July Lifestyle Update

por Mathias Stenders com introdução de G. Sardinha

Revista Siesta
SIESTA
10 min readFeb 13, 2021

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Em berço de ouro: Uma espécie de prólogo

Conheci o jovem Stenders numa soirée na mansão de seu tio, o mecenas das artes, o filantropo e empreendedor Silveyra Telles. Na ocasião, o sobrinho não dissimulava o seu tédio. Sentado numa poltrona de design italiano e apoiando seus sapatos Salvatore Ferragamo sobre a mesa de centro, bicava o champagne e petiscava os canapés de caviar com palmito, enquanto Pedrinho Mattar martelava o piano. Sei disso, pois eu trabalhava no serviço de catering da festa. Se fosse depender das comissões da revista Siesta pelos meus ensaios de literatura, morreria de fome.

Seus traços fidalgos e seu ar cosmopolita me cativaram. E sou grato ao destino, que me propiciou a oportunidade de conhecê-lo. Eu passava recolhendo as taças vazias quando me chamou: „ô garçom! Vem cá. Te dou cem dólares se você conseguir fazer esse mala do piano parar de tocar.”

No intermezzo me aproximei discretamente do senhor Mattar e cochichei em seu ouvido que o senhor Telles desejava ouvir o jingle da concorrência. “Como blague, entende?” — completei. Pedrinho Mattar entendeu e com um largo sorriso, todo brincalhão, se pôs a tocar o tema. Silêncio sepulcral tomou conta do recinto. Eu nunca tinha visto alguém empalidecer de raiva, mas foi o que aconteceu com o Silveyra Telles, que não esperou a música terminar para esbravejar “Isso é um disparate!”

O senhor Stenders se divertiu muito com a cena e recobrou o seu bom humor. Também tomou simpatia por mim. Mais tarde, enquanto eu lhe preparava um coquetel, quis saber quem eu sou e o que faço da vida. Ao lhe dizer que sou crítico literário, seu entusiasmo aumentou ainda mais. Começou a falar de literatura e percebi que não conversava com um leigo. Sua erudição, sua vivência, seu gosto requintado, e, como não, o seu charme, me encantavam. Ele quis saber quem são as minhas referências literárias. Lhe citei alguns nomes e me respondeu que ele, por sua vez, vê literatura em tudo e não apenas na palavra escrita. “Na literatura, escrever é apenas um detalhe.” — me disse. A vida de grandes homens, de grandes mulheres, também é literatura e das mais belas!

Sendo assim, suas referências literárias vêm de todos os campos do conhecimento e da vida profissional. Enumerou alguns nomes em uma lista pouca ortodoxa que incluía Arnaldo Jabor, Richard Quest do programa Quest Means Business, Margaret Thatcher, Delfim Netto, Stendhal e Henry Kissinger.

Depois falamos de assuntos mais abrangentes como da infância e do despertar dos interesses que determinarão que caminho tomará a vida. O senhor Stenders me confidenciou que com apenas oito anos de idade, aos domingos, se levantava antes do raiar do dia para assistir Pequenas Empresas, Grandes Negócios. E qual não foi a sua surpresa, quando passando um fim de semana na casa do tio, descobriu que este fazia o mesmo!

Eu lhe preparava os drinques e ele me contava de sua vida. De como encontrou amparo no Zen Budismo, após o baque da falência do Lehman Brothers. Da frequente comparação com Thor Batista (Nunca atropelou um ciclista, mas já deu carona para a Luana Piovani!). Das suas conquistas: bicampeão da mais antiga competição de trenó do mundo, em Davos, Suíça. A honra de tocar a corneta na grande caça anual de Harewood Castle, em Yorkshire. A sua pontuação no programa de milhagem. Falou da sétima arte, do seu filme preferido (Jamaica abaixo de Zero) e do que considera um filme bosta (Central do Brasil). Falou de Andre Agassi e Tiger Woods. Falou por fim também dos seus medos. Que teme a receita federal (menos no aeroporto de Guarulhos, lá ele conhece o pessoal) e que tem fobia da classe econômica no avião.

Tomou o último gole do seu “old fashioned”, se levantou e pôs a mão sobre o meu ombro. Disse que tinha um favor a me pedir. Embevecido com essa exibição de pura classe, disse “tudo o que desejas, senhor.” Ele sorriu e tirou do bolso do seu paletó, um papel dobrado. “Escrevi isso no Baur au Lac, em Zurique, em um momento de introspecção. Era uma tarde quente no mês de julho…, mas, enfim, você me dirá se tem algum valor.” Titubeei algo como: “Mas senhor, não me julgo capaz de…” Não me deixou terminar a frase, dizendo: “Lhe peço que discuta este texto em sua coluna literária na revista Siesta. Acredite, me fará um grande favor.”

Cumpro, portanto, parcialmente com a minha promessa, publicando aqui o texto de M. Stenders. Digo parcialmente, pois como hei de pronunciar uma sentença sobre algo que transcende o horizonte limitado das belas-letras. O que lhes apresento não é a obra de um literato, portanto um sujeito que perpetua no papel o rancor de uma vida frustrada, mas de um senhor mundano, profundamente culto e dotado de senso prático. Pois vive a vida. Uma vida excepcional e com a qual podemos apenas sonhar.

