Saudosos 90

José Cão para a revista Siesta

Revista Siesta
SIESTA
10 min readFeb 15, 2021

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Imagem: André Silva

Neste ano que acaba de terminar-se, fui capaz de completar meus primeiros 30 anos de vida. Apesar de ainda sobrecarregado por certo tipo de indolência contagiosa e pandêmica, decidi não resistir aos movimentos quase involuntários de meus dedos para realizar o presente texto. Gostaria muito de escrever sobre como agora sinto-me mais seguro e realizado com a chegada dos trinta, como o medo de errar nesta mesma idade também já fica mais atenuado em relação aos vinte, e talvez como a vida parece melhor e blá blá blá; mas a ironia que agora escapa por entre meus dedos não permitiu-me ir além dessas poucas frases.

Uma vez meu pai definiu (apenas a mim) de forma poética a diferença entre os seus 20 e 30 anos quando comparados e confrontados. As aspas aqui falam melhor: “ Ah, os trinta são muito melhores, meu filho. Com trinta eu já sabia foder e tinha dinheiro. Com vinte eu só queria foder, mas não tinha dinheiro.” Claro que ter dinheiro é algo relativo, mas se aplico o resto de tal comparação à minha vida, a afirmação de meu pai mostra, para mim pelo menos, certa perspicácia mastodôntica.

Dito isso, acredito que discorrer um pouco sobre o tempo de minha infância em São Paulo nos anos 90, seria de maior apelo à população mundial, de língua portuguesa com alguma paciência para ler o que se segue.

Não há muito tempo tive a sensível conversa das aspas à cima e entre outras coisas conversamos sobre os anos de sua adolescência e infância, passada nos anos 70 e 80, na região norte do Brasil. Apesar de papai contar suas histórias com certa normalidade e até serenidade, quando tais histórias permitiam, eu não era capaz de conter minhas gargalhadas sem saber ao certo porquê.

Alguns dos fatos que agora me vem à mente de meus próprios tempos de criança, não se parecem nada com as infâncias de meus pais ou avós em zonas rurais ou cidades pequenas cheias de liberdades e saudosas malícias.

Ri por exemplo quando ouvi que em sua cidade-natal a energia elétrica funcionava apenas até às 7 horas da noite, que a iluminação da praça em frente à sua casa ainda era à querosene, assim como sua geladeira da época. Seu número de telefone tinha apenas quatro dígitos e a ligação para outros estados ou cidades demorava e precisava ser pedida com antecedência. Sua primeira viagem ao exterior (Argentina e Paraguai não contam) realizada apenas com 20 e tantos anos, só poderia ser feita se muito bem organizada, pois os cruzados ou cruzeiros, novos ou antigos, não eram aceitos em lugar algum. Comprava-se dólares ou Traveller checks. Embora meu avô tivesse tido uma Rural e um Landau mais tarde, os Fuscas eram os Mertiolates de qualquer ferida. As roupas que usavam eram normalmente feitas em casa ou em costureiros da região, do quarteirão.

Seus dias eram passados em leituras, brincadeiras na rua e pequenos namoros, entre árvores e areais de terra batida, Escola, sinagoga, terreiro e igreja aos domingos. Tudo como seguem os maravilhosos relatos de infância que tão bem se conhece e se adora ouvir.

A vontade de rir que surgira em mim, talvez fosse de minha própria infância, pois ela se parece muito mais com os intermináveis programas de Silvio Santos na Televisão aberta, nos dias de semana ou final de semana. Em casa ou entre os muros do condomínio de prédios em que morávamos em Moema, não havia muito o que fazer depois das intermináveis horas na escola.

Sou nascido em 90, no exato início da década, e imagino que não em muito tempo tal fato será taxado como antigüidade com ternos olhares ou franzir de sobrancelhas, assim como verifiquei a data de nascimento de meus bisavós em algum momento de minha adolescência. Em alguns o 8 aparecia logo depois do 1, indicando o ano de nascimento. É… Sec. XIX, filho.

Acho que aqui talvez assuma o mesmo tom nostálgico que meu pai usava para contar suas histórias de infância em Santarém, quando descrevo minha família em frente a televisão no domingo, a ver um casal a se digladiar por algumas peças de sabonete na mesma redonda e pequena banheira. O histérico sino virtual tocava e o casal começava a querer expulsar cada milímetro cúbico de água que a pequena banheira preenchia em troca de suas dignidades e alguns sabonetes em uma cesta. Ah, a Banheira do Gugu…

