Siesta. Descanse em paz.

Wertheimer Lucas
SIESTA
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32 min readDec 24, 2020

Aproveitemos o dia para flanar por bulevares sombreados, para perdermo-nos em vielas pitorescas, para contemplarmos a vida justamente onde ela se afigura mais tangível: em meio aos jazigos. Se no turbilhão do cotidiano nos esquecemos para onde navegamos, as lápides e os crucifixos são o lembrete de que não estamos à deriva, mas que seguimos inabalável ao nosso destino. Alguns vem de vento em poupa, outros demoram-se na calmaria, mas não se tem notícia de que alguém se tenha perdido no caminho.

Aproveitemos o dia, pois à noite temos compromisso. No salão vazio do último baile, dançarás nos braços da morte e é ela que conduzirá. Pode ir praticando os passos, é o três por quatro de uma valsa vienense.

O Cemitério Central

Siesta. Descanse em paz. Episódio1. Texto de Lucas Wertheimer e ilustrações de André Silva

I. No bonde da alegria

Próxima parada, parada final. O que não é verdade, pois o bonde Nr.71 segue adiante, até Kaiserebersdorf, no extremo sudeste de Viena. Mas a vigésima quarta parada no traçado bem que merecia ser anunciada dessa maneira. Pois, afinal de contas, ao longo dos últimos cento e quarenta anos, para mais de três milhões de pessoas este foi o fim da linha.

O bonde que liga o Schwarzenbergplatz, no centro, ao famoso Zentralfriedhof (cemitério central), no distrito de Simmering, desde o ano da inauguração da necrópole em 1874, faz parte da paisagem urbana e da paisagem cultural de cidade. Em quantas brigas de bar já não se ouviu “Eu te mando pra casa de 71”? É o “eu te mato” do vienense cabeça quente.

Recostado em um dos bancos de madeira, daqueles que só se encontra nos modelos mais antigos, olhando ora o vagão vazio, ora o dia cinza e gélido de janeiro correndo na janela, me recordo de uma insólita notícia que li já há anos em um jornal de bairro e onde foi relatado o seguinte. Num bonde desta mesma linha, chamou a atenção dos passageiros o comportamento estranho do condutor. Ele deixou de parar em alguns dos pontos para, em compensação, estacionar a meio caminho entre uma estação e outra e acionar lá mesmo as portas para embarque e desembarque. A companhia de transporte público foi avisada por um ou outro passageiro mais preocupado, o bonde abordado mais adiante e o condutor levado ao departamento médico. O teste para uso de entorpecentes deu positivo e o homem de vinte e cinco anos além de ser demitido logo em seguida, foi denunciado na polícia.

O percurso é relativamente longo. O bonde, rangendo nos trilhos, a catenária a estalar, atravessa quarteirões e bairros inteiros de uma notória mesmice. Não foi à toa, penso, que o povo da época não ficou muito animado com a nova residência de seus defuntos. É mal localizada, mesmo para mortos.

Fotos em preto e branco dão uma ideia de como devia ser então a viagem num dia de finados. Nos bondes, que até 1901 eram movidos por tração animal, tinha gente saindo pelo ladrão. Já os préstitos seguiam a carroça com o esquife a balançar precariamente com os solavancos na estrada esburacada. As levas de condolentes mais deviam parecer grupos de romeiros enlutados, na longa peregrinação até o lugar de descanso eterno de seus mortos. Esta despedida pouco digna à memória dos que partiram e pouco cômoda aos que vieram prestar suas últimas homenagens, foi assunto bastante debatido na esfera política e administrativa da cidade. Os moradores dos bairros ao longo da via de acesso ao cemitério também se mostraram incomodados com o transtorno que os enterros causavam ao trânsito e à tranquilidade da região. E provavelmente com razão. Com a entrada em vigor de um decreto do governo municipal, que determinava que a partir de 1. de novembro de 1874, os corpos de todos os falecidos dentro dos limites de Viena, deviam ser enterrados no cemitério central, a média diária de enterros previstos pela administração pública era de cinquenta.

Para solucionar o problema do traslado dos presuntos, o governo mostrou-se aberto à novas ideias e sugestões. Lançou um edital, e um comitê foi formado para analisar e comparar as diferentes propostas. A mais extravagante delas, de longe, foi a do projeto em conjunto do engenheiro Franz Ritter von Felbinger e do arquiteto Josef Hudetz.

Em uma publicação intitulada “Begräbnishalle mit pneumatischer Förderung für den Central-Friedhof der Stadt Wien“, propunham estes dois senhores, que o rito fúnebre, com sacerdote da confissão do finado, últimas palavras e despedida de familiares e amigos, fosse realizado em instalação a ser erguida em local relativamente central, dentro do perímetro urbano. De lá, o caixão seria então despachado para ser enterrado no cemitério. Despachado? Exato. O projeto previa um túnel de 4,5 quilômetros, isolado hermeticamente, pelo qual os caixões seriam expedidos. Um sistema de ar comprimido propeliria pequenos comboios de até quatro ataúdes, que alcançariam o seu destino dentro de aproximadamente dez minutos, atingindo máxima de 27 km/h. A velocidade média do metrô de Viena nos dias de hoje é de 32,5 km/h. Portanto, nada mal para quem tem toda a eternidade pela frente.

O projeto não saiu do papel, mas engana-se quem acha que a proposta foi logo carimbada de estapafúrdia. O comitê selecionou o plano Felbinger/Hudetz entre outros tantos, refutando inclusive a sugestão da companhia ferroviária do império (k.k. privilegierte österreichische Staats-Eisenbahn-Gesellschaft), que visava a implantação de um ramal nos moldes da London Necropolis Railway.

A racionalização da morte correspondia ao “Zeitgeist” vigente. O ducto pneumático ofereceria um transporte rápido e higiênico dos cadáveres. A rudimentariedade de um sepultamento convencional daria lugar a um incrementado sistema hidráulico (hidraulischer Versenkungssarkofag) através do qual o caixão seria baixado à cova. Seria um processo enfim à altura de uma sociedade que se declarava civilizada.

