No olho da rua: os desempregados de Marienthal.

Texto de Gaspar Sardinha e ilustrações de Oliver Maag

Revista Siesta
SIESTA
21 min readMay 27, 2021

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1.

A chuva fustigava a janela do Café Kafka. Eu me encolhia ao lado da salamandra acesa e a garçonete passava de vez em quando, mas não com a frequência necessária, para repor a lenha. O único outro freguês fazia o mesmo que eu, da sua mesa também do lado do braseiro candente. O café que há pouco me fora servido fumegava na chávena e seria tudo muito aconchegante se não fosse um dia tão desgraçadamente frio e húmido, com o céu tão enfarruscado.

A porta se abriu e com a lufada gélida, como se a rua o tivesse cuspido, entrou um homem que parecia um faroleiro da Nova Escócia com a sua capa de chuva e as galochas. Não sei o quanto ele enxergava através de seus óculos embaçados, mas sem tirá-los e nem pendurar a capa no cabide, veio em nossa direção, deixando pegadas no chão de tacos. A garçonete lançou um olhar sombrio em sua direção. Achei que fosse se esquentar perto do fogo, mas tirou debaixo do pano emborrachado umas revistas e disse: “A publicação mais rebelde de Viena. Dois euros.” Eu sabia que tinha apenas um euro na carteira e disse não obrigado. O vendedor foi ao freguês do lado, que lamentou “só tenho um Euro, senão eu comprava.” O homem da capa de chuva encolheu os ombros e disse “Fica pra próxima” e “Auf Wiedersehen”.

Antes que o colportor saísse, virei para o rapaz do “só tenho um Euro” e sugeri que comprássemos a revista em consórcio. Um Euro de cada. Ele concordou e chamei o senhor já no limiar da porta, dizendo que adquiriria um exemplar.

A revista ficou comigo. Na capa se vê uma mulher de camiseta vermelha, KOMintern estampado na altura do peito e logo abaixo: A força da luta de classe da união sindical dos trabalhadores. Folheando as páginas de papel de baixa qualidade, encontrei um artigo do cara que acabara de me vender a publicação. O reconheci na foto, apesar da péssima resolução. Se chama Walter e voltei a encontrá-lo duas semanas depois, no mesmo Café.

2.

Ele se lembrou de mim. “foi você a alma misericordiosa que comprou a Uhudla (assim se chama a revista supostamente mais rebelde de Viena). Foi a única que vendi no dia.” Eu falei que tinha lido o seu artigo e o convidei a se sentar. “Escrevo uma coisinha ou outra.” — respondeu já se acomodando na cadeira. E para a garçonete: “Um Schnaps!”

Conversamos por um bom tempo e Walter puxava o papo para o lado que lhe interessava, que era o do ativismo político e eu procurava descobrir mais da sua vida pessoal, pois me parecia ser um homem instruído e me perguntava como veio a ser colportor. Mas como evitava o tópico, não insisti. Encontramos, enfim, um meio termo na literatura. Não nas belas letras propriamente dito, mas num livro, o que já é alguma coisa. Walter percebeu o meu interesse e disse de modo enfático:

“Imagina uma cidade, na qual do dia para a noite, todos os seus cidadãos perdem o emprego. Taxa de desemprego 100%.”

Exagerou, como vim logo a saber, mas a essência do livro é realmente essa. Os desempregados de Marienthal, eis o título, é um estudo empírico sobre o impacto social do desemprego. Walter prossegue:

“O que sabemos sobre o desemprego? Temos estatísticas e temos reportagens sociais. Mas entre a frieza dos números e o acaso, ao qual a reportagem é suscetível, existe uma lacuna…”

Mas vendo que se precipitava, investiu por outro flanco:

“Marienthal é hoje um distrito de Gramatneusiedl (município com cerca de 3600 almas ao sudoeste de Viena). O povoado nasceu como vila operária, na qual viviam com as suas famílias, os empregados de uma fábrica têxtil instalada na região desde a primeira metade do século 19. Conforme a fábrica foi expandindo, Marienthal foi crescendo. Com poucas exceções, todos os trabalhadores da vila tinham o mesmo empregador. As exceções eram o padeiro, o açougueiro, sapateiro, alfaiate etc., a professora da escola primária, o prefeito e dois policiais. No começo dos anos trinta a fábrica fechou as portas, e foi todo mundo para a rua da amargura. E você precisa entender o seguinte: que a fábrica não era apenas o ganha-pão desse pessoal, ela era o ponto central da vida deles e provavelmente da vida dos pais deles e tudo, absolutamente tudo girava em torno da indústria e de repente ela deixou de existir e Marienthal passou a ser um ponto supérfluo no mapa, assim como para os seus habitantes, suas próprias vidas passaram a parecer supérfluas.”

