Uma barata chamada José

Revista Siesta
SIESTA
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22 min readDec 25, 2020

Por J.P. Costa Jorge

Sou professor e fui jornalista. Escrevo. Não há nada de particular sobre isso. Escrevo como alguns tocam música, cantam, cozinham ou jogam futebol. Escrevo porque foi este o lote que me coube. Se soubesse, faria outra coisa. Provavelmente seria mais feliz.

Não há nada mais pedante do que escrever sobre literatura, e quando escrevemos sobre nossa própria, seja ela boa ou má, invariavelmente nos tornamos patéticos. Escrevi este conto no começo da pandemia, impulsionado por um prêmio literário — que obviamente não ganhei. O plano era publicá-lo depois, num livro de contos. Mas a vida atropelou-me, e do tal livro sobraram rascunhos. Um dia. E quando aparecer, saibam que saiu aqui primeiro.

A história é muito engraçada. A personagem principal, perdida em si e no mundo, depara-se com a angústia de uma pandemia. Ela admira Kafka. Imagino o que Kafka diria sobre este conto. É provável que não gostasse.

***

Descobri que o medo vive nos cantos dos olhos. Creio que seja uma adaptação evolutiva, de quando nossos ancestrais andavam por aí descalços nas savanas. Naquela época, era almoçar ou ser almoçado e, quando é assim, o medo pode ser útil. Por isso se instalou, usando um ponto difuso de nossa visão, e, numa espécie de mutualismo biológico, não mais saiu.

Algumas culturas indígenas, quando tomam o Daime, conseguem vê-lo. Nesses casos, ele — ou ela, pois aqui o gênero é uma simples convenção linguística — abandona seu costumeiro lugar e toma a frente das retinas. Mas eu o vi no canto dos olhos. Era um dia ensolarado, bonito e quente, como deviam ser as manhãs nas savanas antes de aparecerem os tigres-dente-de-sabre.

Anexa à minha cozinha há uma pequena área de serviço, que o hábito me fez chamar de “quintal”. É, na verdade, um espaço exíguo, mais comprido do que largo, de chão de lajota e geminado com o sobrado ao lado por uma mureta baixa. É também um dos poucos lugares da casa onde o sol abunda, e por isso tenho o hábito de, pelas manhãs, tomar ali meu café.

No sobrado vizinho funciona uma pequena loja de artesanato. Está sempre vazia, claro. A dona, uma mulher de uns 50 anos, raramente aparece. Quando vem, está sempre muito maquiada, com os braços cobertos por correntes douradas e exalando um perfume doce e insuportável. Creio que seja uma daquelas matriarcas ricas e orgulhosas que, ao verem os filhos saírem de casa, perdem seu propósito, e, para passarem o tempo, criam negócios inúteis.

Mas essa é apenas uma suposição.

Quem sempre está lá é Ivonete. Forte, gorda, baixinha, de pele cor de café-com-leite e cabelos bem tingidos de loiro, ela também tinha uns 50 anos, mas com certeza não era rica. Seu corpo troncudo, de braços másculos, tinha sido talhado pelo trabalho e pelos filhos. Quem sabe talvez tivesse sido bonita…

Ivonete gostava de me contar sobre sua vida, das coisas boas (“ontem eu fui no forró… Cerveja para mim é que nem água!”) e, principalmente, das ruins (“você acredita que meu sobrinho se matou? Tão jovem… Hoje em dia falta Deus. Eu falei para o pai dele, que é irmão do meu ex-marido, um homem tão bom, diferente dele que era um canalha…”).

Ficava ali me falando e falando, e, enquanto falava, passava a vassoura no quintal, lavava e pendurava panos de prato e fazia seus afazeres. Confesso que não prestava muita atenção. Apenas concordava com a cabeça e respondia de forma genérica (“isso mesmo, dona Ivonete, Deus é mais”).

Há milhões de anos, aqui no meu quintal, rondavam os tigres-dente-de-sabre. Há 500, os índios aqui caçavam capivaras e depois iam se banhar no riacho que, soterrado aqui em frente, virou a avenida 23 de Maio. Há 100, existia aqui uma casa espaçosa, antes deste feio sobrado que, encaixotado entre prédios, mal me permite ver a luz do sol.