Mas talvez mais do que as inovações técnicas, tenha sido o pragmatismo no entendimento da morte como parte da esfera de responsabilidade da administração pública e não da igreja, que encontrou ressonância na burguesia liberal da década de 1870. Foi nesse espírito que o cemitério central foi idealizado. Um espaço amplo, afastado da aglomeração urbana, cortado por caminhos arborizados dos quais se pode apreciar desde sóbrias lápides até faustosos mausoléus, que evocam a memória dos que se foram.

Quando em três de novembro de 1859 a arquidiocese encaminhou à municipalidade o pedido de aumento das taxas de sepultamento, para através delas financiar-se a expansão urgentemente necessária dos cinco cemitérios comunais, a gestão municipal se posicionou contra e optou pela construção de um novo cemitério, utilizando recursos próprios. Esta decisão representou uma ruptura simbólica. Os cemitérios comunais estabelecidos em 1783 por decreto imperial de Joseph II, o filho de Maria Theresia e famoso por seu ímpeto reformista, eram administrados pela igreja católica. O novo Zentralfriedhof seria não apenas responsabilidade como também propriedade da cidade de Viena.

O mirabolante projeto de Hutz e Felbinger com seu pavilhão funerário, com a ala judaica, a ala protestante a ala católica estava, portanto, em harmonia com a concepção do novo culto mortuário que se desenvolveu ao longo do longo século XIX. A crença tornou-se aspecto secundário. Foi suplantada aos poucos por questões sanitárias e de saúde pública assim como uma nova simbologia e estética do além-tomba.

Mas com a decisão de erguer a necrópole sob a batuta dos novos tempos, os problemas não estavam resolvidos. Bastante pelo contrário. Gastou-se mais de uma década em debates acalentados. O pontapé inicial havia sido dado na gestão do Dr. Andreas Zelinka, entretanto, quem ficou com o pepino foi seu sucessor, prefeito Cajetan Felder. Este foi inclusive acusado de, por motivos pessoais, influenciar na escolha do terreno em Simmering. Pois um dos vizinhos é (até hoje) uma cervejaria, cujo herdeiro e dono, Anton Dreher filho, menor de idade na época, estava justamente sob a tutela do senhor Felder. Só não me perguntem qual a vantagem de ser vizinho de um cemitério.

As diversas vertentes políticas pareciam não entrar em consenso, nem mesmo no que dizia respeito ao designativo do cemitério. Para um grupo o termo “Friedhof” (cemitério), cunhado lá no século IX, não era mais do agrado e queriam porque queriam rebatizar o local de “Leichenfeld”, o campo dos cadáveres.

As disputas se arrastaram até 1869, quando no dia três de dezembro, a câmara dos vereadores finalmente bateu o martelo para a compra do terreno, no então município de Kaiserebersdorf, agora parte de Simmering, XI. distrito de Viena.

Foi, em seguida, aberto um concurso para a elaboração da planta, do qual os arquitetos Carl Jonas Mylius e Alfred Friedrich Bluntschli, ambos de Frankfurt, saíram vencedores. Seus desenhos e traçados foram seguidos e, ao que tudo indicava, a cidade de Viena em breve teria o seu cemitério central. E de fato, nenhum grande entrave atrapalhou a execução da obra e tudo corria perfeitamente tranquilo, até que… Até que surgiu, nas altas esferas do poder e depois até mesmo nas mesas de taberna dos subúrbios, a pergunta de como e principalmente de quem inauguraria tão importante marco na capital do império. Irrompeu uma disputa entre a arquidiocese e a prefeitura.

Os ânimos dos vereadores, seguindo sua propensão natural, logo se reascenderam e o bate-boca teria talvez medrado a proporções mais críticas, se não fosse o tato do cardeal Othmar von Rauscher, que soube resolver o impasse diplomaticamente. Seguindo a sua sugestão, o primeiro sepultamento ocorreu discreta-, quase secretamente ainda na madrugada do dia trinta de outubro, para que no dia de finados de 1874, o prefeito pudesse declarar solenemente a então maior necrópole da Europa aberta.

II. Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei (Mateus 11:28).

E eu desço enfim do bonde. O outro lado da rua é flanqueado por lápides. Estas ainda sem dono, expostas e à venda. Entre elas um edifício, moderno e de faixada arrojada, abriga o centro funerário da cidade de Viena. Deste lado, atravesso o estacionamento praticamente vazio, passando em frente ao quiosque de cachorro-quente em direção ao portão 2, a entrada principal do cemitério. O visitante é recebido por um imponente portal, entre dois colossais pilões. Na pilastra da esquerda, o trabalho do escultor Georg Leisek representa Cristo recebendo os mortos. Na da direita, figuras esculpidas por Anselm Zinsler simbolizam a admissão num reino de onde não há mais volta.

Há também, antes do início da alameda central, uma loja da B&F (Bestattung und Friedhöfe Wien), a estatal responsável pelos assuntos pós-vida na cidade. Expostos na vitrine, estão desde pen-drives em forma de caixão, coche fúnebre e crematório de Lego (!!!), até sacola de ginástica com a frase “Ich turne bis zur Urne” (quer dizer algo como: faço ginástica até virar pó), sacola e camiseta com a estampa “Ich lese bis ich verwese” (leio até apodrecer/me decompor), outras camisetas, todas pretas, uma dizendo “We put the FUN in FUNERAL”, outra “Rauchen sichert Arbeitsplätze” (fumar garante vagas de emprego), uma com a imagem de um ceifador com “Der letzte Reiseleiter” (o último guia de viagem) escrito embaixo ou um avental de cozinha, este branco, uma fatia de bolo e um muffin de estampa e a legenda “Ich nasche bis zur Asche” (petisco até virar cinza).

Tendo apreciado isso tudo, me vêm à mente o que os vienenses dizem a respeito deste seu cemitério central: “Der Zentralfriedhof ist halb so groß wie Zürich, dafür doppelt so lustig” (na minha tradução mequetrefe: O cemitério central tem a metade do tamanho de Zurique, mas oferece o dobro em diversão). Conhecendo Zurique relativamente bem, confesso que há nisso um fundo de verdade.

