Sem Nome

Texto de L. Wertheimer e ilustrações de Oliver Maag

Wertheimer Lucas
SIESTA
20 min readMay 27, 2021

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Perto do quilometro 1918,3 do Danúbio, a voragem de suas águas formava um redemoinho que por décadas arrojou às margens da bucólica cidadezinha de Kaiserebersdorf, a jusante de Viena, troncos e galhos, detritos e cadáveres. No sombreado do bosque que cobre os bancos ao longo desse trecho do rio, o cemitério dos sem-nome (Friedhof der Namenlosen) abriga os restos mortais dos desafortunados para os quais o Danúbio Azul não foi uma valsa dançante de Strauß.

1.

É domingo e o porto de Albern está às moscas. Caminho entre as docas e os armazéns fechados, os guindastes inertes na brisa leve que sopra do rio e os caminhões estacionados na sombra dos brutais silos de concreto. O porto de Albern é um dos três portos de carga de Viena, os outros são os de Lobau, na margem oposta e o de Freudenau, cerca de três quilômetros rio acima. A sua construção em 1939, influiu no curso das águas de tal forma que a pequena enseada atrás da qual fica o cemitério, deixou de ser o ancoradouro dos afogados. E em 1940 o cemitério foi fechado.

Deixo os domínios do porto e o asfalto dá lugar ao cascalho do caminho que leva ao bosque. Apenas alguns passos entre castanheiras e carvalhos e tenho diante de mim uma depressão no terreno, um quadrilátero talvez da metade do tamanho de um campo de futebol, delimitado no sul por um muro de tijolos, nos lados leste e o oeste pelos próprios barrancos e no norte por uma mureta baixa e com um pequeno pórtico que leva ao pátio em frente à capela. Assim do alto, vejo todas as cento e três sepulturas deste que é o menor cemitério da cidade de Viena.

Mas há mais gente, possivelmente muito mais gente enterrada nas adjacências, entre as raízes das árvores que cobrem a margem direita do rio. Pois este cemitério relativamente arrumado e bem cuidado, foi aberto e recebeu o seu primeiro inquilino no ano de 1900 e funcionou, como já disse, até 1940. Antes, porém, os defuntos trazidos pela correnteza eram sepultados aqui ao lado, num quinhão de terra que hoje se encontra completamente tomado pela floresta e no qual apenas uma cruz de ferro lembra as vítimas das águas do século retrasado. Na placa fincada junto à cruz, lê-se “Friedhof der Namenlosen 1840–1900”. E embaixo: “478 mortos.”

Porto fluvial de Albern no sudeste de cidade de Viena. Inaugurado em 1939.
No porto de Albern é feito o transbordo de aço e principalmente de produtos agrícolas.

Tanto a data de estabelecimento quanto a contagem dos mortos é, entretanto, discutível, devido à documentação escassa e aos dados contraditórios nas poucas fontes existentes. Na época da inauguração do novo cemitério, os jornais falavam de mil a três mil ossadas na necrópole antiga. Em outra estimativa bem mais modesta, chegou-se a cento e quarenta e sete mortos. Se por um lado é sempre recomendável apreciar o cálculo dos jornalistas com certa moderação, por outro, se considerarmos crível o depoimento de um pescador da região chamado Nohel, que para uma reportagem do “Neues Wiener Journal” de 1. de novembro de 1902, declarou ter resgatado com as próprias mãos, setenta corpos, os montantes maiores não nos parecem tão exagerados. Supondo, é claro, que a história do pescador, não é apenas uma história de pescador. O que parece certo, é que nestas bandas, ao longo do século dezenove, foram enterradas mais pessoas que nas primeiras quatro décadas do século vinte.

A origem do cemitério também está envolta em incertezas. De acordo com o guia cultural do distrito de Simmering do historiador Felix Czeikes, a primeira inumação no local, ocorreu em 1854. Esta data também consta nos arquivos da prefeitura. Já em matéria publicada no jornal “Deutsches Volksblatt” em 31. de outubro de 1907, o periodista contenta-se em dizer ao leitor que “os primórdios deste lugar do pesar ficaram tantos e tantos anos para trás, que ninguém mais sabe quando é que foi estabelecido.” Apesar de vaga, esta afirmação talvez reforce o “1840” indicado na plaqueta fincada ao lado da cruz. Pois de acordo com outra versão da história, já muito antes de 1854, corpos encontrados nesta reentrância do Danúbio eram enterrados aqui. Assim que em 1840, já se havia formado um pequeno cemitério.