“Tinham perdido sua razão de ser.”

“Exato. E um grupo de jovens sociólogas e sociólogos da universidade de Viena enxergou nesse cenário um tanto desolador, a oportunidade de conduzir um estudo através do qual visavam obter o quadro da situação psicológica de um povoado desempregado.”

“Interessante.”

“Muito. E amanhã vou pessoalmente à Marienthal. Primeiro de maio, sabe?”

“O que é que tem lá no primeiro de maio?”

“Nada. Na verdade, até menos que em outros dias, por ser feriado. Mas já virou tradição para mim, todo ano no dia do trabalho, peregrinar à Marienthal. Quer vir também?”

Topei. Não tinha nada melhor para fazer e ficamos combinados de nos encontrar na manhã seguinte na estação.

3.

A gare estava cheia, mas não foi difícil encontrar o Walter. Era, em meio à multidão, o cara de camisa vermelha e lenço vermelho e de boina ou quepe, sei lá.

Depois de quinze ou vinte minutos de viagem, seguindo os trilhos do ramal Leste da estrada de ferro, descemos na estação de Gramatneusiedl perto do horário do almoço. O lugarejo é uma sonata monocórdica tal qual a paisagem espalmada que o rodeia. Tomamos a rua principal e caminhamos por um longo trecho, sem dar com uma alma viva. Os poucos estabelecimentos, uma corretora imobiliária, um estúdio de cabeleireiro, uma venda, estavam todos fechados. Walter começou a contar:

“Em 1830, este quinhão de terra, assim como toda a redondeza, era uma vasta pradaria cortada aqui e ali por cursos d’água, afluentes do rio Leitha, que por sua vez, corre sem pressa em seu meandro sinuoso pela planície húngara, até enfim se unir ao Danúbio. O espírito empreendedor de um senhor, um tal de Hermann Todesco, enxergou no relevo plano e sem obstáculos naturais, na proximidade à capital do império e na abundância de recursos hídricos, as condições ideais para a implantação de sua tão sonhada fábrica de tecelagem. Comprou um velho moinho às margens da Fischa-Dagnitz, ergueu o galpão e as primeiras casas para os funcionários e em pouco tempo, trabalhadores oriundos da Morávia e da Bohemia operavam o maquinário.”

A rua que descíamos é flanqueada pelo que parece ser uma interminável fileira de casas térreas de notória mesmice arquitetônica. A vila não foi erguida ao redor de uma praça ou da igreja matriz, mas se espicha como uma serpente, acompanhando a via pela qual agora ecoava solitária a voz do Walter:

“Conforme os anos foram passando, o empreendimento foi crescendo e a produção aumentada, intensificada e diversificada. A fábrica ganhou novas alas e novos prédios. Foi adquirido equipamento mais moderno e a mão de obra de tudo quanto é província sob o domínio da coroa veio se instalar por estas bandas. No final do século, a comunidade em torno do conglomerado têxtil já não se resumia mais ao punhado de famílias dos primeiros anos, sob a tutela paternalista de seu empregador, o senhor Todesco. As ideias que então moviam a engrenagem do mundo chegaram também à Marienthal. Os trabalhadores se sindicalizaram, tanto o partido socialista, quanto o partido cristão e o nacional-germânico fincaram raiz no solo fértil do proletariado, inúmeros clubes e agremiações, cada qual com sua “couleur” política, foram fundados, também se organizaram as primeiras greves, enfim, tudo ao que uma sociedade industrializada dá direito.”