Agora tenho a alameda e efetivamente toda a necrópole à minha frente. Trezentos e trinta mil sepulcros, mais de três milhões de enterrados numa área de aproximadamente 2,5 quilômetros quadrados. Começo modestamente pelo grupo 0. Que abrange, ao longo do muro entre o portão 2 e o portão 3, a primeira leva de túmulos de honra. Em 1881, o então diretor do arquivo Karl Weiß, foi encarregado de conceber uma lista com os nomes de figurões de calibre que marcaram a história da cidade e que, detalhe importantíssimo, já estivessem mortos. Os restos mortais de boa parte destas personalidades foram exumados nos cemitérios mais antigos e realocados a este campo santo. Mais perto da natureza, mais longe da badalação. São todos nomes de peso, mas eu em minha ignorância, conheço apenas dois. Adolf Loos, o arquiteto. Que certamente foi enterrado aqui bem mais tarde, pois faleceu em 1933. E Antonio Salieri, o compositor que entrou para a história como o rival invejoso de Mozart. Por sorte investi em um guia do historiador Hans Havelka, ao que tudo indica um cara bacana que dedicou sua vida à preservação da memória do distrito de Simmering. Este livrinho me explica quem são os vizinhos de Loos e Salieri. Tem de tudo. Outros arquitetos e outros compositores, mas também todo tipo de cientistas e intelectuais, políticos, atrizes e atores, artistas de todos os campos das artes, filantropos e aventureiros.

Aventureira foi a senhora que agora jaz sob um obelisco sobre o qual se equilibra um globo de cobre. Ida Pfeiffer (1797–1858), viúva, juntou em 1842 a pouca grana que tinha e viajou sozinha à Constantinopla. Estendeu a viagem até Jerusalém, o Egito, voltando pela Itália e depois de nove meses na vida itinerante reuniu as anotações de seu diário em um livro que logo alcançou status de best-seller. Desta maneira financiou suas próximas empreitadas que a levaram duas vezes ao redor do mundo, em 1846 e 1851. Foi a primeira mulher europeia a explorar o interior da ilha de Bornéu e a trombar com o povo dos Batak, considerados canibais, nas selvas de Sumatra. Publicou treze livros antes de falecer em 1858 já em Viena, depois de voltar com uma grave infecção de Madagascar. Seu túmulo é o primeiro túmulo de honra concedido à uma mulher no cemitério central.

Lamento não poder discorrer sobre as façanhas que valeram às demais damas e cavalheiros o ingresso nesta distinta ala. Mas acontece que já não sinto mais os dedos das mãos. E leio aqui no meu guia, que pouco adiante e flanqueando a alameda central, começa a próxima de uma série de seções de ilustres presuntos (os grupos 14A, 32A, 14C, 32C). Que também há algo chamado bosque dos artistas (grupo 40), que há os memoriais aos caídos na revolução de março de 1848 (grupo 26), às vítimas do incêndio do Ringtheater (grupo 30A), aos combatentes da primeira guerra (grupo 79), ao soldado judeu (portão 11), às vítimas das demonstrações de 15 de julho 1927 (grupo 41G), às vítimas de fevereiro de 1934 (grupo 28), monumento aos combatentes que perderam a vida na segunda guerra mundial (grupo 97), memorial às vítimas dos bombardeios de 1944/45 (grupo 26), memorial aos que caíram lutando pela resistência 1938–1945 (grupo 40), que caíram lutando pela resistência tchecoslovaca (grupo 42), dos que morreram lutando por uma Áustria livre 1934–1945 (grupo 41), monumento ao soldado soviético (sem indicação), sem contar o mausoléu dos presidentes em frente à chamada “Luegerkirche”, a igreja em cuja catacumba está o sarcófago do polêmico ex-prefeito Karl Lueger, e…

Memorial aos soldados judeus caídos na 1. guerra mundial

Começo a caminhar, seguindo pela alameda e mais preocupado do que você, que lê este texto. Pois o que você ainda não sabe, é que além da católica, há a seção israelita do cemitério, a nova e a velha, a evangélica, a russo-ortodoxa, a islâmica, a islâmica egípcia e a budista.

Enfrento o frio cortante apertando o passo e evocando a cena final do “The Third Man”, na qual Holly Martins desce do jipe do major Calloway para esperar Anna Schmidt, bonita e melancólica descer esta mesma alameda entre dois renques de plátanos desfolhados. É claro que se eu percorresse o caminho inverso, não encontraria o túmulo onde jazeria seu amante Harry Lime, interpretado por Orson Welles.

Assobiando a música tema do filme, quase que passo reto pelo grupo 32A, a seção mais vip entre todas as seções vip do cemitério. Um grupo de turistas, as primeiras pessoas que vejo desde que desci do bonde, fotografam entusiasmadas lápides e mausoléus. Alguns dos que aqui jazem sete palmos no chão, dispensam apresentações. São deles os túmulos mais cobiçados pelas lentes das câmaras, é claro. Acredito que Ludwig van Beethoven ganha o primeiro prêmio. Mas o páreo é duro, pois seus concorrentes são Johannes Brahms, Franz Schubert e a dinastia Strauss (Eduard, Johann Pai, Johann Filho e Josef).

Beethoven teve a sua ossada exumada duas vezes. A primeira em 1862 para ser medida e fotografada, a segunda em 1888 para ser transportada do cemitério de Währing (hoje o Schubertpark no XVIII. distrito de Viena) ao relativamente novo cemitério central. Schubert que no enterro de seu colega de ofício segurou a tocha enquanto era declamado o discurso de despedida, o seguiu um ano depois. O seguiu duas vezes. Da vida para o além e de sua antiga cova também em Währing aos subúrbios, ao Zentralfriedhof.

Em lugar de destaque, formando o cerne desta ala e circundado pelos outros eminentes, de forma que parecem reverenciá-lo, está Wolfgang Amadeus Mozart. Me lembra uma passagem do Guilherme Tell, na qual o alcaide habsburgo de Schwyz, Hermann Gessler, um déspota, manda alçar seu chapéu na ponta de uma lança fincada na praça da cidade de Altdorf, para que seus vassalos ao passaram em frente, saudassem seu governante mesmo em sua ausência. Pois Mozart não está aqui. Ele foi sepultado no dia seis ou sete de dezembro de 1791 no cemitério de St. Marx (III. distrito de Viena). E ao contrário dos demais aqui presentes, seus restos mortais não puderam ser realocados, pelo fato de ter sido ele enterrado em uma vala comum.