Até outro dia, havia Ivonete.

– Bom dia, seu José. — ela me cumprimentava.

Mas hoje ela não está mais lá. Com a quarentena, a pequena loja de artesanatos fechou e, naquela manhã, quando abri a porta do quintal, vi o outro lado firmemente trancado e senti como um vazio.

Quando saí da faculdade sonhava em ser escritor. Escrever grandes romances, contos, novelas. Ter meu nome estampado nas capas e nas capas de revista, fazer sucesso, ser discutido nas rodas literárias. Enfim… Ser alguém(?). Por um tempo o sonho pareceu possível. Minha dissertação de mestrado causou certo reboliço nos círculos acadêmicos: Uma Literatura que (Des)e(n)volve-se: as transformações de Kafka no limiar do judaísmo agnóstico da Praga do começo do século XX versa sobre A Metamorfose, um dos trabalhos mais importantes de Kafka e uma verdadeira pérola da concisão. Logo de cara, Kafka nos apresenta em exatas vinte palavras, o “quem”, o “como”, o “onde”, o “quando” e o “o quê” de sua história, como se escrevesse um lead do New Journalism. Durante minha curta carreira de contista, tentei desesperadamente emular esse estilo. Chegar ao “osso da língua”, como falava um professor. Mas consegui, no máximo, ser derivativo: Uma Barata Chamada José, meu conto mais importante, é uma releitura de A Metamorfose situada numa São Paulo futurista do século 29. A história começa, pelo que me lembro, com: “Quando acordou de sonhos intranquilos, José levantou-se e foi trabalhar.” Dez palavras.

Até que não é ruim, mas, de Kafka, me sobraram apenas as baratas. Aqui ao lado há um restaurante imundo, e elas sempre invadem minha cozinha à procura de restos…

Com isso quero dizer que, nas redes sociais, sou escritor e germanista. Na vida real, escrevo manuais de instrução. Escrever, aqui, é uma força de expressão. O que escrevo vem quase pronto da matriz estrangeira ou, quando muito, baseia-se num modelo pronto, um “boneco”, como chamamos. Nele substituo os nomes, certificando-me de que a voltagem está de acordo com as normas brasileiras e checando a coerência, a coesão e a concordância.

Não é exatamente um emprego dos sonhos — mas não existem empregos dos sonhos. Bom, Kafka também tinha um brotberuf, e como a profissão de contista, especialmente no Brasil, não paga muito bem, acabei rendendo-me ao capitalismo.

No mais, minha vida é simples: este sobrado, embora lúgubre, me foi herdado, portanto meus gastos são exíguos. Trabalho de casa, o que é sempre positivo. E, depois do café, consigo resolver minha vida profissional em cerca de duas horas. Abro o e-mail e há algo como: “Trabalho novo. Furadeira Bosch. Base boneco 266. Até dia 8. Abs” Meu chefe é sempre sucinto, digno de Kafka.

Todos os dias acordo às 7h, no máximo às 7h30. Para mim é automático, não preciso de despertador. Então abro o celular e vejo as notícias. Há sempre nas notícias um bom motivo para se desanimar — e acho que o desânimo combina com minha imagem de autor frustrado. Para contrabalancear, dou uma olhada nas redes sociais e me perco em bobagens por cerca de meia hora. Então desço e preparo o café.

Pode-se dizer que sou uma pessoa metódica, e na manhã do medo não foi diferente. Acordei, vi notícias, as bobagens, e desci para a cozinha. Minha pequena, mas bem equipada cozinha. Sempre que sobra dinheiro, gasto com apetrechos culinários: descascadores de legumes japoneses, frigideiras antiaderentes, processadores high-tech. Gosto de começar o dia cozinhando. Boto a água na chaleira, ligo o fogo, abro dois ovos e os frito numa frigideira. Então faço torradas. O ponto do ovo é essencial, precisam estar moles, para que a gema escorra sobre o pão.