Comentei que pelo que me contava, isso aqui era um agito. Ao que me foi respondido:

“A vida social na vila era, levando-se em conta sua localização em plena zona rural, pujante e estreitamente entrelaçada com a de Viena. Seus residentes iam à capital fazer compras, resolver pendências ou por lazer, para ir ao teatro ou assistir alguma opereta.”

Chegamos a um monumento dedicado ao senhor Todesco, insolitamente “deplacé” no meio do estacionamento vazio de um supermercado fechado. Adiante, a fileira de casas é intercalada por lotes baldios. Onde o povoado gradualmente esmorece, ele parece uma boca banguela. Meu amigo diminui o passo e na sombra de uma placa de publicidade, parando para descansar, respirou fundo para então prosseguir com a história:

“É claro que com a eclosão da primeira guerra mundial esse estilo de vida foi abruptamente interrompido. A fábrica teve que adequar a sua linha de produção às necessidades das tropas imperiais e a escassez generalizada de praticamente tudo também atingiu os “Marienthaler”. Sem contar que muitos perderam pai, filho ou irmão no campo de batalha. Mesmo assim, a indústria têxtil sobreviveu aos anos de conflito e retomou na primeira década de república austríaca, o caminho do crescimento. Continuou a expansão e nos anos finais da década de vinte, o número de empregados chegou ao seu máximo, desde a fundação da tecelagem. E quanto mais alto se sobe, maior é a queda.” — disse ominosamente.

A rua principal com os blocos da vila operária. Na foto de cima (de minha autoria) em 2019 e na da baixo em cartão postal de 1912 (fonte: Archiv für die Geschichte der Soziologie in Österreich (Graz), Walter Dienstl: Bildersammlung »Marienthal-Gramatneusiedl«, Signatur 43/095.)

4.

Marienthal: Às margens do córrego Fischa-Dagnitz. 35 minutos de trem de Viena a Gramatneusiedl. Mais meia hora a pé. É o que consta na introdução do livro. Mas se dos anos trinta do século passado para os dias de hoje os trens ficaram ligeiramente mais velozes, a caminhada, em contrapartida, nos custou mais tempo. Walter não quis me dizer por que mancava, também não quis aceitar a minha ajuda. E no final das contas levamos mais de uma hora para alcançar os primeiros dois blocos da vila operária, perfeitamente simétricos à esquerda e à direita da rua.

São construções retangulares e de dois andares e sem nenhum tipo de adorno na fachada. Eu via as duas fileiras de janelas, algumas com cortina, a calha, o telhado e as chaminés de tijolo. E pela calçada, vinha em nossa direção, uma mulher usando hijabe e empurrando um carrinho de bebê. Cruzamos com a moça e deixamos os dois prédios para trás. Depois vem uma pequena praça com uma árvore, tanto de uma banda da via quanto da outra. Portanto, corrijo, duas praças. E em seguida mais dois blocos, imagem e semelhança dos primeiros, contabilizando quatro edificações. Walter desmoronou exausto no banco de baixo de uma castanheira e enquanto recuperava o fôlego, eu lia uma plaqueta afixada na mureta de pedra. Diz:

Marie Jahoda 1907–2001.

“Como cientistas, pisamos no solo de Marienthal. Nós o deixamos com um único desejo: de que o trágico ensejo para tais experimentos seja varrido dos nossos tempos.”

Em memória da pioneira da pesquisa social.

O pigarrear pouco saudável do meu companheiro me fez virar e vê-lo com o braço levantado, sinalizando que queria dizer algo assim que abrisse caminho pelo catarro. Tossiu mais um pouco e com a voz rouca retomou a narrativa:

“É verdade que de 1926 em diante a empresa passou por algumas turbulências que acarretaram demissões em massa. Mas as oscilações pareciam ser esporádicas e o patamar normal costumava ser reestabelecido depressa. Funcionários e funcionárias eram então recontratados. De modo geral, os anos de vinte e sete, vinte e oito e começo de vinte e nove, não foram ruins. Novas máquinas foram adquiridas e na esfera administrativa, se traçava inclusive planos para ampliar a gama de tecidos produzidos. Entretanto, do meio do ano para frente, a carruagem desandou de vez. Após um último esforço, no mês de julho, foi fechada a fábrica de fiação, seguida pela tipografia em agosto, a lixívia em setembro e por fim, em fevereiro de 1930, veio o cerramento da tecelagem e a desativação das turbinas. Sessenta trabalhadores foram mantidos na folha de pagamento por mais algum tempo, para levarem a cabo o desmonte e a demolição da estrutura. O restante, assistiu da janela de casa o vir abaixo do seu antigo local de trabalho. O coração da vila, a fábrica, não batia mais e o restante do organismo, a comunidade de Marienthal, perdeu sua fonte de sustento.”

