Ex-colega

Original em branco e preto, a seção de anedotas da revista Siesta. Episódio 2

Revista Siesta
SIESTA
3 min readFeb 13, 2021

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Ilustração: André Silva

Atravessando a rua, encontrei um ex-colega de faculdade. Um alemão com os cabelos rijos de gel e penteados para trás, trenchcoat bege por cima de uma camisa estilo Gordon Gekko, óculos escuros da Cartier e earphones. Foi tão súbito o nosso encontro no canteiro central entre as faixas de rolamento, que não tive tempo para lamentar o meu azar. Veio o aperto de mão e abriu-se o inevitável lero-lero do “e aí, como vai? O que anda fazendo? Etc.”

Eu sempre evitei esse cara, mas acabava trombando com ele na biblioteca, na cantina ou por outros cantos do campus com certa frequência. Isso quando ele não se sentava ao meu lado na sala de aula. Aí eu mal conseguia suprimir um suspiro, um “puta merda” transvestido de interjeição. O sujeito não chegava a ser um mala de carteirinha, mas ele tinha um não-sei-o-que que causava estranheza, que incomodava e que assumia e se expressava de diversas maneiras. Quando fazia calor, vinha de mocassim, calça clara e a camisa aberta uns dois botões além da conta. Quase na altura do umbigo, ele pendurava o Ray Ban aviador de lentes espelhadas. Certa vez o encontrei fumando em frente ao prédio da reitoria. Quando abriu a boca, quase me derruba com o seu bafo. E como azucrinava a vida do Mr. Stevens, um professor inglês bizarro, ruim à beça e que dava Public Finance. Quando por um motivo qualquer, a aula empacava, o camarada logo mandava um “so Mr. Stevens, what‘s the plan?” E por fim, me irritava como da primeira fileira de carteiras, participava interessado do curso do senhor Schäfer, chamado “the business and the money cycle”.

Com os carros passando à nossa direita e esquerda, restou-me apenas torcer para que o papo fosse breve. Assim, quando me perguntou o que eu fazia da vida, respondi que não fazia nada e que tampouco pensava em pós-graduação. Um mínimo de bons modos me coagiu a lhe devolver a pergunta, apesar de saber de antemão que era furada. O cara, entretanto, veio inesperadamente com uma notícia boa. Ia mudar de cidade. — Vai voltar pra Alemanha? perguntei com indiferença. — Não, vou viajar por um tempo e depois xxx (não lembro o que disse). Então começou a contar como havia preenchido os dias nos últimos tempos. Tinha feito um ACF ou AFC, não guardei o acrônimo, sei apenas, que a tal sigla, se pronuncia em inglês. — Ah, sim. Um FAC, muito bom. — A princípio, fiz apenas pelo diploma, mas acabei aprendendo muita coisa útil. Você se interessa pelo mercado financeiro? — Ah, sim. Me interesso bastante. Menti. — Estou estudando com uma apostila da Bloomberg. Eles prometem que com sessenta por cento menos esforço, alcança-se, em média, uma nota quarenta por cento mais alta. Eu não fazia ideia do que ele estava falando. — Mas vamos combinar de tomar um café, só estou mais essa semana na cidade. — Claro.

Enquanto ele digitava o seu número no display do meu celular, eu me perguntava como, digo, sob qual nome, o salvaria na lista de contatos. Não sabia como se chamava. Me devolveu o aparelho, olhei pra tela, era o Max. Estava resolvido então. Nos despedimos. Ele foi para um lado, eu para o outro.

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