De uma maneira ou de outra, o descanso eterno dos que lá jazem, era de tempos em tempos violado pelas enchentes do rio, que impetuoso, arrastava as cruzes dos sepulcros, nivelava à força o terreno, apagando os poucos tributos e homenagens prestados à estes que por via de regra abandonaram a vida pela porta dos fundos. Em artigo publicado na “Neue Freie Presse” e datado do dia de finados de 1890, é relatado o desolador estado no qual se encontravam os jazigos, judiados pela cheia de dois meses antes. Em 1899 decidiu-se, enfim, realocar a necrópole para área atrás do dique, a salvo, de uma vez por todas, da fúria das águas.

Sigo a senda que, contornando o desnível e o campo santo embaixo, me leva até à parte de trás da capela. Rente à construção, há uma escada, e seus degraus de pedra baixam ao adro, portanto à área entre o frontispício da capela e o portão que é a entrada da necrópole. Agora, de frente para a contrução, compreendo melhor a topografia do local. O pequeno templo, em forma cilíndrica e de concreto cinza, é integrado na lomba do dique. O que faz todo sentido, pois foi erguida entre os anos de 1933 e 1935, no âmbito das obras de reforço da barragem. Espio por entre as frestas do portão de ferro e que está trancado. Através das três janelas no alto, redondas como escotilhas e assim em harmonia com as barcaças atracadas no porto logo ao lado, através delas vertem, oblíquos, feixes de luz que revelam em meio à penumbra, detalhes dos afrescos atrás do pequeno altar e a bancada coberta por uma toalha de mesa branca, sobre a qual estão dispostos dois castiçais e dois buquês de flores artificiais. No conturbado ano de 1945, em um episódio obscuro, do qual hoje quase nada se sabe, este portão no qual me apoio, foi forçado e arrombado e os intrusos, ignoro se buscavam abrigar-se do frio, se de fato invadiram a capela em busca de objetos de valor ou se foi um mero ato de vandalismo, mas os intrusos sumiram com os registros, os chamados protocolos da paróquia, nos quais constava quem ocupava qual cova no setor “novo” do cemitério dos sem-nome.

Capela da ressureição erguida entre 1933–35.
O cemitério visto da capela

Mas esse não é o lugar de repouso daqueles que partiram de fininho, sem que fossem reconhecidos? Então, como poderia haver registros? Bem, nem todos os defuntos são incógnitos. Dos cento e três sepultados, quarenta e três puderam ser identificados, seja diretamente pelas autoridades ou através de conhecidos e familiares. Os demais foram assinalados com base na idade estimada, no gênero, por estigmas no corpo, eventuais marcas de violência, pelas roupas que usavam e pertences que levavam consigo, pelo estado do cadáver ao ser encontrado conforme consta no laudo médico e no relatório policial etc. A perda dos arquivos paroquiais complicou o reconhecimento dos jazigos, apesar de, baseado em registros da prefeitura, ter se procurado reconstituí-los. Para aumentar a confusão, no inverno de 1920, no duro inverno de 1920, o país ainda recobrando as forças após o desastroso desfecho da primeira guerra, cruzes de madeira e placas também de madeira e com a numeração dos túmulos assim como data de óbito e, se disponível, data de nascimento do morto, foram furtadas, muito provavelmente para serem usadas como lenha por gente que sofria com o frio. Portanto, se hoje sabemos, ao menos até certo ponto, quem jaz aonde, é em razão do esforço empenhado por historiadores, no penoso processo de reconstrução do material perdido.

Viro as costas para a capela, passo pelo portão e estou, enfim, no cemitério. Não estamos aqui no Zentralfriedhof (o cemitério central de Viena) com seus mais de 330.000 túmulos. Assim, começando pela última fileira no fundo, pretendo percorrer, serpenteando o terreno, todos os cento e três jazigos. Visto da entrada, no canto superior esquerdo, canto escuro e úmido e rente ao muro de tijolos, está fincada no chão uma cruz de ferro preta, na qual martiriza um Jesus prateado. Esse crucifixo, digo o mesmíssimo protótipo, sem qualquer tipo de variação, se multiplicaao longo dos renques de covas. Ele é, salve uma ou duas exceções, a norma por aqui e foi afincado sobre cada um dos sepulcros. Foram doados pela prefeitura e são provenientes de tumbas no cemitério central, cujo prazo de uso havia expirado.