Perguntei quem foi Marie Jahoda.

5.

“A Marie, meu caro Gaspar, foi quem redigiu o texto, portanto quem botou no papel o que hoje conhecemos pelo título de Desempregados de Marienthal. Fez isso com 25 anos de idade.”

“Então é dela o trabalho.”

“Não só dela. Ela divide a autoria, ou ao menos o seu nome divide o espaço na capa do livro com o de outros dois senhores. Paul Felix Lazarsfeld e Hans Zeisel. O primeiro foi por alguns anos seu esposo e teve papel importante na concepção do projeto. Na verdade, foi quem coordenou tudo. Era um sociólogo de certo renome e em 1933 emigrou para os Estados Unidos onde fez carreira acadêmica. O segundo era um especialista em estatística. Introduziu novos métodos de levantamento e processamento de dados, deve ter tido os seus méritos, mas não sei mais ao seu respeito. E temos, claro, o restante da equipe. Dezessete pessoas, nem todos sociólogos, alguns contratados apenas como ajudantes para as disposições logísticas. E, quase me esqueço, Lotte Danziger, psicóloga e posteriormente professora de psicologia na universidade de Graz. Comandou a maior parte dos trabalhos in loco. À essas quatro pessoas (Jahoda, Lazarsfeld, Zeisel e Danzinger) é atribuído o estudo como o conhecemos hoje. Por que a Lotte Danzinger não aparece na capa me é, todavia, um mistério.” (Pesquisas subsequentes indicaram a possibilidade de que foram divergências políticas o motivo para o nome da jovem psicóloga ser riscado do frontispício. Mas não se sabe ao certo.)

“Beleza. Temos, assim, uma vila cheia de desempregados e esses cientistas sociais que vão estudar o fenômeno.”

“Presta atenção…” — disse Walter, se erguendo com certo esforço do banco. “O time de pesquisadores se instalou em Marienthal no final de 1931 e ficou por aqui até meados de 1932. Um ano antes, Paul Lazarfeld havia começado com o planejamento. O contexto histórico tem que ser levado em conta. E qual era esse contexto? Em Viena, o partido socialista governava com maioria absoluta desde 1919. Era a famosa Viena vermelha. Então, depois de uma década, as reformas impostas pela prefeitura, mostravam seus frutos e suas mazelas. E os membros da equipe do estudo de Marienthal foram amplamente influenciados pelas experiencias feitas neste período.”

“Sei. A era dos grandes conjuntos habitacionais, do Karl-Marx-Hof, da Ringstraße do proletariado, da assistência social…”

“De acordo com a Marie Jahoda, quem sugeriu para eles fazerem o trabalho de campo precisamente aqui, onde nós dois batemos este papo tão agradável, foi ninguém menos que Otto Bauer (presidente do partido socialista austríaco entre 1918 e 1934).”

“Não foi ideia deles, então.”

“Não. Imagine, foram conversar com o Otto Bauer a respeito de um levantamento que pretendiam fazer acerca do tempo livre, do tempo de lazer dos trabalhadores. O célebre fundador do austromarxismo, Otto Bauer, quase caiu da cadeira. Como é que eles podiam se preocupar com lazer em tempos como este? O desemprego batendo de porta em porta, legiões de desocupados sem perspectiva alguma. É o desemprego que deve ser o foco da pesquisa, e não se o sujeito passa o feriado tomando cerveja, jogando peteca ou brigando com a mulher. E o senhor Bauer conhecia a sina de Marienthal e… E tinha um aspecto que o interessava profundamente, que era o do engajamento político do indivíduo desempregado. Seriam as massas sem salário o combustível da revolução? Talvez até conditio sine qua non para o levante?”