O alimento é um de seus leitmotive da obra de Kafka, eixo condutor de várias de suas histórias, como em Um Artista da Fome. Como o título sugere, o conto fala sobre um artista que tem na inanição seu ofício. Quanto menos comia, melhor se tornava. Quanto pior, melhor. Escrevi certa vez algo similar: a história de uma mulher patusca que come até explodir. Na época, meus amigos disseram que era muito bom, uma pérola… Mas não deu em nada, e hoje nem me lembro onde enfiei o conto…

A fome em Kafka não se limita ao desejo por alimento. Ela é ampla, pode ser por amor, por sucesso, por dinheiro, por contato físico… Em A Metamorfose, Gregor sofre com todas as fomes. Eu, nesta altura de minha vida, não sofro com nenhuma. Não almejo mais fama e não me preocupo com dinheiro, me alimento bem e todos os dias, e minha vida social é pouca, mas suficiente. É difícil ter 40 anos. Os amigos estão quase todos casados, cheios de obrigações, e é impossível manter o mesmo contato. Mas não reclamo. Quanto ao amor… Tenho uma espécie de namorada. Ela é casada e mora em outro estado, vem para São Paulo de vez em quando, e quando vem, me visita.

Quando a quarentena foi decretada, ela me mandou uma mensagem:

“Estou indo para o interior com o Edu e as crianças, acho que não vou para São Paulo por uns tempos.”

“Imaginei.”

Pode parecer lacônico, mas gosto assim, Nossa relação não tem complicações. Creio que minha namorada goste dela pelo mesmo motivo.

Imagino

Até aquele dia, a pandemia me parecia uma bobagem. Coisa de conto fantástico ou ficção pulp, daquelas bem ruinzinhas que a gente compra na banca de jornal. Mas naquela manhã Ivonete não apareceu. Olhei para o outro lado da mureta e a vizinha estava trancada. Em minha mão uma caneca de café… Ou será que a água ainda esquentava?

É fácil descrever o medo: um nó na garganta, um aperto no peito, um frio na espinha… Mas é impossível descrevê-lo. Ele era alto ou baixo? Magro ou gordo? Tomava café quando o vi? Se tomava, significa que minhas duas mãos estavam ocupadas. Pode parecer um detalhe insignificante… Mas talvez faça toda a diferença.

Tentando retraçar aquele dia, o dia do medo, e tudo me parece confuso. É engraçado como a memória funciona. Ela é um emaranhado desconexo, um bolo de relações difusas às quais, quando olhamos para trás, tentamos inutilmente dar alguma coesão, como se nossa existência fosse construída sobre simples relações de causa e efeito. Será que, antes de mim, eram felizes os moradores desta casa? Será que viam o sol, ou eram invadidos pelas baratas? Será que os índios que por aqui caçavam capivaras sonhavam com seu tenebroso destino? E o rio? Será que imaginava virar avenida? E os tigres-dente-de-sabre?

Começo, meio e fim funcionam bem na literatura. Mas a realidade é muito mais dura. Nela, não podemos fazer melhor do que inventar histórias. Revelamos aqui, escondemos ali, e vamos criando um eu, alguém que seja palatável, justo e probo, que tenha qualidades e, mais importante, que seja digno de pena quando a tragédia, a inevitável tragédia, acontecer. Porque a verdade é que a vida é uma sucessão de tragédias, e é inútil tentar organizá-las, limpá-las, dar a elas um sentido. Desse esforço não sobraria nada.

“Meu nome é José, eu gosto disso, daquilo, meu time é o melhor do país e meu Brasil é verde, amarelo azul-anil.”

Pensando agora, é certo que eu não tinha a caneca nas mãos, pois, quando o vi, quase dei um salto. Se tivesse a caneca, com certeza a teria derrubado, e ela teria se espatifado no chão.

Foi por um instante, um átimo, bem no canto dos meus olhos. Quando me virei, o medo não estava mais lá. E então eu só o pude senti-lo. Assim começou a minha tragédia.

À noite mandei uma mensagem para Thiago. Éramos amigos “desde tempos antediluvianos” ou, melhor dizendo, nos conhecíamos desde a faculdade. Naquela época éramos “melhores amigos e arquirrivais”. Thiago também escrevia e, ainda cedo se envolveu com a turma de uma revista literária e começou a produzir. Nunca achei sua literatura assim tão boa. Digamos que era “panfletária”: histórias sobre a classe trabalhadora, a revolução, coisas assim. Mas as pessoas gostavam.