Estas covas não eram exclusivas para indigentes e tampouco destinadas a sepultamentos em massa, mas sim, nas quais a maioria esmagadora da população, sem títulos e honrarias, era enterrada. O direito de uso do túmulo caducava após dez anos e a cova recebia o seu próximo inquilino. A ossada do menino prodígio de Salzburgo perdeu-se entre terra, cascalho e a ossada de tantos outros que por aqui passaram sem deixar rastros.

Toda a pompa destes jazigos e o rebuscado memorial a Mozart, entretanto, me passam uma impressão de artificialidade. A encenação de um panteão. Arrancados da terra temperada por suas entranhas para serem expostos um ao lado do outro como troféus em uma galeria. Destoam do mar de lápides no seu entorno, que sóbrias ou ornamentadas marcam a porção de terra que de uma vez por todas engolfou os que se foram.

O que não me impediu de perambular por mais um tempo por este bairro nobre da metrópole dos mortos. E entre seus residentes encontrar dois senhores que, pelo mais estranho que pareça, cumprimento como velhos conhecidos. O primeiro deles, Johann Nepomuk Eduard Ambrosius Nestroy (1801–1862). A quem aquela frase batidíssima “sua obra continua atual/não perdeu a sua relevância” de fato calha. Ao menos para mim, que vou fazer trinta logo mais. Como o exímio dramaturgo e comediante que foi, sua peça “Dreißig Jahre aus dem Leben eines Lumpen” (trinta anos da vida de um patife) me faz chorar. Chorar de rir, quero dizer. Mas além desta, escreveu inúmeras outras, a maior parte delas sucesso absoluto de bilheteria. Suas farsas, que arrancam ainda hoje gargalhadas da plateia, se analisadas mais a fundo, estão repletas de sátira, deboche e referências ao mundo em que vivia, a Viena de meados do século XIX. Foi expoente máximo da era dourada do teatro na capital do império.

Após carreira brilhante, Nestroy desfrutou a aposentadoria na cidade de Graz, no sul do país. E talvez (admito que não passa de pura especulação), tenha nestes últimos anos de sua vida, usufruído da recém-inaugurada estrada de ferro Viena-Graz-Trieste. A primeira ferrovia a cruzar os alpes e de fato a primeira de bitola padrão a ser construída em terreno montanhoso em qualquer parte do mundo. Todo o percurso, mas em especial os 42km conhecidos como “Semmeringbahn”, que galga através de quatorze túneis e dezesseis viadutos trecho à primeira vista intransponível da cordilheira, é um tremendo feito da engenharia. E não apenas do ponto de vista histórico. Pois ainda hoje, mais de um século e meio desde sua inauguração, continua operante, e constitui a principal ligação por via férrea entre a maior e a segunda maior cidade do país. Esta obra foi projetada e coordenada pelo outro. Digo, pelo outro senhor que faço questão de saudar já que passo em frente à sua morada. Chama-se Carlo Ghega ou, depois de ser agraciado com o título de fidalguia, Karl Ritter von Ghega (1802–1860). Na Áustria, seu rosto é certamente familiar à geração pré-Euro, pois ilustrava a nota de 20 Schilling.

Entre os galhos das árvores, vejo a imponente cúpula da igreja dedicada oficialmente a São Carlo Borromeu e informalmente ao ex-prefeito Karl Lueger e à qual pretendo me dirigir em passos rápidos para me abrigar do frio e do vento impetuoso. Mas antes de alcançar o chão de brita do caminho perfeitamente retilíneo que leva à igreja, estanco um tanto surpreso diante da lápide de Eduard van der Nüll. Por que surpreso? Por acaso o renomado arquiteto, que assinou obras importantes como o Sophienbad, o Carltheater, o palacete Larisch-Moennich, o arsenal de guerra, o Roberthof, o antigo Haashaus (completamente consumido pelo fogo em 1945) e nada menos que a mundialmente conhecida casa de ópera de Viena, não merece a homenagem póstuma de um túmulo de honra? Por favor! quem sou eu para afirmar o contrário! A questão é a seguinte. Estamos no enorme setor católico de um cemitério erguido nos tempos de império, um império que abrangia diversas religiões, mas cuja matriz era indiscutivelmente católica. O catolicismo tinha na Áustria um dos seus grandes bastiões. E van der Nüll partiu deste mundo deliberadamente, passando a cabeça pelo lasso da corda que alçou sobre a porta de seu gabinete de trabalho.

A austeridade de sua sepultura chama a atenção entre o ubíquo sobejo de ornatos. Um pequeno obelisco de granito e VAN DER NÜLL gravado em letras douradas, sem data de nascimento ou de falecimento. Talvez, e divago mais uma vez para a especulação, seja a admissão do pobre Eduard no hall da fama post-mortem uma tentativa de retratação da cidade de Viena. Tanto por parte do governo como pela sociedade como um todo.

Van der Nüll e seu amigo e sócio de longa data August Sicard von Sicardsburg projetaram a ópera para ser a primeira grande edificação ao longo do novíssimo Ring, o anel viário em torno do centro antigo, que tomaria o lugar da muralha dos tempos medievais. Por infelicidade, o departamento municipal de obras que tocava a implantação da avenida, fez alguma cagada e o nível da rua ficou um metro acima do projetado. Com isso, a fachada da casa de espetáculos, ainda inacabada, perdeu muito da harmonia das proporções. Os transeuntes ao passar diante do esqueleto do edifício sacudiam a cabeça em desaprovação, a imprensa enxovalhou sem dó a dupla de arquitetos e até mesmo o Kaiser não se conteve e afirmou repetidamente que sua ópera mais parecia um caixote afundado (“versunkene Kiste”). Posteriormente corrigiu-se o traçado da avenida e quando pronta a ópera, mostraram-se todos bastante contentes com o resultado e orgulhosos do novo marco na paisagem. Van der Nüll, entretanto, já estava morto. Suicidou-se um ano antes da inauguração. Sicardsburg seguiu o amigo dentro de dois meses, vítima de uma parada cardíaca ou da tuberculose (as fontes divergem). Reza a lenda, que este episódio deixou o soberano Franz Joseph I. bastante consternado e que arrependido de suas duras palavras, deste momento em diante absteve-se de manifestar publicamente a sua opinião. Alegadamente, eis a origem da sua lendária frase “Es war sehr schön. Es hat mich sehr gefreut.” (Foi muito bom. Fiquei muito contente.), que empregava em toda santa ocasião, que não queria dizer porra alguma, mas também não ofendia ninguém.