Panorama da área da fábrica em 1965 (à esq.) e da vila operária (à dir.) (fonte: Archiv für die Geschichte der Soziologie in Österreich (Graz), Walter Dienstl: Bildersammlung »Marienthal-Gramatneusiedl«, Signatur 43/036.)
O córrego Fischa-Dagnitz em 2019

Seguimos pelo que resta da vila operária. Ao fundo, a chaminé de tijolos, esguia e solitária, é o único remanescente do outrora imenso complexo têxtil. Mantém-se de pé, além de parte dos alojamentos, que foram reformados em 2008, o antigo hospital e a bela mansão do diretor da empresa. No terreno da fábrica, se instalou em 1962 outra indústria, um fabricante de acrílico que fechou as portas em 2016. Ao lado dos galpões vazios, às margens de um córrego esmirrado, há uma concessionária de carros seminovos e atravessando a ponte, algumas dezenas de metros adiante, uma mesquita, a mesquita e centro cultural islâmico “Valide Sultan Camii”. Mas não fomos tão longe. Ainda antes da ponte, Walter estancou diante de uma casa acanhada entre blocos de apartamento novinhos em folha, alguns ainda em construção. Com seu telhado duas águas e as janelas pequenas, parece estar lá há muito mais tempo que as edificações no entorno.

“Chegamos.” — diz com satisfação.

“Chegamos aonde?”

Me puxou pela manga da camisa até a porta da casa, que abriu, não estava trancada. Entramos. É um museu, do chão ao teto fotos e quinquilharia, acho que o nome certo é memorabilia dos tempos da fábrica do senhor Todesco. O espaço é pequeno, mas o material da exposição não é, de maneira alguma, parco. Walter, entusiasmado, me mostrou tudo e explicou que a casa é uma reconstrução fiel da antiga cooperativa, uma espécie de mercado da vila. Havia, nos fundos do recinto, um banco no qual nos acomodamos. Sobre nossas cabeças, afixados à uma das vigas que sustenta o telhado, os retratos de Jahoda, Lazarsfeld, Zeisel e Danzinger. Retomou a palavra, Walter.

“Escute, estamos conversando há horas, há dias, mas ainda não te falei nada do estudo. Quero dizer, a respeito de seu conteúdo, da metodologia e dos resultados. Isso me parece impossível, é algo tão simples, a vila, os desempregados, os sociólogos, mas é da minha natureza ser difuso, prolixo, dar mil voltas antes de chegar ao ponto, me alongar em pormenores, enfim. Mas agora, palavra de honra, vamos ao que interessa.”

6.

“Com baixo orçamento e grande empenho, os envolvidos na pesquisa, entre idas e vindas, passaram 120 dias em Marienthal. O objetivo do estudo era a vila assolada pelo desemprego e não o indivíduo desempregado. Desejavam obter um inventário abrangente da existência no povoado, retratando fatores psicológicos complexos através de critérios objetivos. Cada observação feita pelos pesquisadores é complementada por relatos dos moradores afetados, e cada estudo de caso é confrontado com fontes estatísticas, ou seja, as informações subjetivas são comparadas com as informações consideradas objetivas. Na época, a vila contava com 1486 habitantes (712 homens e 774 mulheres. 318 tinham menos de 14 anos), em 478 domicílios.

Mais que qualquer outra coisa, o que alavancou o status do livrinho para o de clássico das ciências sociais, foram os métodos inovadores e pouco ortodoxos aos quais recorreram para obter os dados. Vou pular o habitual levantamento estatístico populacional, que é óbvio, e falar dos que são novidade. Para começar, todavia, pelas estatísticas, temos os livros de contabilidade da cooperativa, que nos dão um quadro dos hábitos de consumo antes e depois das demissões. E o inventário das refeições de quarenta famílias assim como verificação da merenda das crianças no dia anterior e no dia posterior ao pagamento do auxílio desemprego (o auxílio desemprego seguia um ciclo quinzenal). E temos os protocolos que abrangem uma porrada de coisas. Vão desde notas dos tópicos de discussão no boteco até os presentes de natal de oitenta criancinhas (quantos presentes, quanto custaram etc.). Além disso, resultados de consultas médicas, depoimentos de professores sobre o desempenho escolar dos alunos, informações sobre atividades assistenciais da comunidade e da paróquia, volume de vendas do sapateiro, do açougueiro, do alfaiate, do cabelereiro, confeiteiro e do restaurante que ficava onde hoje é o centro cultural islâmico. Livros emprestados pela biblioteca municipal, assinatura de jornais, número de membros nos diversos clubes e agremiações e resultado de eleições. Boletins de ocorrência, denúncias e reclamações. Questionários sobre o que hoje chamaríamos de “time management” e um cadastro geral, no qual constam todas as 478 famílias, para cada membro um documento próprio, com dados pessoais, observações referentes às condições de habitação e da vida familiar.”