Em um de seus contos, a personagem principal, um cobrador de ônibus, irritado com a disparidade de renda fazia uma pequena comuna entre os passageiros. Em dado momento, o cobrador se levantava e começava a cantar A Internacional. Eu, particularmente, sempre detestei esse tipo de neorrealismo socialista. De fato, Thiago não tinha nenhum pudor em dizer que queria aprender alemão para ler Marx no original. Ainda no primeiro semestre comprou todo Das Kapital num sebo em Santo Amaro e ficava tentando decifrar o que o velho dizia naquela língua cheia de declinações. Isso, obviamente, fazia muito sucesso.

Hoje ele renegava o passado. Estava casado com a herdeira de uma grande empreiteira e com esse dinheiro abrira uma agência de traduções — trabalhava, portanto. Mas continuava ideológico: vivia a cantar odes ao anarco-capitalismo e à liberdade total do indivíduo. As pessoas ideológicas são sempre ideológicas, nunca conheci alguém que tivesse se curado desse mal. No máximo, mudam a tonalidade e as matizes. Thiago ia ser pai por esses dias. Mandei a ele uma mensagem:

“Como está sua quarentena?”

Disse-me que estava tudo bem, mas que estava preocupado com a esposa, enorme, de quase nove meses, e pôs-se a falar do autoritarismo do governador… Eu queria contar-lhe sobre o medo que tinha visto… Mas não consegui. Às vezes o medo é tão potente que nos imobiliza. Nesses casos, ele deixa de ser benéfico e vira parasitário. Creio que é nesses momentos que ele se alimenta, engorda, vira bicho e come a gente.

“Estou com medo, ir para o hospital com tudo isso acontecendo”, ele me falou.

“É impossível não ter medo neste momento”, respondi, vago.

Naquela noite não consegui dormir. Estava assustado, fiquei me revirando na cama até às 3h da manhã. Sentia. Era como se o medo rastejasse do quarto escuro.

O medo costuma adaptar-se bem à escuridão. Senta praça por ali quando somos crianças e nós, em nossa inocência, acreditamos que basta acender a luz para ele ir embora. Achamos que o medo tem medo do claro. Depois, quando adultos, perdemos boa parte do medo. Talvez as crianças sejam simplesmente mais sensitivas. Ou talvez acreditem mais nele.

Antes de minha família mudar-se para este sobrado, vivíamos num pequeno apartamento na Bela Vista. Era um quarto-e-sala de uns 50 metros quadrados. Meus pais dormiam na sala, em um sofá-cama, e eu no quarto, que também servia de estúdio para meu pai. À noite sentia um medo tremendo. Bastava as luzes se apagarem e eu tremia. Tinha medo. Um medo de não poder enxergar.

Minha mãe contava:

– Nós te botávamos na cama e não dava cinco minutos você começava a gritar “não vejo nada!”.

– Aquilo me deixava possesso. — papai emendava.

Lembro-me de seus gritos. “Dorme! Não há nada para ver!”

Não abri mais a porta do quintal. Tinha medo. Medo de encontrar o medo. De ele saltar do canto dos meus olhos, embora soubesse que isso era impossível. Pela rádio, ouvia as notícias. Mortes, números. “… o ministro limitou-se em encaminhar ao procurador-geral da república”…

Antes da pandemia, eu não ouvia as notícias. Sequer tenho uma televisão. Minha vida era simples: às terças-feiras, lavava as toalhas. Às quartas, trocava a roupa de cama. Quinta-feira era dia de ir às compras, sempre no mesmo mercadinho, o Âncora, aqui perto, na esquina da Eça de Queiroz. O mercado já existia quando eu era criança — lembro-me de comprar balas com o punhadinho de dinheiro que meu pai dava de mesada. Pensando bem, pelo jeito dilapidado, o mercado deve existir desde os tempos dos índios. Hoje pertencia a uma família de coreanos. O pai, a mãe, os filhos… Todos trabalhavam ali.

O pai tinha um forte sotaque e me conhecia bem. Sempre me cumprimentava. Os filhos, menos. A mulher era a mais taciturna. Não me lembro de ouvir sua voz.

Pergunto-me se estão todos bem.