Começa a nevar, o ar estremece com o voo rasante de um Airbus a poucos quilômetros da cabeceira da pista do aeroporto de Schwechat e eu, enfim, alcanço a esplanada em frente à igreja. Dois pelotões parecem guardar o que é o coração, é claro que não mais pulsante, deste cemitério. A guarnição da esquerda é comandada por Ludwig Boltzmann (1844–1906), cujo terrível busto sobre pedestal de mármore e o olhar sinistro inspiram respeito e um pouco de medo. O eminente físico, pioneiro da teoria atómica e que prestou valoroso serviço no campo da termodinâmica estatística, é o residente do túmulo 1 do grupo 14C.

O outro flanco, em crasso contraste, segue as ordens de Hans Moser (1880–1964). “Mei Naserl ist so rot, weil ich so blau bin” é o que ele diria. Acho que esta frase cai na categoria do intraduzível, mas sugiro que deem uma olhada em suas canções e por que não, também nos seus longas-metragens. Ator e cantor, o senhor Moser interpretava em primeiro lugar a si mesmo e com isso um arquétipo do vienense bon vivant e pândego. Tornou-se parte da herança cultural da cidade. Jaz sob um canteiro bem cuidado no qual está fincado uma lápide de granito bastante singela e dedicado a ele e à sua esposa Bianca.

A cúpula da igreja de traços notadamente “Jugendstil”, é magnificente e contemplando-a meio embasbacado, quase que caio de cara no chão da cripta presidencial. Pois quatro degraus, nos quais eu não havia reparado, descendem exatos noventa centímetros à uma espécie de praça circular de vinte e quatro metros de diâmetro, bem no meio da esplanada. O piso é de mármore escuro. A mureta que limita o espaço é de granito e nela estão afixados, em letras de ferro, o nome dos presidentes mortos da chamada segunda república austríaca. São as ossadas de nove pessoas conservadas no subsolo da praça. Sete ex-presidentes (Karl Renner, Theodor Körner, Adolf Schärf, Franz Joseph Jonas, Rudolf Kirchschläger, Kurt Waldheim e Thomas Klestil) e duas ex-primeiras-damas (Luise Renner e Herma Kirchschläger).

A Áustria é uma república parlamentarista. Quem está à frente do governo é o chanceler. O chefe de estado, entretanto, é o presidente da república (eleito diretamente pelo povo). Um sistema um tanto intricado de controle mútuo e de direitos de veto define a relação entre os dois, o restante da máquina governamental e o parlamento. Mas enfim, o que quero dizer, é que, comparado com outros sistemas políticos mundo à fora, como o estadunidense e os das repúblicas latino-americanas, no austríaco, a figura do presidente não sobressai da mesma maneira, não é a autoridade máxima do poder.

Assim é, à primeira vista, um tanto peculiar, que justamente neste país, se veio com a ideia de enterrar uns ao lado dos outros os seus ex-presidentes e, ao menos na teoria, criar desta forma um local de veneração republicana. Em 1951 o primeiro presidente (do pós-2. Guerra e da tal da segunda república) Dr. Karl Renner foi sepultado neste quinhão de terra. No dia de finados de 1952, a cripta foi solenemente inaugurada. Por um lado, tratava-se de mais uma tentativa de fortalecer a identidade de uma nova nação. Territorialmente pequena, se comparada com suas dimensões da época do império, peça de pouca importância no tabuleiro geopolítico e que, é claro, procurava distanciar-se do pesadelo chamado Terceiro Reich. Por outro lado, havia talvez uma propensão a empilhar gente importante em catacumbas. Vide a famosa Kapuzinergruft, que acomoda a ossada da dinastia dos Habsburgos desde 1633.

O mausoléu é uma construção simples, despojada de adornos, projetada não por um arquiteto ou artista de renome, mas por um funcionário público. As linhas se distanciam ao máximo das tumbas rebuscadas da alta nobreza e parecem testemunhar o período pelo qual o país então passava. Que era o de penosa reconstrução em meio à escassez generalizada de bens de consumo e alta taxa de desemprego.

No centro da praça fica o ataúde de pedra de Karl Renner. É meramente simbólico, já que o doutor descansa na cripta junto com sua esposa e colegas de ofício. De lá do fundo, no dia 1. de janeiro de 1951, ele mandou um último recado ao mundo dos vivos. Por radiodifusão e para toda a nação. Renner faleceu na noite de réveillon de 1950, quando seu discurso de ano novo já tinha sido gravado. No dia seguinte, levaram-na ao ar.

III. Vindobona recebe os seus mortos

Vindobona era o nome do povoado romano que precedeu Viena. Acima o dr. Karl Lueger, prefeito da cidade entre 1897 e 1910.

Mais uma vez ergo a vista em direção à cúpula da igreja de São Carlos Borromeu e à cruz no topo, a 58,5 metros do solo (não medi pessoalmente, está escrito no meu guia). Na torre do campanário, o mostrador do grande relógio não indica as horas. No lugar dos números, letras formam: TEMPUS FUGIT. Realmente. Aperto o passo e alcanço logo os vinte e dois degraus que me levam ao átrio da nave da igreja e passando por debaixo do coro alto estou sob o céu estrelado que enfeita a enorme abóboda central. Simboliza a presença de Deus no repertório iconográfico dos antigos egípcios.

A monumentalidade da construção, digo da igreja, em meio ao mar de mortos exprime a onipotência de Deus, que é mais forte que a morte. Isso é o que me explica o panfleto que peguei ao lado da entrada. A planta do edifício segue a forma de um círculo e de uma cruz: símbolos da eternidade e da salvação. As três escadas que levam ao limiar da casa de Deus representam os três caminhos que levam a Deus: através da sagrada escritura, através da contemplação da natureza e através de tudo que é bom e belo no mundo.