“E eles conseguiram processar essa enxurrada de dados e transformar em algo moderadamente inteligível?”

“É um livrinho, como você sabe. Tem lá suas 130 páginas. E a Marie Jahoda, jovem como era, conseguiu algo admirável, já que o estudo é muito bem escrito. Ela apresenta e interpreta os dados clara- e sucintamente, relata as experiências dos pesquisadores de maneira cativante e conclui sem medo, fazendo ressalvas quando necessário.

Ela começa traçando um panorama da vila, histórico e social, para em seguida passar a falar do padrão de vida da população desempregada. Aqui aborda o ciclo quinzenal do auxílio desemprego, como tudo gira em torno dessa merreca tão importante, explica como o sistema funcionava na Áustria dos anos trinta, quem tinha direito a quanto e divide as famílias de Marienthal em categorias, de acordo com o montante recebido por cabeça. Fala de como se viravam com o dinheiro contado, cortando o número de refeições, trocando açúcar por sacarina, alimentação deficitária… e eu podia ficar falando por horas da desgraçada situação em que se encontravam os que aqui viviam, mas voltemos à metodologia, que tem coisa interessante ainda.

Por exemplo: O professor na escola primária, a pedido dos pesquisadores, passou aos seus alunos a tarefa de redigirem uma redação com o tema “o que quero ser quando crescer”. Eis a resposta de um garoto de doze anos: “Eu quero ser piloto, capitão de submarino, cacique de uma tribo de índios ou mecânico. Mas receio que será muito difícil encontrar um posto de trabalho.”

“Pragmático.”

“Ou essa outra tarefa escrita, com o tópico “o que eu gostaria de ganhar no natal”. Estimou-se o preço dos itens (brinquedos, livros etc.) listados pelas crianças, calculou-se uma média que foi então comparada ao valor médio dos presentes com os quais sonhavam as crianças dos povoados vizinhos, que haviam escrito sobre o mesmo assunto, e deu no seguinte: 12 Schillings, o valor médio dos sonhos dos filhos e filhas de Marienthal, 36 Schillings o dos da criançada das regiões adjacentes. E olha que um terço das redações dos alunos de Marienthal começam no subjuntivo, como “Se meus pais não estivessem desempregados…”.

Bastante original foi também a forma como observaram o gradual esmigalhar-se da noção do tempo dos desempregados. Postaram um cara com cronômetro na mão, que de seu lugar secreto na janela de uma casa, marcava os minutos e segundos que os habitantes de Marienthal levavam para subir ou descer a rua principal, anotando inclusive quantas vezes cada um empacava, digo, quantas pausas a pessoa fazia ao longo destes 300m. O resultado é interessante. Dos 42 indivíduos que pararam três vezes ou mais no meio do caminho, 39 eram homens. E calculada a velocidade média, chegou-se à conclusão pouco surpreendente de que as mulheres em geral caminhavam mais depressa. A razão, e para atiná-la não é preciso ser nenhum gênio, era que a maior parte das mulheres, com ou sem fábrica, tinham um lar a cuidar. As tarefas domiciliares as mantinham ocupadas. Já os homens… de 100 entrevistados, 88 não levavam consigo um relógio. Jahoda conclui: “Aqueles que não precisam mais se apressar não começam nada e gradualmente deslizam de uma existência regular para o vazio ilimitado.” E: “Para os homens sem emprego, a divisão do dia em horas, perdeu o seu sentido. Levantar-se da cama, almoçar, ir dormir, esses são os pontos de orientação que ainda restam.”