Gaspar Sardinha,

fevereiro de 2021

July Lifestyle Update

Relax and join us! I’ll be your guide, your host, yours truly, eure Wenigkeit.

Late Cycle

Os dias vão ficando mais longos e os meus shorts mais curtos. A estampa do dia era de tartaruga e eu estava à beira do lago, tentando reconciliar o conceito de Mind at Large de Aldous Huxley com as idéias do relativismo pós-moderno.

Huxley diz que todos somos capazes de nos lembrar e ao mesmo tempo de observar tudo aquilo que já aconteceu, está acontecendo e vai acontecer em qualquer lugar do universo, em qualquer momento. O nosso cérebro e sistema nervoso agem como filtro pra nos proteger dessa massa de conhecimento em grande parte inútil e confusa.

O cara gostava de um alucinógeno, mas existe pesquisa que aponta na direção dele estar certo. A realidade objetiva consistiria então de tanta informação que seria impossível entendê-la por completo. O que nós humanos percebemos como realidade é sempre algo subjetivo. Até aí tudo bem, sempre suspeitei disso. Cada um no seu quadrado. É o tal do framing , você se olha no espelho do bar depois do terceiro drink e percebe que é mais bonito que o George Clooney.

O problema é que existe uma contradição. Se tudo é tudo e tudo é subjetivo, então, a grosso modo, a realidade objetiva não existe. E daí pro niilismo é um pulo. As idéias do relativismo pós-moderno, bastante presentes nas instituições acadêmicas, partem justamente dessa premissa. Já que não existe nada absoluto, as coisas devem sempre ser colocadas em relação umas com as outras. Parece ok mas é um terreno escorregadio. Isso inváriavelmente leva a narrativas de oprimido vs. opressor — um belo esconderijo pra gente misantrópica se disfarçando de bem-intencionada — com todas as ramificações que daí partem.

O absoluto então não só existe como deve fazer parte do nosso processo de decisão, mesmo que não dê pra entender ou definir o que ele é… Só que antes que eu pudesse terminar esse pensamento a Dita Cuja levantou e disse que ia dar um pulo na água. Ai cacete! Eu não tinha ouvido nada do que ela tinha dito durante a última hora — e ela não calou a boca!

Bom, paciência. Abri a segunda garrafa de Kung Fu Girl, um Riesling levinho, feito por Charles Smith, um rockstar entre os viticultores, coloquei uma pedra de gelo no copo e observei ela indo de maiô vermelho. O sol brilhava forte, criando reflexos iridescentes na água verde e no meu copo. Tomei um gole, respirei fundo, e percebi que estava no lugar certo.

LIFESTYLE TIP: As pessoas gostam de falar. Muitas vezes é bom deixar.

Life Itself

Muitos anos atrás eu estava em Genebra conversando com o dono de um banco quando começou a tocar “Whole Lotta Love” do Led Zeppelin. Ele virou pro seu sócio e disse:

Lembrei disso ontem quando começou a tocar “Whole Lotta Love” do Led Zeppelin. Eu estava numa varanda de (no máximo) dois metros quadrados com (no mínimo) dez outras pessoas. Nós dividíamos o espaço com três pés de maconha, alguns tomateiros, duas tochas e uma mesa cheia de drinks, cinzeiros, velas e lamparinas. Era tarde da noite e faziam 32 graus.

O álbum Led Zeppellin II é extremamente sujo, no melhor sentido da palavra, e quem colocou aquilo pra tocar aquela noite não foi nada menos que um gênio. Ouvi o primeiro verso “you need cool air…” enquanto um colombiano me explicava o conceito de hooker’s will (voluntad de puta) com um exemplo prático. Ele tinha sido oferecido um shot de tequila e recusado, dizendo que tinha que trabalhar amanh — pensando bem ele queria sim o shot. Voluntad de puta.

A música foi evoluindo e eu me peguei discutindo sobre a Noruega com uma russa. Russos são engraçados. Projetam uma imagem externa dura, firmemente influenciada por fortes concepções hierárquicas, mas internamente tendem a ser pessoas marcadas por uma sensibilidade e um romantismo incomparável. Ela era linda. Tinha o cabelo curto, até o pescoço, e a voz baixa, levemente rouca. Falava inglês com pouco sotaque. Ela me contou sobre a sua infância em Montpellier e sua avó. Dias quentes, secos, sob a luz da Provença. Disse que queria se mudar pra Noruega por conta das paisagens e do clima. Concordei, Oslo é realmente um belo lugar. Teria concordado também se ela dissese que queria se mudar pra Síria, ou Marte.

Depois fui abordado por um grupo de suíças no limiar entre hippies e ravers que queriam saber sobre a América do Sul. Chamei o colombiano com o hooker’s will pra me ajudar nessa empreitada, já que (i) ele não ia negar, (ii) é um saco ficar explicando as nuances e idiossincrasias do cone sul pra minazinha sem largura de banda ou vontade suficiente pra entender que existem realidades e pontos de vista diferentes dos dela e (iii) o cara era meio Don Juan e eu queria descobrir se as duas eram um casal.