Com o tempo os dias ficaram indistintos. Até perdi o horário, e me vi acordando às 8h, 9h, às vezes às 10h da manhã. Continuei trabalhando de casa e, nesse aspecto, até trabalhando mais — meu chefe, sempre atento ao futuro, animou-se com a perspectiva de deixar novos manuais prontos e me soterrou com trabalho. Era uma lista enorme, com mais de 20 itens, entre enceradeiras, computadores, e até um respirador importado da Alemanha. Senti-me, num certo aspecto, parte do esforço de contenção da doença.

Acordava, trabalhava, dormia. Os dias tinham ferrugem e gosto de ferro. Acordava e voltava para a cama. Ficava por horas olhando o teto.

Descobri que o tempo é uma ficção. Nós o inventamos, decidimos que flui e que vai de um ponto ao outro, como um rio de águas geladas. Acreditamos, assim, que é possível observá-lo, racionalizá-lo e até mesmo alterá-lo, como o moleque que, sossegado, faz xixi no riacho num dia de verão. Mas passado, presente e futuro não existem. É um erro empírico, como dizer que a terra é plana, pois não vemos sua curvatura.

Para os índios o hoje era nadar no riacho. Para mim, é a quarentena. Há bilhões e bilhões de anos — em tempos realmente antediluvianos –, dois átomos de hidrogênio se fundiram no centro do Sol. Há alguns dias, a energia dessa fusão tornou-se luz e me fez enxergar o medo. Mas entre o medo e meus olhos havia um milésimo de segundo — o tempo da luz rebater e chegar às minhas retinas, e o que vi foi o passado do medo. Tudo é passado. O hoje não existe, e sem esse ponto de partida, não podemos inferir o passado.

Kafka morreu de tuberculose num sanatório em 1924, e o grosso de seu trabalho foi publicado depois de sua morte pelo amigo Max Brod. Kafka não viu os carros modernos, os aviões transatlânticos e a torradeira elétrica. E por isso sei que jamais poderei cruzar com ele num café, ou papear com ele sobre A Metamorfose. Mas, na perspectiva de algum planetóide distante cento e poucos anos luz ainda é 1924, Kafka continua suas andanças por Praga, a torradeira elétrica sequer foi inventada e eu nunca nasci.

Deus, ou seja lá quem for, foi injusto com a humanidade. Criou-nos para circular no espaço e no tempo, mas limitou a nossa ação sobre o segundo. O tempo é como um rio congelado — li essa anedota uma vez. Ou, melhor, é como a 23 de Maio. Um rio soterrado, uma avenida por onde passamos, por um simples acaso, numa única direção. Se pudéssemos observar essa avenida, poderíamos ver que estamos parados no tempo, como os carros em um engarrafamento. O passado, o presente e o futuro não se movem, eles apenas são.

Tive essa certeza quando mamãe apareceu no décimo sétimo dia da quarentena. Desci para o café e ela estava lá, os cabelos bem feitos, os lábios pintados e vestindo seu vestido favorito, o mesmo com o qual a enterramos. Estava sentada à mesa, as duas mãos sobre o tampo de madeira, os olhos atentos às unhas pintadas. Quando me aproximei, ela levantou o rosto e me lançou uma interrogação.

Quase me apavorei, mas uma voz, uma voz vinda do canto dos meus olhos, me tranquilizou:

Não é preciso sentir-me. Essa é sua mãe. Cumprimente-a

Foi o que fiz.

Mamãe então se levantou e caminhou em minha direção. Aproximou-se devagar, tomando todo cuidado. Como bicho assustado, me cheirava com os olhos abertos e vivos. Tinha uma materialidade estranha, que não existe nas fotografias, uma profundidade impossível de ser alcançada pela memória. Nunca tinha reparado nas manchas amarronzadas que ela tinha nos dedos, e nem na forma como suas narinas se moviam quando respirava. Ela era real, mas distinta dos fragmentos da minha infância.

Anda, ó menino. Abrace-a!”, o medo sussurrou, mas meu corpo jazia imóvel enquanto o dela se esgueirava em minha direção. Quando chegou à distância de um braço, crispou-se:

‘ — Zeca?

‘ Depois desapareceu.