2.

A sepultura de número 1 abriga os restos mortais do último corpo não identificado encontrado no Danúbio e aqui enterrado. Foi no dia quatorze de agosto de 1935, que o pescador Rudolf Lambert encontrou o cadáver de um homem de cerca de cinquenta anos, que, a julgar pelo estado de deterioração do corpo, devia estar boiando na água por cerca de dois a três meses. No protocolo é constatado que, além da causa da morte, que foi por afogamento, de que o defunto tinha dentes ruins, duas pontes dentárias no maxilar inferior e que era provavelmente careca, realmente nada mais se sabia ao seu respeito.

Já o seu quase vizinho, um Julius Behnken de Hamburgo e inquilino do jazigo três, propiciou uma cena pouco agradável na manhã do dia quinze de abril de 1923. Pois foi encontrado, pode se dizer que já em plena desagregação, depois de estimadas quatro semanas na água. A epiderme, em todo o corpo, soltava-se em tiras. A cabeça estava inchada, distorcendo as feições a ponto de deixá-lo irreconhecível. Inchado também estava o escroto, que ficou do tamanho da cabeça de uma criança. Seus olhos foram fichados como de cor castanho escura, mas é ressaltado que dado o estágio de putrefação, qualquer afirmação categórica era impossível. Na ata do morto, além da descrição de suas características físicas e de suas vestimentas, foram listados os objetos que levava nos bolsos: canivete com uma lâmina, pequeno cachimbo de madeira, estojo com dois pince-nez, um deles com a lente quebrada e na carteira, mil coroas e uma receita médica para neuropatia.

Das demais covas que completam a fileira do fundo, acho que são quatorze, a maioria é ocupada pela ossada de gente, cujo nome e naturalmente as respectivas histórias de vida, se perderam para sempre. Exceção são os túmulos número doze, no qual jaz um Josef Pöpperl, que em 1901, aos vinte e cinco anos de idade, morreu afogado; o túmulo quatorze, da Maria Beran, jovem de dezenove anos que de olhos vendados se lançou da ponte e que foi encontrada correnteza abaixo em dez de junho de 1900; e o túmulo dezesseis, onde descansa o primeiríssimo morto a ser enterrado na parte nova do cemitério dos sem-nome e a respeito do qual se sabe o seguinte:

Em dezoito de maio de 1900 foi pescado do rio um homem trajado no uniforme do regimento imperial do exército, posteriormente identificado como Josef Prammel, alfaiate da companhia em que servia. A autópsia constatou que o corpo do soldado havia sido perfurado em diversas partes com um objeto afiado, que os golpes desferidos foram fatais e que, portanto, era de se presumir que depois de cometer o assassinato, o autor do crime quis se livrar do corpo, o jogando no rio.

Assassinato seguido de roubo, é o que afirma o “Neues Wiener Journal” em reportagem de 21 de maio de 1900. Prammer foi visto pela última vez no domingo, 29 de abril, no maior parque da cidade, o Prater. Por volta de meia noite e meia, a vítima deixou a taberna onde regozijava-se com seus camaradas, segundo os quais, ele se despediu bastante embriagado após ter sido animado a brindar e incitado a beber por um homem desconhecido trajado em civil. Partiu acompanhado pelo sujeito desconhecido, este perfeitamente sóbrio. Ainda de acordo com o depoimento dos colegas, Josef Prammer levava bastante dinheiro em sua carteira. Dinheiro proveniente em parte dos bicos extras que fazia como costureiro assim como da sua família, da qual podia se afirmar que era uma família relativamente bem situada.

A última fileira, portanto, começa com o cadáver mais recente e termina com o mais antigo (dos não identificados). Seguemos à próxima, que abrange os túmulos de número dezessete até trinta e dois. Nela, logo nos deparamos com Anton Eder, major do exército, vinte e oito anos. Provavelmente suicídio. Corpo encontrado no dia trinta e um de maio de 1924. De acordo com o “Neues Wiener Tagblatt”, de cinco de junho de 1924, Eder tinha dívidas e estava perdendo a batalha contra a bebida. Mais à frente e em meio aos onipresentes crucifixos anônimos, está uma senhora nos seus quarenta e cinco ou cinquenta anos de idade, chamada Cäcilie Gettler (Guardem esse nome!). Suicídio. Causa de sua ruína foram desavenças familiares. Seu corpo foi encontrado às cinco da manhã de dezesseis de agosto de 1928, após apenas quatro ou cinco horas na água. Lhe fazem companhia na mesma ala, outras duas mulheres que foram identificadas como Maria Weiss e Elisabeth Führer. Ambas encontradas mortas no rio. A primeira de cerca de cinquenta anos, faleceu no final de outubro de 1928 e a segunda, uma senhora de 72, que depois de um derrame cerebral no ano anterior, começou a sofrer de transtornos mentais, e que foi dada como desaparecida em trinta e um de maio de 1929.