Elas eram, mas não acreditavam em monogamia, pro espanto de ninguém. Não chegamos a falar muito sobre a América do Sul, já que elas só tinham perguntas sobre a Guatemala. Tudo bem, a gente tenta. A conversa então de alguma forma se transformou num monólogo onde uma delas discursava sobre a sua tese de mestrado — e ninguém podia interromper! — me levando a pensar “ai cacilda que gente chata!”

Saí de lá e me deparei com a russa, que me perguntou se eu queria ir pra casa. Eu queria, era tarde. Nos despedimos do anfitrião com um último shot e cambaleamos em direção a rua, rindo. Tinha sido lua cheia dois dias antes.

LIFESTYLE TIP: A vida apresenta certas sazonalidades que devem ser aproveitadas. Julho não é mês pra ir dormir cedo.

Spirit Animal

Os dois leitores dessa newsletter sabem que eu ando preocupado com a questão de como levar uma vida boa. É uma boa preocupação. Na Apologia de Sócrates, ele afirmou ter um daimonion (“algo divino”) que frequentemente o avisava — na forma de uma “voz” — sobre erros, mas nunca lhe dizia o que fazer. De fato, a gente sabe quando está fazendo coisa errada. O truque então é ouvir essa voz e viver de acordo com os próprios princípios. Sócrates inclusive morreu por conta disso.

Naquele dia o meu daimonion estava inquieto. Eu tinha passado muitos dias seguidos no escritório, lidando com picuinhas. A resposta veio rápido: fugere urbem! Marquei uma passagem pra Lavin, uma vila tradicional do Engadin, mais pro fim do vale. O plano era caminhar de lá até Ardez, por uma trilha que ofereçe várias vistas panorâmicas dos alpes e do parque nacional Suíço. É tudo aqui do lado.

Não sou só eu que tenho alguma coisa com aquele lugar. O exemplo mais famoso talvez seja o pintor italiano Giovanni Segantini que emigrou pra lá no fim do século dezenove e capturou a essência da região de um jeito inexplicável. Tem algo a ver com a luz. Segantini teve uma vida difícil e durante seus últimos anos se interessou pela filosofia de Nietzsche. Suas pinturas expressam sua crença no poder da natureza, na mortalidade do homem e, em suas palavras, “na existência de todas as coisas que tem suas raízes na mãe terra”.

São belos temas! E eu fui levando isso comigo enquanto passava por florestas, vales e cachoeiras. A trilha foi ficando mais íngreme, até que eu passei por um grupo de marmotas que me avisaram que eu estava perdido. Não porque eu entendi o assobio delas mas sim porque eu tinha acabado em outro vale — e esse não era o plano. Tudo bem, abri o mapa e traçei um novo curso. De lá eram só mais 22km até Ardez. Ok, ainda tinha o dia inteiro. Por sorte era tudo plano até o fim, onde teria que descer tudo o que subi.

O caminho passava por várias fazendas pequenas, muitas delas ainda da época do Segantini, onde se criavam vacas e ovelhas. Eu estava feliz, não tem mais fugere urbem que isso. Ao passar por uma cerca elétrica, vi uma placa que dizia:

“CUIDADO — Vacas Protegem seus Bezerros — MANTENHA DISTÂNCIA!”

Tudo bem, não tinha nenhu — Puta que o pariu! Bem no meio do caminho, uma vaca. E atrás dela, um bezerro. Tentei continuar mas a vaca começou a avançar. Not good. Tentei achar outro caminho mas a trilha cortava pelo lado da montanha e eu teria que subir um paredão pra passar por cima das vacas. Esperei alguns minutos. A vaca só chegou mais perto. E começou a mugir. Alto. Gritar.

“Fuck it!”, pensei. Não é assim que eu vou morrer! Ou é? Não foi. Subi o paredão o mais rápido possível com o coração na garganta e a vaca atrás de mim. Chegei do outro lado do pasto, fechei a cerca elétrica e me senti vitorioso. A vaca foi um páreo digno e lutamos uma luta justa. Depois foi só descer uns 1200m de altitude até Ardez, com pernas que já tinham desistido fazia tempo, e depositar a minha carcaça no primeiro restaurante que achei. Foi o melhor pizzocheri que já comi.

LIFESTYLE TIP: O poder da natureza, a mortalidade do homem e a existência de todas as coisas que tem suas raízes na mãe terra são temas muito bonitos quando abstratos. Na realidade, eles são a fonte da maior parte dos nossos medos.

Things Happen

Outro dia eu tive uma reunião com um sujeito engraçado, bastante extrovertido, que tinha algumas coisas interessantes a dizer. De longe a mais interessante foi quando ele viu um carrinho com um anúncio de sanduíches na lateral e me interrompeu pra dizer “oh, I thought those were real sandwhiches!”, seguido por “they’re not, just a picture…”.

LIFESTYLE TIP: Semiótica!

Grande abraço e até a próxima!

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