Na segunda frase a autora se refere a um questionário, no qual os moradores são solicitados a preencher uma grade de horário com as atividades que efetuam no dia a dia. O relato de um desempregado de 31 anos é característico para tantos outros:

8–9h da manhã: passeio até os trilhos da ferrovia. 9–10h: em casa. 10–11h: Na esquina de casa, vendo o movimento. 11–12h: almocei. 12–13h: dormi. 13–14h: passeio até o córrego. 14–15h: Fui à venda do senhor Teer. 16–17h: Fui buscar leite. 17–18h: Brinquei com o meu filho. 18–19h: jantei. 19h: Fui dormir.”

“O cara levou uma hora para buscar leite?” — observei.

“A demora é um indicador do ócio. O armazém do senhor Treer ficava a três minutos da casa do entrevistado. Outro desempregado, este de 33 anos, formulou da seguinte maneira o que se passou em sua vida entre às 10 da manhã e às 12h: “No meio tempo veio o meio-dia” (einstweilen wird es Mittag). Essa frase tornou-se célebre, já que virou o título de um longa-metragem de 1988. Acho que pega bem a essência do marasmo que era a vida destes senhores.

Mas falando assim, dá a impressão de que o mal que assolava estas plagas era unicamente a letargia. E não foi bem assim. A situação era extremamente crítica. Os agricultores da região relatavam furtos de gado, galinha, legumes, batata… E a prática se tornou tão corriqueira que muitos desistiram de levar as denúncias à polícia. Na vila, gatos e cachorros desapareceram um a um e todos sabiam que fim levaram. As mães remendavam a roupa dos filhos e das filhas com o pano de seus vestidos e do paletó e das camisas do pai e no final andavam todos esfarrapados. Os sapatos dos moleques eram consertados até não dar mais, até se desintegrarem e crianças deixavam de ir ao colégio por falta de calçado.

O pátio e a parte do fundo de um conjunto habitacional em 2019 (foto de minha autoria) e nos anos 20. (fonte: Archiv für die Geschichte der Soziologie in Österreich (Graz), Walter Dienstl: Bildersammlung »Marienthal-Gramatneusiedl«, Signatur 43/068.)

Evidentemente, cada família lidava à sua maneira com os tempos de penúria. Algumas melhor, outras pior. Um capítulo inteiro do estudo é dedicado precisamente a este fenômeno. Jahoda, Lazarsfeld e companhia dividem os 478 domicílios em quatro categorias, de acordo com a postura dos residentes diante da falta de trabalho e de dinheiro. Avaliaram que em quase metade dos lares, reinava um estado de resignação. Assim, os integrantes desse grupo foram etiquetados de resignados. Nele, o quadro característico era por um lado o de completa falta de esperança e falta de planos para o futuro e a existência reduzida ao indispensável. Por outro, entretanto, conseguiam manter uma certa ordem e estabilidade em suas vidas. Cuidavam da limpeza da casa, das crianças e na medida do possível de si próprios. No que se diferenciavam dos apáticos, que além de não crerem mais num futuro melhor, largaram mão de procurar manter as aparências. Andam maltrapilhos e sujos, a morada largada às traças, suas crianças à divina providência e procuram consolo na bebida. De acordo com os pesquisadores, ¼ dos lares ruíram a tal ponto, que se enquadravam no grupo dos apáticos. Claro que já havia famílias disfuncionais antes do fechamento da fábrica, mas o desemprego impulsionou a desgraça.

Seguindo os critérios dos sociólogos vienenses, as demais famílias se encaixam nos grupos dos íntegros (eu chamaria de perseverantes) e dos desesperados. Designações autoexplicativas, creio eu, mas vamos lá. Os primeiros são aqueles que zelam pelos seus entes e pelo seu lar, que preenchem seus dias com diversas atividades, que tecem planos para o futuro e que continuam a procurar trabalho. Os desesperados estão desesperados. Não são existências arruinadas como a dos apáticos, mas diante da sensação de que qualquer esforço será em vão, caiem na depressão e não se empenham para sair dessa situação.”