Não descarto a possibilidade de isso ser fruto de minha imaginação, agora que escrevo sobre minha poética infância, mas posso jurar que lembro de minha avó a fazer o seu crochê sobre toalhas de rosto ao meu lado no sofá, em frente a este espetáculo da então onisciente, onipresente e onipotente televisão aberta. Eu mesmo no alto de minha primeira metade de década vivida, lembro que nestes momentos, eram um dos poucos em que ficava petrificado frente ao televisor com meus bonecos ou carrinhos. Normalmente assistia televisão através da reação dos adultos em seus gritos ou amedrontamentos, enquanto brincava na sala. Lembro que com algum brinquedo em mãos, torcia para que o maiô das Nanas Gouveias, Alessandras Scatenas ou Sheilas revelasse algo, delas ou de qualquer outra celebridade engolida pelas torpes águas de Gugu. Na maioria das vezes minha torcida funcionava. Não tenho orgulho algum disso…

Apenas pergunto-me neste mesmo instante, por onde andariam meus pais naqueles momentos, pois eles não povoam nenhuma dessas minhas memórias em frente ao televisor no domingo. Uma das poucas certezas que tenho hoje é a de que nunca vi meu pai ou minha mãe assistirem à uma merda dessas.

Lembro de minha mãe a assistir às novelas das 8 e 9 e algumas minisséries da Globo. Hilda Furacão com os jovens, mas não tão jovens Rodrigo Santoro e Ana Paula Arósio, por exemplo.

Lembro de todos a assistir nas manhãs de domingo às corridas de Ayrton Senna da Silva, na globo, e às partidas de Guga em Rolão Garrô na falecida TV Manchete. A chamada das lutas de Mike Tyson no Boxe internacional da madrugada global, também ainda soam em meus ouvidos. Meu pai ao telefone conversara com algum paraense a apostar quanto tempo duraria o pobre oponente do animal Mike. O arrancar das orelhas de Holly Field foi o tema dos temas…

Os Bulls também eram transmitidos em algum momento da madrugada da Band ou Manchete, não me lembro. Talvez até Globo. Em casa nunca houve hora para dormir e muitas vezes lembro de acompanhar meu pai em alguns lances de Michael Jordan, antes de ser carregado à cama.

O Cine Privê que durou até meados da primeira década dos anos dois mil, já alongava algumas madrugadas escondidas, antes mesmo de eu ter uma televisão em meu quarto. As peripécias de Emmanuelle em tempos antigos e modernos, com alienígenas ou terráqueos, não preocupavam de forma alguma meu bom gosto ou senso de veracidade e lógica. Não fazia ideia do que estavam fazendo, mas ficava preocupado que alguém pudesse chegar na sala e ver o que estava sendo ali assistido. O controle ficava já apontado em direção à televisão para uma rápida troca de canal ao menor sinal de movimentação em direção à sala. Provavelmente sabiam que eu estava assistindo a toda àquela sacanagem intergaláctica…

Se lembro de minha lancheira da escola, feita com grande carinho e atenção, dia sim, dia não, por minha babá ou mãe, pergunto-me como ainda sou capaz de ver ou respirar neste presente instante. Era uma lancheira de plástico vermelha ou azul com desenho do Pateta ou Mickey, não me lembro ao certo. Sei que era não do Ben 10, pois quando essa desgraça apareceu, já não levava mais lancheiras para a escola. Ao abri-la, encontrava encaixado entre seus cantos esfarelados de anteriores sanduíches um pão Panco, chamado na época de Egg Sponge. Ele era recheado normalmente de presunto, queijo e requeijão. Às vezes salame. Não há produto hoje que eu compre sem olhar sua composição no verso, para ter uma singela ideia de quais os deliciosos compostos químicos e inorgânicos ali aparecem e com isso alimentar minha ligeira neurose, a saber quais venenos serão ou seriam ingeridos no dia. Apenas posso imaginar hoje quantas siglas e remanescências da tabela periódica estampavam o verso do saco plástico do Egg Sponge em letras miúdas. E quantas dessas mesmas levaram-me a ser o que sou hoje. Que orgulho! Ao lado estava um suco de uva em caixa Tetra-pak acompanhado de um bolinho Ana Maria ou Parmalat. Embora agora eu queira encaixar um Cheetos sobre eles, não seria propriamente verdade. Minha mãe tinha certos limites.

Junto do Shabbat e a alegria por não ir a escola, outras atividades também guiavam e marcavam a ritualística semanal dos sábados naqueles anos. O sabadão animado do SBT com seu habitué Vavá a segurar o microfone cheio de ginga era um deles; mas a decisão familiar de sair de casa a almoçar em qualquer lugar fora dos domínios privados era rapidamente resolvida em uma palavra: Shopping.