E o cascalho range sobre a sola do meu sapato conforme avanço pela terceira fileira. Somos recebidos por Franz Trojan, de profissão alfaiate, fisgado aqui perto, no pontal, hoje entrada do porto, em dez de agosto de 1929. Suicidio. Um pouco adiante, Rosa Mayewsky, empregada doméstica de dezoito anos, encontrada às oito da manhã de sete de julho de 1930, uns setecentos metros depois da desembocadura do canal (Donaukanal) no próprio Danúbio. Suicídio. Ao lado, Johann Novosel, que na escuridão da noite de sete de junho de 1932, não viu a cancela fechada a sua frente e entrou nela em cheio com sua bicicleta. Morreu no local (estrada ao longo do dique que margeia o rio), devido aos ferimentos internos. Josefa Nowak (10.2.1860–26.9.1930), de 70 anos, é a titular do túmulo 39 e apresentava nos seus derradeiros anos, tendências suicidas. Após briga entre condôminos, essa senhora pegou uma faca com lâmina de vinte e cinco centímetros e cortou o próprio pescoço, atingindo a traqueia. Oscilou entre a vida e a morte, mas foi salva pelos médicos. Meio ano depois, pôs fim à vida, pulando no Danúbio. O corpo de um homem recobrado das águas na tarde do dia trinta de agosto de 1930, foi identificado no dia seguinte pela esposa como sendo o mecânico Rudolf Gutmann. Suicídio. Ele agora é vizinho da senhora Nowak e vizinho também de um ex-cocheiro que não escolheu o rio como meio para o seu fim, mas optou por enforcar-se no bosque que envolve o cemitério. Na plaqueta presa à cruz que enfeita o seu túmulo leio “Stefan Molnar, *21.12.1879 † 9.3.1930, Ruhe sanft (descanse em paz).”

“Se procurais paz e sossego, corações atormentados, longe do mundo que por vós buscais, dor aqui, não há.”

Chegamos ao centro do terreno, marcado por outra cruz, bem maior que as demais e na qual, numa placa preta afixada à haste, o poema encabeçado por essa estrofe procura consolar os mortos. Tenho às minhas costas as moças e os moços, as senhoras e os senhores que pude apresentar pelo nome e os outros, que formam a maioria, todos desconhecidos. Em vez de epitáfios, apenas “Namenlos”. Me sinto (e de fato estou) rodeado por esse pequeno pelotão de vultos sem rosto e sem passado.

Crucifixo do recém-nascido “Sepperl”.
Base do crucifixo de Sepperl. Muitas décadas depois de sua morte, visitantes decoram a sua cova e lhe prestam homenagens.

Avante! No caminho à direita da cruz, temos na cova 49, Edmund Pollak, trinta e dois anos. Afogamento. Seu corpo encontrado no final de março de 1904, vagava há quatro semanas ao sabor da correnteza. E ao seu lado, outro afogado, Jarostary Chudi, encontrado um mês mais tarde, depois de duas semanas na água. Mais dois ou três passos e na plaqueta junto ao crucifixo, leio o seguinte: “Aqui descansa Wilhelm Töhn. Afogado por mão alheia em 1 junho de 1904, aos onze anos.” Aos onze anos, tão novo, mesmo assim, não é a morte mais prematura entre os que aqui repousam. Nessa mesma fileira, cova cinquenta e oito, um urso de pelúcia apoiado à base da cruz e pingentes com motivos infantis pendurados inclusive nos braços e em volta do pescoço de Jesus Cristo, dispensam datas de nascença e de falecimento. As quais realmente se desconhece. Na chapa de ferro e em letras brancas, apenas o apelido: Sepperl. O senhor que por muitos anos cuidou dessa necrópole e a quem reservei algumas linhas mais adiante, encontrou certo dia na margem do rio, abandonado numa caixa de sapato, um bebê já sem vida. O batizou póstuma- e carinhosamente de Sepperl e o sepultou entre os demais.

