Um almoço incrível

Revista Siesta
SIESTA
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4 min readMay 26, 2021
Imagem: André Silva

A vida é incrível. Tão singular que, para valorizá-la devidamente, periodicamente precisamos contemplar de perto a possibilidade, que se realizará invariavelmente, de perder tudo e todos que prezamos para sempre.

As pessoas são incríveis. É o contato com as pessoas que determina as escolhas na vida de cada indivíduo e tem alguma chance de dar sentido à sua vida. Mas, para isso poder acontecer, temos que caricaturar e edulcorar as características de todas as pessoas com que cruzamos. Em seguida, pegamos esses bonequinhos e brincamos de casinha, organizando personagens em situações ficcionais ou verídicas com começo, meio e fim.

Mesmo com essas simplificações grosseiras, só conseguimos reter a atenção às histórias por alguns minutos — ou segundos. Ainda assim, acabamos omitindo traços e eventos que tragam desconforto ou contradições. Por fim, as pessoas mudam com o tempo e os relatos também ganham matizes diferentes. As pessoas são incríveis.

Há pouco tempo saímos eu e meu pai para comer numa lanchonete do Morumbi. O lugar não é chique, mas o Morumbi é um bairro de São Paulo conhecido por suas mansões.

O Morumbi é um bairro incrível. Apesar de ter fama de “quatrocentão” (tradicional), o território já foi o latifúndio do inglês John Rudge no século XIX. Apenas nos anos 1940 vieram os primeiros loteamentos, quando começaram a se instalar os casarões de alto padrão. Até hoje é um bairro bonito, embora exclusivo, devido às restrições a construções de edifícios e prédios comerciais. Grandes talentos arquitetônicos foram contratados, incluindo os de Vilanova Artigas, empenhados no Estádio de Morumbi, erguido em 1960.

Também nos anos 1960 começaram as invasões de terrenos ociosos por gente sem posses. A favela de Paraisópolis (mais de 100 mil habitantes hoje) é fruto dessa busca por moradia, desesperada e sem chance nenhuma de um resultado digno. O próprio poder público legitimou as invasões no fim da década e nunca foi capaz de suprir direitos sociais nem ordem, aos favelados ou não.

Naquela época já vicejava grande especulação imobiliária e já se manifestava o toque administrativo municipal — parte incompetente, parte leniente — capaz de fazer com que a maior cidade da América do Sul se transformasse em poucas décadas num esgoto a céu aberto louvado pela variedade de opções gastronômicas.

Uma dessas opções era a lanchonete em questão, frequentada por meu pai quando ele trabalhava na região. Já não era esse o caso, e agora vagávamos com o carro pelas pirambeiras do Morumbi.

– Esse bairro é igual ao Jardim São Luís, mas com casarões.

Jardim São Luís é um distrito paulistano originado como conjunto de vilas operárias nos anos 1950. Em 2003, a prefeitura contava 109 favelas em seus limites. De fato, o terreno é igualmente acidentado.

Estacionamos junto à lanchonete, que é próxima de Paraisópolis. O lugar era grande e chegamos cedo — estava vazia. Pouco depois de nos assentarmos, meu pai relembrou que:

– Perto do CEAGESP tem umas ruas laterais com produtoras de vinho, e restaurantes grandes. Conheço um grupo de amigos que trabalha num banco, e um deles é anão. Para conseguir almoçar num desses lugares em hora concorrida, levavam o anão sempre junto. Como o anão estava com dez pessoas, tinha lugar para todo mundo.

– Ele nunca ia sozinho!

– Não… Anão não deveria ter privilégio, não tem nada ver. Ele só é meio pequeno! Ou não é?

– É, acho que sim… Tem uma lei preferencial para anão?

– Não, conta como deficiente. A pessoa que tem nanismo é deficiente.

– Quando se fala em deficiente, um anão não entra automaticamente na mesma categoria de alguém que use cadeira de rodas, por exemplo.

Uma das desvantagens de um restaurante vazio é que falta calor humano para aplacar a fúria do ar-condicionado. Fora isso, a conversa foi agradável e o lanche era gigantesco e saboroso, embora hoje não me lembre do gosto. Sanduíche deglutido, fatura liquidada, de volta ao carro.

No retorno à casa, a paisagem é uma sucessão de muros de condomínios de alto padrão. As avenidas longas se intercalam com as ruas sinuosas, estilo Jardim São Luís, mas forradas de árvores e casas imensas. A desigualdade de condições e a grande quantidade de assaltos são caraterísticas da região.

Então, na entrada por uma das muitas descidas do entorno do Morumbi, meu pai contou casualmente que, voltando de carro do trabalho, fora abordado por um assaltante de moto naquele mesmo ponto voltando do expediente há alguns anos.

A abordagem envolvia o malaco metendo um cano contra a janela e tentando arrancar dinheiro. Ele reagiu, desviando a arma por um instante e acelerando o carro para longe, rumo à casa. Se eu nunca tivesse passado por aquele ponto, num contexto completamente fortuito, nunca ficaria sabendo que ele quase teve o cérebro explodido por uma bala.

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