Mamãe adoeceu quando eu tinha 11 anos. Hoje observo esse momento como um moleque que, do alto do viaduto da rua Cubatão, cospe nos carros lá embaixo. Papai largara definitivamente a pintura e começara a trabalhar no ramo imobiliário, o que nos permitiu uma certa estabilidade. De fato, tínhamos acabado de nos mudar para este sobrado quando ela, um dia, saiu e, quando voltou, não tinha mais o mesmo olhar. Normalmente era alegre, divertida. Mas estava macambúzia, lamuriosa.

Eu reparei, mas ela só nos falou no final do dia. Antes disso, preparou a comida, varreu a casa, limpou cada canto, cada pequeno detalhe. Depois tomou um longo banho, vestiu-se e maquiou-se. Era uma mulher extremamente vaidosa. Quando terminamos de jantar, suspirou e disse:

– Tenho um câncer.

E começou a tirar os pratos.

Sua convalescência foi extremamente dolorosa. Em pouco tempo não tinha mais forças. Ficava os dias trancafiada no quarto, deitada a meia luz, gemendo. Seus gritos podiam ser ouvidos no andar de baixo. Na época, o sobrado vizinho era habitado por uma família, e certa vez o filho mais velho perguntou:

– O que são esses gritos aí na sua casa?

Quando mamãe morreu, papai reuniu todos os seus quadros, uma vida em tintas, armou uma fogueira na rua e ateou fogo. Eu tinha 12 anos.

Papai era um homem taciturno, nunca soube lidar com as coisas do mundo, não sabia organizá-las verbalmente. Talvez sua mente funcionasse em outra velocidade. Sua única forma de expressão era a pintura. Amava-a, mas era pouco correspondido. Vendia pouco e, durante minha primeira infância, sustentou-nos basicamente com trabalhos eventuais: chegou a pintar paredes para botar comida na mesa. Apesar disso, não era amargo. De fato, não se importava com a arte. Quase não falava sobre ela — quase não falava sobre nada.

A pintura era, para ele, apenas um canal.

Não pude dormir naquela noite e nem nas seguintes. O sobrado não me pertencia mais, estava tomado. Podia sentir o medo espreitando. Ele tinha forma física e se apoderava do quarto. Durante a noite caminhava de lá para cá, sentava-se em minha cama e eu sentia pelo seu peso que devia ter cerca de um metro e meio. Um ser de sangue-frio, me tocava a testa com seus dedinhos diminutos e gelados. Às vezes me sussurrava: “Dorme, criança. Não há nada que ver!” Noutras apenas perambulava pelo quarto, fazendo um “tec-tec-tec” irritante sobre o assoalho de madeira.

Por um mês não tive coragem de sair do quarto. Fiquei preso em mim, preso ao andar de cima, preso à angústia e ao medo. Pouco comia, e o que comia vinha pelo motoboy. Quando chegava, estendia a ele, da janela, uma corda improvisada com lençóis — dada a pandemia, é possível que nem estranhasse. Era o máximo que me mexia.

Perguntei ao medo, no fundo dos meus olhos, por que me perseguia, mas ele não me respondeu. Tinham se passado 30 ou 31 dias desde o início quarentena — ou teriam sido 25? Poderiam bem ter sido todos. Poderia ter sido nenhum. Talvez tivessem se passado meses, ou anos. Talvez eu estivesse perdido no tempo.

O mundo segue rodando lá fora”, o medo me confidenciou.

Naquela madrugada a fome me impeliu ao andar de baixo, à cozinha que acumulava tempo e pó. Pelo chão, uma multidão de baratas jaziam mortas, suas inúmeras patinhas estendidas ao céu.

Botei a chaleira para esquentar e, enquanto esperava a água ferver, aproveitei para pegar umas bananas. Estavam bem pintadas, mas ainda boas. Comi-as, mas não me saciaram. Pelo contrário.

Num impulso descasquei outras duas e depois as últimas três. Engolia tudo como máquina, sem sentir gosto. Mas a fome não se calou. Abri geladeira e fui deglutindo o que via. Peguei um velho pedaço de queijo, um pão que talvez estivesse mofado, mostarda, e fiz um sanduíche. Mas a fome mantinha-se. Comi uns tomates, sardinhas, tomei quase meio litro de leite. Nada parecia adiantar. Com a água fervida, fiz um café. O gosto ácido da bebida aplacou meu estômago, mas não matou minha fome.