É claro que quase todas as famílias da região, das cercanias e das outras além, também tinham a mesma péssima ideia. Subíamos de carro as rampas em caracol dos estacionamentos do shopping Ibirapuera, mesmo ele sendo ao lado de casa, e assim que passávamos a cancela para o primeiro andar, lembrávamos que o ir ao shopping, apesar da praticidade, era uma aventura em que a calma, a paciência e grandes níveis de persistência eram estritamente necessários. As perguntas que todos a bordo faziam de si para si em seguida eram: Quantas voltas no mesmo andar seriam necessárias para se encontrar uma vaga? E quantos outros andares completamente cheios seriam necessários para vencer a determinação de quem estava ao volante ? Minha mãe que por incrível que pareça, ou tinha mais sorte e encontrava depois de alguns bons 30 minutos alguma vaga, ou sua determinação era maior para almoçar no Galeto’s. Ali também havia espera, é claro. Papai com pouco já se emputecia e acabávamos indo a alguma churrascaria…

Quem não se lembra dos vendedores de balão de gás Hélio em frente a churrascarias e alguns grandes restaurantes ? Em poucos dias o pateta flutuante já estaria em algum canto do quarto, abandonado a definhar sua impotência, sem qualquer remédio. Aliás, nos 90 tiveram o seu apogeu esses gigantescos lugares em que se comia à moda dos antigos romanos. Picanha com alho, coxa , sobrecoxa de frango e arroz biro-biro era o que principalmente povoava a mesa de nossa família. Minha mãe comia comedidamente com a classe que lhe era comum. Meu amado pai mesmo com toda sua verdadeira e cultivada boa educação, tinha porém mais consciência da importância deste ritual dominical.

Montava suas garfadas de arroz biro-biro e fritas com todo o cuidado e tranquilidade de um lavrador que monta seus tijolos sobre a forma. Alguns golpes aqui e ali com a faca serviam para firmar o monte sobre o garfo que em seguida seriam ingeridos com muito amor, e todo a energia que seu hoje já não mais tão avantajado corpo poderia empregar para metabolizar todos aqueles nutrientes. Tal descrição se lida por papai hoje não o ofenderia. Conversamos sobre o assunto outro dia e descrevi a ele suas ferozes garfadas de então. Ele concordou…

Por essas épocas lembro que meus pais presentearam-me com um macacão à moda de Senna. Vermelho, com propagandas da Shell, Unibanco e Marlboro. Corria pelos corredores da escola com a roupa do “Seninha” sem qualquer medo de ser feliz. A peça sumiu, não sei como. Talvez minha irmã tenha dado algum sumiço na roupa, para poupar mais comentários sobre seu irmão mais novo alegre em demasia nos intervalos da escola.

Minha querida irmã aliás foi responsável por introduzir-me nos clássicos musicais da década além dos domínios do SBT. Ace of Base com seus enigmáticos, all that she wants e I saw the sign faziam parte da trilha sonora de nossas manhãs com a rádio Jovem-pan no carro de mamãe. Alegria não era o sentimento que usaria aqui, pois afinal estávamos à caminho da escola. Ouvia tudo do alto de meu cadeirão, bem afivelado, mexendo minha cabeça, com a franja a bater em meus olhos. A Barbie Girl, o Backstreet is back vieram não muito mais tarde. Uma certa Gala, que para mim na época significava apenas um nome de mulher, cantava sua Come into my life em puts-puts. Ontem verifiquei que esta mesma canção fora escrita por um herói de mais tarde: Gigi D’Agostino.

A eleição de Pitta para prefeito com seu cadente fura-fila também marcaram profundamente minha infância. Meu pai naqueles anos era tucano praticante e sem querer indaguei-lhe inocentemente, se assim que estivesse pronto, poderíamos andar no bonde-do-futuro. Ele, com sorriso no rosto, colocou-me em seu colo e em tom profético respondeu-me: Meu filho, esse Fura-fila é só enganação. Mas se ele aparecer, vamos lá passear…

Eu deveria ter 5 ou 6 anos e minha escola para formar os novos cidadãos e eleitores do futuro, organizou uma votação interna aos moldes das eleições municipais. Se não me engano foi uma das primeiras eleições em urna eletrônica no mundo dos adultos. Votamos na sala de informática, no que hoje imagino ser uma planilha de Excel para fazer a primeira pesquisa de intenção de votos daqueles baixinhos engajados. Votei no Serra, candidato de meu pai e família, apesar de ter grandes fracos pelo imponente e mal educado Fura-fila. Minha mãe não era muito afeita a discussões políticas, apesar de gostar de ouvir uma boa sempre que podia, mas imagino que tivesse votado no Serra também. Seria o Serra ali o voto da esquerda, dos estudantes e professores engajados ? Tinha muitos coleguinhas Malufistas que diziam-me serem os eleitores de Serra um exército de robôs sem inteligência e opinião própria. Um outro xingou-me de puta xexelenta quando, não sei por que razão, revelamos civilizadamente nossas escolhas políticas. O Pitta ganhou ao final como sabemos e vivemos, e muitos dos eleitores de Maluf ainda assim continuaram a votar no grão-mestre da Rota. Não lembro do resultado oficial das eleições de nossa escolinha.

Falta fim.

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