Max Hegele, ao projetar a igreja em 1899, consultou o renomado teólogo da universidade de Viena, professor Heinrich Svoboda, a respeito da concepção que a doutrina cristã tem da morte, do rito fúnebre e quais aspectos, em sua opinião, deveriam ser considerados na construção de uma igreja de cemitério. E o jovem Hegele (27 anos na época) de fato baseou-se nas dicas do professor, mas na concepção do projeto atreveu-se a ir muito além e seus traços vanguardistas incorporam além de elementos da arquitetura eclesiástica, atributos das necrópoles milenares do Egito. Vide a cruz ansata (ou Ankh) na faixada e, nas catacumbas, o sarcófago do faraó, quero dizer do ex-prefeito Dr. Karl Lueger. A estratégia deu certo. O comitê do júri, do qual fazia parte ninguém menos que Otto Wagner (1841–1918, importante arquiteto da virada do século), concedeu ao projeto o prêmio de primeiro lugar e entre os anos de 1908 e 1911 ergue-se o templo.

É uma construção muito bonita. O panfleto diz que é uma joia do Jugendstil, algo que não se encontra em outro cemitério mundo a fora. E pessoalmente, gosto da simbologia mundana, que não provém das escrituras, como a ampulheta e o ceifador. Ambos remetem claramente à transitoriedade da vida.

Mas, para ser sincero, não me livro da impressão de profanidade. Não devido aos elementos alheios à religião cristã. Pois é bem verdade que os bons e velhos motivos bíblicos também não faltam. Já no átrio, de um lado a expulsão do paraíso, do outro o luto por Abel. Na nave, mosaicos retratam os evangelistas e nos realmente maravilhosos vitrais vê-se a transfiguração de Cristo no alto do monte Tabor e a aparição de Moisés e Elias, em um dos vitrais da nave colateral Cristo envolto por uma mandorla e atrás do altar-mor, Cristo na cruz e flanqueado por dois anjos e a representação do dia do juízo final. O que me incomodaria, caso eu fosse uma pessoa religiosa, é o seguinte. Primeiramente, mas em menor escala, a profusão do brasão do município que também se encontra em qualquer lixeira ou banco de praça na cidade e que dá ao templo o aspecto de uma subsecretaria da prefeitura e em segundo lugar e de maior gravidade, a representação, atrás do altar mor, do ex-prefeito Karl Lueger de camisola branca e rodeado por anjos ajoelhados. E ao seu lado, também ajoelhado, mas usando um capote preto, seu sucessor no cargo, o Dr. Josef Neumayer.

A administração pública tomou da religião o cargo de despachante dos trâmites da morte.

IV. Quando cai a noite em Simmering

Morrer em Viena não é barato. Um enterro completo dificilmente sai por menos de cinco mil Euros. Mas há uma maneira mais em conta para embarcar para o além: doar o corpo à ciência. Tampouco é de graça, mas por mil Euros a conta está saldada. A medicina agradece e os familiares provavelmente também.

Até 2009, os restos mortais destes altruístas eram sepultados em covas anônimas no grupo 26, conhecido como o cemitério da anatomia. A administração da necrópole optou, então, por erguer um memorial no local. Muretas de um vermelho alaranjado formam um octógono, em cujo centro estão dispostas lanternas que recebem as velas de quem vem prestar homenagem aos que aqui jazem.

Imaginando o meu corpo lívido sendo dissecado numa cena muito parecida com a da “Lições de anatomia do Dr. Tulp” de Rembrandt, sigo adiante. Vejo como o bisturi talha a carne fria de meu antebraço e como aparecem as veias e as artérias em feixes bem ordenados, como se fosse a fiação num quadro de energia.

Me afasto do cemitério da anatomia por uma das alamedas que cortam na diagonal os domínios da necrópole. As lápides dos católicos que flanqueiam a via de ambos os lados variam em forma e aparência dentro de uma gama de modelos protótipos e propagam-se, assim me parece, infinitamente e como que por algum algoritmo.

Caminho por entre as linhas de um exército de granito e mármore, onde as cruzes de ferro contra o céu são as armas em riste e as musas de pedra plangentes comandam seus pelotões. Mas há um grupo que se destaca entre os demais. Na ala 35B, fileiras de cruzes de madeira fincadas na terra são intercaladas por singelas plaquetas também de madeira à poucos centímetros do chão. Alguns dos túmulos estão repletos, além de flores, de enfeites alegres, bichos de pelúcia e cata-ventos multicolores, fazendo deste lote um dos mais tristes de todo o Zentralfriedhof. É o chamado Babyfriedhof, o cemitério dos nenéns. “Aqui descansam aqueles, cuja estada entre nós foi breve demais.” É o que diz uma placa virada para a rua.

De acordo com a lei austríaca, um bebê que apresenta sinais de vida após o parto, mesmo falecendo logo em seguida, há de receber uma certidão de nascimento, e para tal, um prenome. Assim, a certidão de óbito pode ser emitida normalmente, como para qualquer outro cidadão. Esta criança deve ser sepultada. Como natimorto, é classificado o bebê que pesa mais de 500g no momento do nascimento e que, é claro, já nasce morto. Neste caso o registro de um nome próprio é opcional, já que não é emitido nem a certidão de nascimento, nem a de óbito. A criança é meramente listada em um registro de óbitos. O sepultamento segue sendo obrigatório. Se o filho ou a filha tiver peso abaixo dos 500g, seus restos mortais são cremados, as cinzas guardadas em urnas que são depositadas em uma espécie de cripta comum. Neste caso, não é possível registrá-los oficialmente com nome e sobrenome. Para o estado, a criança jamais existiu. Tanto que, em tais circunstâncias, a mãe não tem direito ao período de licença-maternidade previsto por lei. Ela pode pedir, no máximo, licença médica.