Só então entendi. Fui até a porta do quintal, destranquei-a, e girei a maçaneta. Sob o luar, uma capivara jazia flechada no chão, seu sangue grosso e viscoso empapando as lajotas como terra molhada. Ajoelhei-me ao seu lado e senti seu cheiro potente invadir minhas narinas. Ela ainda respirava, devagar. Com uma das mãos arranquei a flecha que atravessava seu pulmão, e pude ouvir seu último suspiro. Então bebi de seu ferimento, sujando a barba com os grumos do sangue coagulado.

Depois, com a água quente da chaleira, barbeei-me demoradamente. Senti-me finalmente cheio.

No dia seguinte, bem cedo, acordei decidido a dar um jeito nas coisas. Varrer as baratas, limpar do quintal o sangue da capivara. Mas, ao abrir a porta do quintal, não encontrei sangue nem bicho, nem nada. Lá fora, o sol de outono, escondido por nuvens baixas, dava a tudo uma estética de sonho. Mesmo assim esfregar (esfreguei?) as lajotas da poeira. Fiz isso até que brilhassem sob o sol frio. Depois peguei a vassoura e passei diligentemente pela casa, juntando cada inseto escondido em cada canto, em cada espaço secreto, a poeira e o tempo. Então, com um pano, lustrei a madeira, as mesas, o assoalho, a escada, e espanei os livros de minha pequena coleção. Terminei limpando com bucha os azulejos da cozinha. Ao final, tudo cheirava a Peroba e Pinho Sol.

Não sei quanto tempo durou, mas o esforço físico me fatigou. Pude perceber que era tarde na nesga de céu que me cabia, o sol já começando a se esconder. Com certeza dormiria bem naquela noite. Estava feliz, satisfeito. E então percebi que ele estava lá. Devia ter uns dois metros de altura, os olhos de um azul estranho, artificial, e os músculos quase rompendo a pele acinzentada, como se aquela pele não fosse dele, mas de um outro que vestisse uns dois números menor. Estava nu, mas não tinha genitais. No mais, sua aparência era bastante humana.

– Medo? — perguntei.

A criatura observou-me com alguma irritação. Achei que me atacaria, mas apenas estendeu-me os braços. Segurando-me com delicadeza, beijou-me a face.

– Medo? — tentei mais uma vez.

A criatura torceu o nariz. Ou pareceu torcer. Suas expressões eram sutis, e o que para mim parecia irritação podia muito bem ser contentamento, tristeza ou asco.

– Medo?

A criatura permaneceu em silêncio. Estávamos os dois parados, na cozinha, e por algum motivo aquilo me pareceu corriqueiro.

– Por que está aqui? — tentei.

Mas logo vi que a pergunta não fazia sentido, como perguntar à barata por que ela come o queijo largado sobre a bancada.

– Creio que poderia fazer-lhe a mesma pergunta… Por que estás aqui?

– Eu moro aqui.

Eu moro aqui — a criatura retrucou.

– Isso é algum tipo de piada?

– De forma alguma. Mas talvez seja uma charada. — Ao dizer isso, seus estranhos olhos focaram o vazio e as pupilas começaram rodaram em círculos no branco do olho — Como você escreveu…

– Eu?

Mas a criatura tergiversou.

– Por alguma razão nossas realidades fundiram-se. Aqui, neste lugar, em minha época, existe um grande bloco de apartamentos para sintético-humanos…

– Sintético-humanos?

– Sim.

– Como… Robôs?

A criatura pareceu fazer uma careta.

– Tu não deverias usar esse termo… “Robô” vem do tcheco “robota”, que significa “escravo”.

– Me desculpe…

– Não há problemas. Este é, infelizmente, um erro comum.

– O politicamente correto sobreviveu aos séculos? — brinquei, mas a criatura não percebeu minha ironia.

– Se algo é correto, parece-me natural que sobreviva aos séculos… De qualquer forma, creio que estamos num outro lugar, um lugar entre o ser, não ser…

– Entre o ser, não ser? — perguntei

– Sim, eu estou em minha casa, e tu estás na tua. Mas na verdade não estamos em lugar algum. Estamos entre o ser e o não ser.

