Ritual pagão

Original em branco e preto, a seção de anedotas da revista Siesta. Episódio 4

Revista Siesta
SIESTA
8 min readMay 26, 2021

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Imagem: Oliver Maag

…sede fecundos, multiplicai-vos…

Quem diria que as minhas amigas seguiriam a palavra do Senhor tão à risca. É o quinto chá de bebê ao qual vou este ano. E pressinto que será acompanhado de toda a pompa e exagero que o bom senso dispensaria, como já foi o caso nos outros, mas esse vai ser pior.

Por quê?

Simples. O segundo chá de bebê foi mais requintado que o primeiro, o terceiro mais que o segundo, o quarto mais que o terceiro e temos assim uma função monótona crescente apontando em ângulo agudo para o infinito, inabalável, pois nada é mais certo do que o espírito competitivo das minhas amigas.

Inversão de valores e relações de poder na sociedade capitalista

No Uber, a caminho do apê dos pais da Ceci na Vila Nova Conceição, reflito mais sobre a questão.

Dos tempos de faculdade para cá, houve uma inversão de papel entre os que frequentam e os que organizam uma festa.

Na juventude, ser a anfitriã é um ato altruístico, de verdadeira abnegação: Os outros fazem a farra, enquanto a dona da casa passa o tempo todo aflita e preocupada com a integridade do seu lar, sem falar no dia seguinte, que de ressaca tem que arregaçar as mangas e arrumar a bagunça.

Agora é o contrário.

Encena-se um ritual no qual a “host” é paparicada do começo ao fim, recebendo do alto de seu pedestal os presentes (caros) regalados humildemente pelas visitas. Não se toca (e nem se deve tocar!) em outro assunto que não seja concernente à pessoa que é o centro, o umbigo da celebração. Claro que eles planejam tudo com antecedência e nos obsequeiam com comes e bebes etc. Mas nos chás de bebê em que estive nos últimos anos, havia serviço de catering terceirizado e botando os presentes do outro lado da balança, tenho certeza que é…

…um negócio rentável.

O cavalheiro da triste figura

Quem abre a porta e me recebe é o Novais, o marido da Ceci, e vendo o seu sorriso cansado estampado no rosto lisinho de quem se barbeou pela manhã, sinto pena dele. Veste polo branca da Ralph Lauren enfiada para dentro da calça jeans bastante justa, a barriguinha saliente sobre a fivela do cinto também da Ralph Lauren e o pisante é um sapatênis bege. Tenho certeza que esse “outfit” é obra da Ceci.

“Elas já tão jogando.” — diz, indicando a direção de onde ecoam vozes e gargalhadas -. “O presente você pode deixar aqui junto com os outros.”

Tiro da bolsa uma caixinha embrulhada em papel de presente com motivo infantil e a coloco entre os colossos multicoloridos, cheios de laços e fitas, que empilhados formam uma cordilheira sobre o aparador.

Amor de mãe

Na sala, cerca de vinte mulheres se congregam em círculo ao redor da Ceci, que de olhos vendados leva à boca uma colherada do que parece ser (e realmente é) papinha.

“Sabor carne com abóbora” — cochicha em meu ouvido a Patrícia depois de me beijar na bochecha. Todas caiem na risada — tenho a impressão de que competem entre si pela risada mais espalhafatosa — enquanto a Ceci engole a gororoba fazendo careta. Só a mãe, dona Carmen, permanece séria, acariciando Niniche, sua cadelinha de colo.

“Boa tarde dona Carmen.”

“Oi querida…” — e me cumprimenta com muita afabilidade. Ela gosta de mim porque sou amiga dos tempos de colégio da Ceci. As amizades que a filha fez na faculdade ela trata com frieza.

Olhando para a gestante, dona Carmen repete o que já me havia dito na tarde em que fomos ajudar a Ceci a provar os vestidos de noiva: “Você lembra né, como a Cecília era magrinha. Ela era tão bonita. É uma pena…”.

Menu degustação

Comer papinha é uma das brincadeiras que fazem parte de um chá de bebê. O desafio é adivinhar o sabor. Normalmente é peito de frango com lentilha e pasta de milho, caldo de feijão com carne e arroz, galinha com legumes e macarrão, mas nunca os de sabor de fruta, que são os menos ruins.

Sobre a mesa de jantar há travessas com canapés em variedade nunca antes vista, mas a atenção de todas se volta ao secondo piatto, digamos assim, servido à futura mãe. Que vem embrulhado em Pampers, sim em fraldas. E Ceci, que já pode tirar a venda dos olhos, desempacota, aos gritos das outras de “pode ir treinando”, pedacinhos de brownies. Faz parte da brincadeira comer diretamente do recipiente em que foi servido.

Hora do bolo

Dona Carmen desvia o olhar, que recai sobre o Novais, que ao lado do buffet, está ocupado com o patê de atum. Ela comenta que esperto foi o marido dela, o pai da Ceci, que saiu para jogar tênis no Harmonia. E volto a sentir pena do Novais, a quem agora as circunstâncias obrigam a desistir do patê. Ele encosta na parede para dar passagem a dois serventes trajados de branco que equilibram sobre uma bandeja de prata um bolo com cobertura glacê e adornos de chupetas de marzipã.

A expectativa é grande quando a espátula nas mãos trêmulas de Ceci começa a fender a camada externa do bolo. Pois é um “gender revealing cake”. Outra novidade importada dessa grande nação que são os Estados Unidos da América.

Novais se estica todo para ver alguma coisa por cima da barreira intransponível formada pelas amigas de sua esposa. E assim que a lâmina afunda na massa fofa revelando o recheio, do meio do rebuliço generalizado, a informação sobre o sexo do feto no útero da Cecília alcança todas, menos o Novais.

