do magrelo, o magrelo com a vassoura em riste e estancou.

— Aí Nonato, não é tu o amigo dos cachorros?

Não, Nonato não é amigo de cachorros. Tem medo. O magrelo, um tal de Silvino pegava no pé e não largava. Era assim toda vez que aparecia um cão. Até quando era gato alfinetava.

— Vem dar um oi pro amigão aqui pô! É um grandalhão.

Nonato fica onde está, deseja ao Silvino uma morte dolorosa e lenta mas mantem-se calado. Um Convair em aço cromado levanta voo e ganha altitude sobre Cascadura e Oswaldo Cruz, ao fundo as encostas da serra.

— Vamos acordar a fera? Arthur, vem cá, vem vê.

E lá vai o Arthur, o rapaz na carreta de reboque. Os dois metem o cabo da vassoura pela fresta do gradil e cutucam o cachorro. Nada, o animal não se move. Cutucam com mais força, sacodem e dão uns tapas na caixa de transporte. O Nonato pede par deixarem de ser besta, é ignorado. O cão não se mexe.

— Imagina o tanto que precisa pra dopar um bicho desses! Parece morto. Enquanto Silvino especula, Arthur passa dois dedos pela grade e toca por um momento uma das patas.

— Não parece, está. Silvino recolhe a vassoura e a arremessa para um canto.

— Que morto que nada, ele tá é dopado Arthur.

— Tá morto Silvino, a pata tá gelada. Bota a mão pra tu ver.

O Nonato toma coragem e se aproxima, dando enfim ar ao seu rancor contido, esbraveja:

— Os senhores estão satisfeitos? Agora que mataram o coitado!

— Não fala merda amigo, se o corpo tá gelado é porque morreu no voo.

O baixinho não se dá por contente e prossegue:

— Só sei que isso aí vai arrebentar pro nosso lado, vão dizer que fomos nós e aí já viu.

— Fica tranquilo Nonato, tá tudo sob controle.

Este faz que não com a cabeça e avisa:

— Se me perguntarem, aponto pra vocês dois. Não tenho nada a ver com essa história.

Os envolvidos no episódio da vassoura fitam-se rapidamente. Em instantes estimam a gravidade da situação. O baixinho tinha razão, já se demitiu por menos aqui no Galeão. Arthur engole seco e pergunta:

— E agora, como é que fica?

— Fica a lição pra vocês deixarem de molecagem.

Silvino inclina-se uma vez mais para fora da aeronave, apoiando os dois gravetos que são os seus braços nos joelhos, fita o ar escaldante tremeluzindo sobre o alcatrão e, além da cabeceira, a silhueta negra de um punhado de urubus circunvoando o extremo da ilha. Ao magrelo ocorre algo.

O trator, com Nonato ao volante, Silvino de um lado e Arthur do outro, ambos de pé, equilibrados no estribo, contorna ligeiro a “Taxiway” e logo arranca, trabalhando no limite de sua possança, paralelo ao canal. À margem oposta, sobre pedestal rochoso, a igreja da Penha com sua frente voltada para o mar e no retrovisor, cada vez menores, os galpões da força aérea. Em estrada de chão batido alcançam um terreno baldio ainda nas dependências do aeroporto. Arthur e Silvino saltam da soleira sem esperar pelo estacar da viatura. Nonato estaciona mais à frente. Com o motor correndo e as mãos ao volante, aguarda o cumprir das incumbências delegadas aos colegas. Estes apanham, cada qual por um alça, a caixa de transporte, agora ataúde do pobre cachorro e a carregam oscilante até o alto de um barranco. Despejam seu conteúdo nas águas da baía. Procedem então à etapa seguinte do esquema arquitetado por Silvino. O terreno estende-se ao longo da orla norte da ilha, com vista para o Jardim Gramacho e os manguezais que formam o fundo da reentrância da Guanabara. É um grande lote escalvado, de chão arenoso com poucos arbustos ressequidos e lixo, lixo por toda parte. Além de abutres, reviram o entulho e a sujeira uma matilha de vira-latas xexelentos. Arthur, com o arco do protetor auricular em volta do pescoço, as conchas laranjas sobre clavícula e peito, assume a coordenação. Indica ao magrelo o flanco direito, para que este assome por trás e ele pela frente a canzoada já então desconfiada. Com cautela e em passos meticulosamente calculados, acercam-se. Arthur dá o sinal e lança-se impetuoso sobre a cachorrada, Silvino segue o exemplo, engancha entretanto no ápice de seu furor, o pé em um tonel enferrujado da Havoline e cai de cara no chão. Os cães a bater em retirada, passam rente ao funcionário caído, para dispersarem-se em seguida aos quatro cantos do mundo. Silvino ainda ergue a vista em meio à debandada, mas ao por se de pé já é tarde. Estaria tudo perdido, se não fosse por uma cadela desafortunada, manca e ainda mais maltrapilha que o resto. Não foi por muito que o Silvino também não deixou passar esta, com receio de pulga ou coisa pior. Mas havia de levar a cabo o plano. Abraça com força o animal e sente as costelas vibrarem com o seu rosnar. Arthur aparece para prestar auxílio. Imobilizam a cadela e a carregam à caixa de transporte, o ferrolho desliza e está presa. Um Electra da Varig levanta voo e não se ouve mais o seu latido.

É com a sensação de dever cumprido que os três funcionários retornam a caixa de transporte, agora com a cadela, aos demais volumes provenientes do aeroporto Pinto Martins. A situação foi resolvida a tempo para a transferência das bagagens daqueles passageiros que seguem viagem à outros destinos, nacionais ou internacionais.

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