Temos ainda Adolf Kraft (15.12.1861–1.7.1906), torneiro mecânico que se afogou em um belo dia de verão ao refrescar-se no rio. Desapareceu de uma hora para a outra e seu irmão, que o acompanhava, buscou por duas horas até conseguir encontrá-lo. Já morto, é claro. E temos August Hammer, encontrado em dois de agosto de 1907 no bosque de Kaiserebersdorf, enforcado. O “Neues Wiener Abendblatt” nos informa que após a morte de sua esposa, August não encontrou mais forças para seguir vivendo. E o que dizer de Hans Mattauch? Que entre tantos suicidas, era um que, como dizem os versos fúnebres em seu jazigo “aqui jazo em terra fresca, não queria, mas acabei morrendo…[ii]”, foi-se involuntariamente. Hans era marinheiro e aparentemente caiu no rio, para ser encontrado somente três semana mais tarde, em vinte e sete de setembro de 1907. E temos tantos outros sem nome.

O trabalho de jardinagem está, há três gerações, a encargo da família Fuchs.

De volta à cruz no centro do cemitério, me sento no banco ao lado e fecho os olhos. Ouço a brisa resvalar nas copas das árvores, ouço o barulho do trânsito vindo de longe, não ouço o rio, apesar de logo ao lado. E de olhos fechados, no escuro, tento, a princípio com dificuldade, mas gradualmente com mais sucesso, imaginar uma cena. Uma cena na qual um homem de trinta e tantos anos, se debruça sobre a mesa suja de um restaurante simples, desse tipo de restaurante, quase uma taverna, que os arredores de Viena estão cheios. Este, por acaso, fica bem perto daqui. É verão e com as mangas arregaçadas, o sujeito escreve algo numa folha de papel. E em intervalos curtos, toma do seu vinho em goles generosos. Assim que termina de escrever, paga e vem direto para cá. Passa pelo pórtico do cemitério e caminha desorientado entre as cruzes de madeira podre. Na época ainda não as tinham substituído pelos crucifixos de ferro. Tão desorientado, que chama a atenção de uma mulher que por aqui passeia. Ela pergunta se está tudo bem e o homem se assusta, pois não a havia notado, mas responde que não é nada de mais, e pede gentilmente para que ela lhe traga um copo de vinho do restaurante, o que lhe ajudará a recobrar suas forças. Prestativa, ela concorda. Mas tendo se afastado apenas algumas dezenas de metros do cemitério, ouve um disparo. Otto Gettler, assim se chamava o homem, meteu o cano de seu revólver na boca e apertou o gatilho. Caiu morto aos pés da sepultura de Cäcilie Gettler, sua mãe. Lembram-se dela? Jazigo vinte e três, pulou no Danúbio para afogar a si e às suas mágoas, pelo desgosto de desavenças familiares, das quais nada sei, ninguém sabe. Passaram-se cinco anos, estamos em 1933, e seu filho resolveu segui-la. Os vizinhos jamais imaginavam, conta a reportagem do “Der Morgen” de vinte e oito de agosto de 1933, que um homem tranquilo e sério como o senhor Gettler pudesse terminar desse jeito. No banco, onde Otto era empregado de longa data, a surpresa com a notícia parece ter sido ainda maior. Era um funcionário exemplar, concordam os seus ex-colegas. Mas nada deve ter superado o baque que levou sua esposa ao inteirar-se de seu suicídio. O marido ainda avisou que chegaria mais tarde naquele dia. Disse que queria comprar selos. Otto Gettler era um fervoroso colecionador de selos. Otto Gettler também era pai de uma menina de nove anos. Por que Otto Gettler se matou? Em seu bilhete de despedida, que escreveu momentos antes no restaurante, responde: Por desavenças familiares.