Deixando, o homem falaria até Deus sabe quando. Por isso achei bom intervir:

“Walter, a que horas parte o último trem?”

7.

Walter, que não tem relógio, olhou o céu através de uma espécie de claraboia logo abaixo do telhado do museu, e disse que era bom irmos voltando. Do lado de fora, duas garças ou algum bicho parecido, adejaram à meia altura para pousarem em seu ninho no topo da chaminé da extinta fábrica têxtil. De algum canto nos alcançava os sons de uma televisão ligada, que tentei decifrar, mas sem sucesso, enquanto subíamos a rua principal sentido Gramatneusiedl. Caminhamos em silêncio e num passo ainda mais lento que na ida. Walter não é daqueles corcéis que arrancam em direção à cocheira. Parecia cansado, abatido. Uma hora e meia mais tarde chegamos à estação. Por um milagre, na hora certa para pegar o trem de volta. O último trem, entende-se. E recostados nas poltronas com o logotipo da ferrovia estatal austríaca e os trilhos correndo sob nossos pés, resolvi reatar a conversa.

“Nesse tipo de pesquisa, como é a de Marienthal, me pergunto como eles fazem para não deixarem tão na cara que tudo o querem é se enxerir na vida alheia. Sei da importância do trabalho, não é isso, mas acho que tem que se ter em mente que é a dor humana que esse pessoal da universidade tomou como objeto de estudo.”

“Eles tinham um código de conduta, digamos assim, que consistia mais ou menos no seguinte: que nenhum dos engajados na pesquisa devia se comportar como repórter ou mero observador. E que tinham que procurar a se encaixar na vida da vila, como membro útil da comunidade.”

“E como eles faziam isso?”

“Por um lado, através de ações beneficentes, como doação de roupas. Que provou ser bastante elucidativo no que diz respeito às necessidades mais urgentes das famílias e que deu uma primeira ideia do estado dos domicílios, já que os sociólogos iam de casa em casa para fazer o levantamento das peças de roupa mais requisitadas. Também foi fundamental para estabelecer um certo vínculo entre os forasteiros e a população local. Se pode dizer que a senhora Danzinger, que planejou e coordenou a ação, preparou o terreno para os seus colegas. Um dos pilares centrais do estudo, a história de vida das trabalhadoras e dos trabalhadores, foram obtidas na base da confiança conquistada através da campanha do agasalho. Outros serviços de assistência foram as consultas médicas e as sessões de aconselhamento para os pais. Que, como você pode imaginar, contribuíram substancialmente para a compreensão de aspectos chave da existência dos habitantes de Marienthal. Por outro, cursos como o de costura e o de ginástica para meninas e a participação em agremiações políticas, promoviam uma convivência mais informal com parte da população e provaram ser também de suma importância para o projeto.”

“Já comentei isso antes, mas me custa imaginar como eles sintetizaram esse misto de impressões, de estatísticas, de depoimentos pessoais e tudo o que você citou até agora, em algo que… que chega a algum tipo de conclusão.”

“Foi realmente um feito literário, o da jovem Jahoda. Todo o estudo é intercalado com elementos narrativos: cada formação de tese, cada estatística é complementada por relatos, redações, atestados médicos e o mais. Ela transformou um trabalho científico em um relatório social.

E a conclusão, apesar do teu receio, é clara. Encontraram em Marienthal um estado de embotamento geral. O engajamento político, o furor das ideologias, respondendo Otto Bauer, não se inflamou com o combustível da insatisfação, mas abrandou, mirrou. Apesar de disporem de mais tempo livre, os habitantes da vila se engajaram menos em atividades coletivas e em atividades de um modo geral. O número de livros alugados na biblioteca por exemplo sofreu queda acentuada, mesmo com o serviço passando a ser gratuito. Clubes e sociedades de todo tipo se dissolveram, a praça esportiva às moscas, a praça malcuidada, com capim alto e a vida pública reduzida aos encontros esporádicos dos desocupados que deambulavam pelas ruas.”

Pela janela corriam os blocos cinzas dos subúrbios de Viena. E Walter, encarando o seu próprio rosto refletido no vidro, finaliza: “Existência em derrocada. Resignação.”

Nos despedimos na estação e nunca mais o vi.

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