Os túmulos do grupo 35B são concedidos de graça, mas o direito de uso caduca após dez anos, sem a possibilidade de estender o prazo. Eles estão dispostos entre seis caminhos que irradiam todos de um cerne e que, vistos de cima, remetem às pás de um cata-vento. No centro há um pavilhão que encobre um totem de madeira no qual foram afixadas lanternas. Pelo que entendi, toda a estrutura simboliza a integração dos quatro elementos e o arquiteto responsável, o Professor Dr. Riccabona, conduziu até mesmo medições geomagnéticas para identificar campos de força, que demarcou plantando quatro árvores, cada qual em uma extremidade.

Do pavilhão, erguido sobre um morrote, vejo de longe a ponta de um obelisco que sobressai em meio às demais lápides. A altura máxima permitida para uma laje de sepultura neste cemitério é de 2,70m. O obelisco, com 3m. da base ao vértice evidentemente ignora esta regra. Assim que me pergunto, quem é que esse presunto pensa que é? ou que foi? Não somos, ao menos no além-tomba, todos iguais? Para administração do cemitério a reposta é não. Pois abriram uma exceção e revogaram, apenas para o tal cidadão, a restrição.

Complementam o obelisco de granito africano vermelho, uma lápide de basalto na qual estão cravados o nome (Hans Hölzel) e as datas de nascimento (1957) e falecimento (1998) de quem ali jaz. A superfície áspera da pedra, à mercê da intempérie, simboliza a vulnerabilidade do homem. Uma coluna caída sobre a cova, representa o indivíduo arrancado do seu meio e no meio de sua vida. Verticalmente, no obelisco, lê-se FALCO. O nome artístico de Hans Hölzel, sob o qual atingiu o estrelato, foi expoente máximo do Austropop e conquistou o público além das fronteiras de seu país. Seu “Rock me Amadeus” é até hoje a única canção em alemão a alcançar (e ficou por lá por três semanas) o topo do Billboard Hot 100, a mais importante parada de sucessos norte-americana. Lançou outros hits como “Der Komissar”, “Ganz Wien”, “Out of the Dark”, “Vienna Calling” e “Jeanny”. Seus ternos haute couture, o tom afetado de sua voz amalgamando com um sintetizador pesado, deixaram saudades no coração de uma legião de fãs que todo ano, no dia de sua morte, peregrinam ao seu túmulo para tietá-lo, mesmo que post-mortem.

Um grande vidro blindado na forma de ¼ de círculo representa um CD partido. Alude ao artista e à sua carreira. Delineiam o arco da circunferência o título de algumas de suas canções mais famosas. Elas pairam sobre a figura em tamanho real de Falco, tirada do cartaz de alguma turnê da estrela pop.

Túmulo do cantor e compisitor Falco (1957–1998)

Contemplo todo o conjunto. Falco o artista (obelisco), a sua obra (disco de vidro) e Hans Hölzel, a pessoa (lápide). E me lembro de uma madrugada chuvosa, voltando de táxi de alguma bebedeira. A água escorria pelo vidro das janelas e eu, admito que bastante chumbado, tinha a impressão de que o para-brisas ia e vinha no compasso de “Jeanny”, que ecoava do rádio. O taxista ia me contando que o exame toxicológico feito pelas autoridades da República Dominicana, constatou a presença de álcool, cocaína e marijuana no sangue do cantor Falco, no dia do acidente que lhe custou a vida. Foi em 6 de fevereiro de 1998, na estrada de Puerto Plata, no litoral norte do país caribenho, que seu Jipe colidiu de frente com um ônibus.

E falando em ônibus, lá vem o circular 106. Corro até o ponto, desembolso € 0,60 e recostado comodamente na poltrona, recobro aos poucos os movimentos dos dedos da mão. Meus pés são dois tijolos, dois blocos de gelo. O circular circula. Uma linha de ônibus toda dentro dos domínios do cemitério central. Qual outra cidade conta em sua malha de transporte público com uma parada chamada “Friedhofsgärtnerei” (jardinaria do cemitério) ou outra intitulada “Kindergräber” (sepulturas infantis)? Dei sorte, o bumba passa apenas a cada meia hora. Ele segue até o extremo leste do terreno, contornando o cemitério evangélico e o novo cemitério judaico. Lá, dá meia volta e percorre praticamente toda a face norte, passando rente aos túmulos da segunda guerra, dos soldados sérvios, franceses e poloneses e em seguida pelos túmulos da primeira guerra. Mas como já vi túmulo até dizer chega, me interessei mais pelo muro de alvenaria que cerca o terreno. São oito quilômetros de muro!

Desço no ponto “grupo 47” logo ao lado da seção budista. Bandeiras de oração tibetanas flamulam ao vento. Assim como no cemitério dos bebês, as covas estão aqui dispostas em torno de um ponto central e encaixam-se em uma grade de caminhos, a formar um octógono. Todos os caminhos levam à estupa. Um monumento de base cilíndrica e de concreto, abóboda de aço e vidro e, no topo, uma pequena torre em formato cônico. A estupa representa a mente iluminada de buda e guarda algumas escrituras do Sutra.

Além das fileiras de jazigos, um jardim completa o octógono. É na verdade um gramado judiado pelo inverno e cortado pelos oito caminhos, os raios da famosa roda do Dharma (Dhammacakkha). Estes representam o nobre caminho óctuplo que consiste na compreensão correta, no pensamento correto, na fala correta, ação correta, no meio de vida correto, no esforço correto, na consciência correta e na concentração correta. Cultivado em harmonia e levado à maturidade, o caminho óctuplo leva ao “centro”, à paz, que se encontra tanto no meio como além das condições de existência em constante mudança: o Nirvana.

A Áustria foi a primeira nação europeia a reconhecer oficialmente o budismo como religião. Isso em 1983. Os dados variam, mas estima-se que vivam hoje entre vinte e vinte e cinco mil adeptos do budismo no país. A seção budista no cemitério foi inaugurada no dia 21 de setembro de 2003.