Abro os olhos e tenho à minha frente e à esquerda da cruz, o túmulo 91, onde descansa o senhor Gettler. Não foi sepultado ao lado da mãe. Seu vizinho de cova é o cocheiro Josef Douscha, cinquenta e três anos, casado. Era em seus tempos, um sujeito forte, de 1,85m de altura e uma pessoa obstinada. Costumava dizer que de maneira alguma queria se tornar um fardo para a sua família. Se um dia não fosse mais capaz de cuidar de si próprio e de cumprir com suas obrigações, aí não teria dúvidas à qual medida recorrer. Num sábado em janeiro de 1935, o senhor Douscha saiu de casa para ir ao médico e nunca mais voltou. É de se presumir que não recebeu do doutor um diagnóstico muito alentador e para não deixar de cumprir com a sua palavra, decidiu, sem mais delongas, antecipar o seu fim. Tomou o caminho que conhecia tão bem e que atravessando o bosque de Albern leva à margem do rio. Era onde gostava de pescar. Pescar era a sua grande paixão. Mas dessa vez não foi até o Danúbio. Perto da ponte da ferrovia, escolheu uma árvore e com um cordão que levava no bolso improvisou lá mesmo a sua forca. Só que o cordão arrebentou. Douscha não desanimou. Prendeu, então, a cinta da calça no galho e meteu o pescoço na alça. Mas a cinta não aguentou seu peso, e acabou arrebentando também. Mas eu já não disse que Josef Douscha era um homem obstinado? Ele pegou o pedaço de corda e o que sobrou da cinta, atou um ao outro, repetiu o procedimento e desta vez deu certo. A “Kronen Zeitung” na edição de trinta de janeiro de 1935, dá uma nota ainda mais dramática à ocorrência, revelando que Josef e sua esposa comemorariam na semana seguinte suas bodas de prata. O paletó que senhora Douscha já havia tirado do armário para arejar, vestiu o defunto em seu velório.

Ao lado do Josef grande, temos o Josef pequeno. Josef Prisching, confeiteiro, cinquenta e dois anos, solteiro, 1,50m de tamanho. Se suicidou pulando no Danúbio. Foi encontrado em cinco ou seis de agosto de 1935. E o pequeno Josef jaz entre dois enforcados. Pois o túmulo seguinte, de número noventa e quatro, abriga os restos mortais de um homem encontrado com a corda no pescoço no bosque próximo ao cemitério dos sem nome em onze de outubro de 1936. Foi identificado por Josefa Hauptfleisch como sendo o seu cônjuge, o ajudante de carpinteiro Johann Hauptfleisch.

Menos da metade dos mortos enterrados no cemitério do sem nome puderam ser identificados.

Meus passos me conduzem por esse acervo de destinos malfadados e penso no senhor Fuchs, que nos idos de 1932 resolveu tomar conta disto aqui. Trabalhava de guarda municipal na vila de Albern, anos antes da vila ser incorporada à Viena e nas horas vagas regava os canteiros, arrumava os caminhos e quando se precisava dele, ia lá com seu carrinho de mão buscar mais um corpo trazido pelo rio. Dessa forma, até 1939, quando foi convocado para lutar na guerra, havia sepultado, com a ajuda de pescadores, caçadores, ou quem é que fosse, cinquenta pessoas. Durante a sua ausência, em 1940, sua esposa, Franziska Fuchs, ainda conduziu o último enterro antes do fechamento definitivo do cemitério. O senhor Fuchs só retornou ao seu lar em 1947, depois de um bom tempo na mão dos russos como prisioneiro de guerra. Mas não se esqueceu de seus mortos. Pois assim que chegou, fez questão de visitá-los. Encontrou, entretanto, os túmulos tomados pela vegetação, a capela abandonada e o abrigo onde guardava a maca para levar os cadáveres e as ferramentas de jardinagem, caindo aos pedaços. Pouco a pouco e a custo de muito esforço, foi arrumando o lugar até que ficasse tudo do jeito que era. Se passaram anos e décadas, e o pequeno cemitério dos sem nome, apesar de há muito sem receber novos inquilinos, resistiu ao tempo. Até o final de sua vida, o senhor Fuchs zelou por essa porção de terra, no extremo sudeste de Viena, na divisa do município com o estado da Baixa Áustria. Depois de seu falecimento em 1996, seu filho, também chamado Joseph Fuchs e que cresceu ajudando o pai com os cuidados que a necrópole requer, deu continuidade ao trabalho até também falecer em 2018. Desde então, o neto de Joseph Fuchs, adivinhem o nome, outro Joseph Fuchs, honra o que se tornou uma tradição familiar e mantém o cemitério arrumado. Foi o avô, o senhor que há muitos e muitos anos encontrou o recém-nascido abandonado na caixa de sapato.

Até a saída, faltam apenas alguns metros do caminho de brita. Ele travessa ainda um último grupo de crucifixos, alguns com datas e inclusive nomes, mas a maioria, naturalmente, sem qualquer identificação. Sigo em frente, para descobrir quem dessa vez me receberá.