Patrícia diz: “Espero que eles acertaram dessa vez. Porque no revealing cake da Aline veio recheio azul e acabou nascendo uma menina. Ela ficou por conta com a confeitaria e com o médico, não se sabe de quem foi o erro.”

No meio tempo, Novais se inteirou de que vai ser pai de uma menina e está comovido, com os olhos rasos d‘água. Cada convidada tem em mãos um pratinho com um pedaço de bolo de recheio cor de rosa e uma taça de champagne, para saborearem enquanto se dedicam à próxima atividade no programa. Que é a que que pessoalmente mais gosto.

nimium ne crede colori

São distribuídas roupas de bebê brancas, uma peça que chamam de “body”, que é um tipo de macacãozinho e canetas para que sejam customizadas. Eu desenho bichinhos da floresta, um coelho com orelhas de abana, uma raposa com a cauda esticada, uma coruja de olhos arregalados, um sagui pendurado de ponta cabeça…

Descanso a mão por um momento e confiro o que as outras estão rabiscando.

A moça ao meu lado, que se chama Jaqueline e é colega de trabalho da Ceci, está imersa na tarefa de copiar o padrão da estampa de sua bolsa para o pano da roupinha. A parte da frente já praticamente toda preenchida com os LVs da Louis Vuitton.

A Patrícia, bem ao seu estilo, usando uma caneta diferente para cada letra, escreveu: “Eu amo a tia Pati”.

Uma tal de Débora, que pelo que entendi cursou um semestre com a Ceci, depois largou a faculdade e abriu um estúdio de massagem, usando apenas a caneta preta, preenche o escuro do sinal do Yin e Yang e tá ficando legal.

A Joice, que fez o ensino médio com a gente e agora é advogada, continua desenhando muito mal e uma aberração toma forma na roupinha da coitada que ainda nem nasceu.

E uma moça chamada Bia, amizade da fase baladeira da Ceci, tá criando um abadázinho e vendo que eu estou examinando o seu trabalho, ela pega a peça e orgulhosa me mostra a parte das costas, onde escreveu “Eu quero colo”, “Bloco do…” e “Folia..”. Não consigo decifrar tudo.

Expectativa de vida

Clarice Abib Chede é uma mulher impressionante. Ela é uma sumidade na área de direito penal. E nos casos de grande repercussão que você vê na mídia, pode ter certeza que um dos partidos é cliente do Abib Chede e associados. Eu a vejo agora elegantíssima e nervosa ao lado da janela — é claro, não se pode fumar perto de grávida — conversando com outras três amigas. Todas elas mães, a própria Clarice tem um menino e uma menina.

Me aproximo, como quem não quer nada, para ouvir o que estão falando. Não sei se ela se lembra de mim. Mas é uma oportunidade de ouro, porque ela é óbviamente muito bem relacionada e talvez, quem sabe, me arranje algo. Aguço os ouvidos, elas discutem e Clarice vai dizendo:

“Hamster. Eu pesquisei bastante e a melhor opção é Hamster.”

As outras ouvem com atenção. Uma delas diz:

“Comprei um coelho.”

“Coelho não é uma boa, Vanessa. Eles ficam gordos, da dó de deixar na gaiola e o bicho vive um tempão. Existe coelho na terceira idade.”

“Merda.”

“O Hamster é legal porque é um bichinho besta que tá feliz com a rodinha dele, não dá trabalho, o cocôzinho é minusculo e vive uns dois anos, com sorte até menos.”

“E você já comprou o seu?”

“Comprei. Meu filho e a minha filha, principalmente a minha filha, não me davam paz e queriam porque queriam um bichinho de estimação e eu consegui negociar com eles — uma das negociações mais duras da minha carreira — e eles acabaram aceitando abrir mão do filhote de labrador em favor do senhor Rufus.”

Julgo ser esse o momento certo para me intrometer na conversa. Chego dizendo:

“Admiro muito o teu trabalho.”

O inconsiente

É noite. Estou exausta. Estou exausta. É noite. E navego sem rumo na World Wide Web, estirada na poltrona com o Notebook no colo e um chá de camomila fumegante na chávena no chão ao lado da poltrona. As forças que um dia possuí, deixei-as no apê da Ceci.

Chá de bebê não é brincadeira.

Mas não existe essa de navegar sem rumo. Soltando o leme em alto mar, estarás à mercê da correnteza, que tem sim um rumo. Da mesma forma, deixando de guiar os pensamentos, eles serão carregados pelo fluxo do inconsciente.

E assim fui parar numa notícia do ano retrasado publicado pelo O Globo. Leio:

Eliete, de dezessete anos, grávida de oito meses do segundo filho, preparou um chá de bebê para 14 convidados em sua cidade natal, Cruzeiro do Sul, Acre. Mas só apareceram a irmã e duas vizinhas e ninguém trouxe presente. Eliete lamenta que gastou 100 reais com comida e ainda diz:

“Não tenho muito, mas comprei um bolo, dois fardos de refrigerante e uns balões.”

Vejo a foto que acompanha o texto. Um olhar desapontado me encara de volta. De uma moça entre três garrafas de Guaraná Cristal (não conhecia a marca), à sua frente uma torta com cobertura de chantilly branco e rosa, pendendo do teto balões rosas, atrás, na parede, decoração de festa com motivo infantil (de abelhinhas) e sobre a mesa: copos, pratos e talheres de plástico rosa. E a foto vem com legenda:

Eliete de Souza organizou um chá de bebê para conseguir enxoval para filha.

É de partir o coração.

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