Do outro lado da rua começa o antigo cemitério judaico (o novo fica no lado oposto do terreno). São 260 000 m2 que entre 1879 e 1916 receberem 80 000 mortos. É a minha parte preferida do Zentralfriedhof. As lápides, algumas de pé, outras caídas, revelam as marcas e os estigmas do tempo. A pedra trincada e o mato que no verão engole por completo as tombas, no inverno parece enlaçar com suas garras e tentáculos negros o granito e o mármore com as epígrafes em hebraico. Os corvos, ao contrário do ceifador e da ampulheta nos afrescos da igreja, são a representação real e viva da morte. Seus olhos pretos e reluzentes como piche acompanham o visitante e seu chilro áspero é a trilha sonora do cemitério.

Ciente do ridículo, não posso evitar a impressão de que algum estranho feitiço mandinga este bosque, este recanto da necrópole. O imoto e o vetusto de um lado e a voracidade do engolir e ser engolido, o alastrar-se irreprimível de tudo que é vivo do outro. Aqui, a passagem do livro Gênesis “(…) até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás” (Gênesis 3:19), se ratifica quase que ao olho nu. E não nos canteiros bem cuidados dos cristãos.

Há ainda, aquinhoados aqui e ali, morrotes de entulho. Que, chegando mais perto, logo se vê que são compostos de lascas e fragmentos menores e maiores de lápides, com os mesmos caracteres hebraicos e os símbolos que se encontra nos demais jazigos. São os escombros dos bombardeios de segunda guerra. Vizinho de muro da seção judaica, é um grande pátio de manobras de trens cargueiros. E um pouco além, a enorme refinaria de Mannswörth. Pontos estratégicos, certamente. E assim, morto também foi vítima de ataque aéreo dos aliados. Osso.

Desço uma das sendas que cortam o extenso lote na perpendicular e que sequer constam no mapa do meu guia. O dia curto de janeiro vai chegando ao seu fim e sob a ramagem não podada, a noite cai mais depressa. O caminho de grama, terra e restos de cascalho, meandra uma legião de tombas de gente esquecida, até desembocar em um descampado de grama queimada e ressequida pela friagem. Sobre este terreno vazio, erguia-se, e isso já faz bastante tempo, o pavilhão cerimonial da seção israelita. Foi destruído em 10 de novembro de 1938 pelos nazistas, na infamada “Reichskristallnacht”, o pogrom da noite dos cristais.

Com vista para esta ampla área livre, na primeira fileira do grupo seis, descansam, lado a lado, Dr. med. Arthur Schnitzler (1862–1931) e Friedrich Torberg (1908–1979). O primeiro, médico, escritor e dramaturgo, um dos medalhões da cena literária vienense da virada do século XIX para o XX. O outro, também literato, jornalista, publicista, roteirista, ganhou notoriedade através do seu romance de estreia “Der Schüler Gerber” e da coleção de anedotas “Die Tante Jolesch”.

Ambos são desde 2007 titulares de túmulos honorários (mantidos e custeados pelo município). Antes disso, tal distinção simplesmente não era conferida a judeus. Uma tremenda, tremenda injustiça.

Há cerca de 350 000 túmulos de judeus em Viena. Como já disse antes, 80.000 na seção israelita antiga e mais 60.000 na seção nova do cemitério central. E o restante principalmente em Währing e no cemitério do Alsergrund. Até a virada do milênio, o governo municipal pouco se lixava com a manutenção destes campos santos e à comunidade israelita bastante modesta (conta atualmente com cerca de 7000 membros) faltavam recursos para a conservação adequada dos sepulcros. Assim, por mais de meio século, estas áreas ficaram largadas ao relento. Com a entrada em vigência do novo acordo entre o governo austríaco e o governo dos Estados Unidos da América para a regulamentação das questões de indenização e restituição às vítimas do nacional-socialismo, em 6 de junho de 2001, no qual o governo da Áustria se compromete explicitamente em disponibilizar recursos para a recuperação e manutenção de necrópoles judaicas, houve uma mudança de cenário e começaram a ser empreendidos os trabalhos de restauro.

Em 2005, o secretário da cultura de Viena Andreas Mailath-Pokorny anunciou a formação de uma comissão que avaliaria, um por um, os túmulos honorários cedidos entre 1938 e 1945. O estudo foi além do escopo inicial e, uma vez finalizado, apontou que já muito antes de 1938, cidadãos judeus dignos da distinção pós-vida, vinham sendo “esquecidos”. O município, atendendo ao parecer, decidiu, então, criar uma ala de honra para dignitários de crença judaica logo em frente ao portão 1. Ela conta hoje com 43 sepulturas.

Falando em revisionismo, me recordo de como a mídia, lá em 2012, cobriu a mudança de nome de um trecho do Ring. De Dr. Karl Lueger para Universitätsring. Ouve um certo alvoroço na época e troca de farpas entre os partidos, mas agora ninguém nem lembra mais que uma parte do anel viário havia sido batizada em homenagem ao ex-prefeito. Justificou-se a renomeação com as frequentes declarações de cunho antissemita do senhor Lueger e com a sua posição abertamente anti-intelectual, algo um tanto constrangedor para a Universidade de Viena, cujo endereço foi por mais de seis décadas Dr. Karl Lueger Ring 1.

Contemplo mais uma última vez o panorama do cemitério com a cúpula da igreja sobressaindo da ramagem desnuda das copas das árvores. Nas catacumbas do templo jaz o controverso ex-prefeito. Aqui fora, o céu escuro envolve a torre do campanário e oculta o TEMPUS FUGIT e os ponteiros do relógio. Não se ouve mais o chilro dos corvos, mas apenas o vento uivando.

Quando cai a noite sobre Simmering, irrompe nos mortos um sopro de vida

Então, do outro lado, no crematório, grelham e douram-se medulas ósseas

E lá trás, no jazigo de mármore, lá se vê dois esqueletos,

Eles brindam com duas urnas e disputam pra ver quem bebe mais.[1]

Wofgang Ambros na sua antológica canção “Es lebe der Zentralfriedhof” (Viva o cemitério central) projeta a noite na metrópole necrópole. E quer saber? não me parece tão mau. Talvez eu fique por aqui mesmo.

[1] Wann’s Nocht wird über Simmering, kummt Leben in die Toten

Und drüb’n beim Krematorium tan’s Knochenmork ohbrot’n

Dort hinten bei der Marmorgruft, durt stengan zwa Skelette

Die stess’n mit zwa Urnen on und saufen um die Wette

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