Encontro logo Theresia Rochel (12.10.1879–1937), que andava abatida desde que perdera seu emprego e que acabou não encontrando outra solução que pular no rio. E depois vou ter com Johann Grabner, que aos 35 decidiu que já havia visto o suficiente. A correnteza o carregou até essas margens para que seu corpo fosse encontrado pelo pescador Wilhelm Koprol em seis de setembro de 1937. E cumprimento Wilhelm Dietrich, quarenta e dois anos, em união estável com Rosa Tomek, e que se enforcou aqui neste bosque. E Eduard Duhsl (1886–1938), tuberculoso e cansado de sofrer, se enforcou numa árvore. O vento oscilava o seu corpo que pendia no ar quando três garotos de Kaiserebersdorf que brincavam na floresta, o encontraram. E Ignaz Baumgartner, de vinte e cinco anos, que trabalhava de garçom. Suicídio. Mais um fisgado da correnteza, este, no final de julho de 1938. E Karl Leeb, 32. Uma plaqueta mais caprichada que as demais, indica o seu lugar de repouso. Acidentou-se durante a construção do porto. Caiu no rio e morreu afogado. A empresa para a qual Karl trabalhava custeou o seu enterro e a sua sepultura. E o senhor Isidor Behty, talvez o único aqui que em vida manifestou o desejo de ser enterrado neste cemitério. Era dono do restaurante ao lado, o “Gasthaus zum Friedhof der Namenlosen”. E o pescador Mathias Iser, que passou a vida por essas bandas, sem residência fixa, vivia em seu barco ou virava a noite no estabelecimento do senhor Behty. Seu corpo foi carregado por seus companheiros até o cemitério, onde desde então descansa. E Ladislaus Kampf, padeiro. Sua esposa adiantou em 1940, 13,30 Reichsmark (RM), para que conservassem o túmulo do marido por mais dez anos. E Konrad Spitzeder, sessenta e cinco, peão de obra, encontrado no rio em junho de 1904. E Johann Pöll, açougueiro, estourou os miolos dando um tiro na cabeça. E Johann Pudschlögl, ajudante de açougueiro, encontrado em dezenove de abril de 1913, depois de duas a três semanas no rio. E vário outros homens e mulheres.

Na ata de uma morta não identificada, consta, além da descrição de seu físico, que “tudo indica que pertence à classe servil.” Não encontrei aqui nenhum barão, nenhuma madame da alta sociedade, nenhum título de nobreza ou honrarias acadêmicas. Os protocolos paroquiais falam por si. Em vida, esses mortos foram carpinteiros, açougueiros, militares de patente baixa, cocheiros, empregadas domésticas, donas de casa, inválidos e desempregados. Em quinze de julho de 1918, foi achado o corpo de Barbara Bachinger (26), já em estado avançado de putrefação, depois de oito a dez dias na água. Em meio aos poucos pertences encontrados junto ao seu cadáver, descobriu-se duas passagens para o sistema de bonde da cidade. Num deles, a moça havia escrito: “como minha parcela neste mundo sempre foi pequena, caminho à morte, Schachinger.”

Atravesso novamente o porto de Albern para tomar o ônibus 76 no ponto final da linha e voltar para casa. Mas antes, vou até onde fica o atracadouro das barcaças, ando até a beirada e às sombras de uma velha grua inoperante e enferrujada fico a contemplar a tremenda massa de água que corre em direção ao mar negro. Me lembro da primeira estrofe de um poema de Lenau.

Sahst du ein Glück vorübergehn,

Das nie sich wiederfindet,

Ists gut in einen Strom zu sehn,

Wo alles wogt und schwindet[i].

[i] “Vistes a sorte passar, que jamais retornará, é bom olhar nas águas do rio, onde tudo balança nas ondas e desaparece.”

[i] O trecho navegável do Danúbio é medido em milhas náuticas de Sulina, na desembocadura do rio no Mar Negro, até Galaţi, também na Romênia. De Galati (estaca zero) até Ulm, em Baden-Württemberg, Alemanha, a marcação é em quilômetros.

[ii] Hier lieg ich in kühler Erde, wollt noch nicht und musste sterben…

[iii] “Vistes a sorte passar, que jamais retornará, é bom olhar nas águas do rio, onde tudo balança nas ondas e desaparece.”

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