Sua voz soava artificial, como a de uma secretária eletrônica.

– Isso não faz sentido.

– Muitas coisas não fazem — a criatura falou.

Depois, como se fosse um oráculo, observou o vazio mais uma vez, as pupilas girando e girando. Inferi que, com aquilo estivesse pesquisando algum tipo de banco de dados. Por fim disse:

– Qual o sentido em morrer por uma doença? Uma doença nova? Quem pensou, em 2018, morrer pela Covid-19? Ou em 1889 morrer num acidente de carro ou avião? Morrer por algo que sequer existia? Nossos antepassados não se preocupavam com isso, tinham outros medos. Sei que tu também tens medo e sei que foges dele. Mas é inútil. O medo estava aqui antes de você, e estará depois.

– Quando isso vai terminar? — perguntei, bobamente.

– Não te posso dizer sobre o futuro. Mas posso-te dizer sobre o passado. Nos livros de história há centenas de epidemias: a cólera, a AIDS… Por diversas vezes o homem pensou no fim, mas nenhuma dessas doenças foi capaz de destruí-lo.

– Sobreviveremos, então?

A criatura não me respondeu e não me disse mais nada. Eu tampouco fiz qualquer outra pergunta. Ficamos em silêncio, observando pela janela enquanto a tarde se transformava em noite e cobria a cozinha na mais absoluta escuridão. Quando finalmente criei coragem para acender as luzes, ele não estava mais lá.

Procurei na minha pequena biblioteca o meu conto mais querido. Não foi difícil encontrá-lo. Mantinha naquele espaço uma organização draconiana, todos os livros separados por tema, título e ano de publicação. A revista onde estava, criada por um colega da graduação, estava na seção de periódicos. Chamava-se Baratas. Engraçado. Ela tinha ganas de revolucionar a literatura paulistana e seu editorial falava sobre o pós-moderno, Bauman, a vida na metrópole, “escrever entre os prédios é um ato revolucionário”, mas durou apenas um número.

Folheei-a rapidamente e entre suas páginas amareladas encontrei um bilhete. “Zé, obrigado pela força! Espero que goste da revista. Um abração! Carlinhos, abril 2002” Eu tinha 23 anos.

Uma barata chamada José estava lá na página 32, intocada pelo tempo. Olhando agora, era pueril. Senti um aperto. O melhor que já tinha escrito era apenas pueril, repleto de lugares comuns, frases feitas, pequenos clichês, símiles forçados… “Não existe pior lugar no mundo do que o metrô de São Paulo às 18h30 de uma tarde chuvosa de março.” Uma verdadeira bagunça.

Reli o conto três vezes. A história de José, um autômato fadado a trabalhar por toda eternidade. “Seu pequeno quarto, um verdadeiro quarto de autômato, reluzia de neon entre as paredes bem conhecidas. Sobre a escrivaninha, a máquina jazia com seus dois botões. José era um homem-sintético, seu trabalho responder ‘sim’ ou ‘não’ para questões aritméticas.” Não era sequer um pastiche. Era um plágio descarado, uma abominação à obra de Kafka. Antes de dormir fui à cozinha e, sem remorso, queimei a revista sobre o fogão.

A criatura estava enganada. Eu não escrevi nada.

Deitei-me relativamente cedo, a luz de cabeceira acesa para evitar o medo. Enquanto cruzava o limiar do sono, pensei se os sintético-humanos tinham medo e ele se alojava nos cantos de seus olhos bizarros. É possível que não. Afinal, que utilidade biológica teria o medo para uma criatura além da biologia? Um ser perfeito, entre o ser, não ser… Devia ter-lhe perguntado, mas nunca poderei fazê-lo.

Tenho a impressão de que não o verei de novo.

Na alta madrugada, ouvi os sussurros do medo, mas pela primeira vez não dei atenção. Estava exausto e dormi profundamente.

Na manhã seguinte, acordei tranquilo com o canto de Ivonete. Desci correndo as escadas, destranquei a porta do quintal e soltei um sorriso quando a vi do outro lado da mureta.

– Ivonete!

– Seu José! Tudo bom? Nem te conto… A dona Carlinha reabriu a loja e me chamou. Parece que ela pode ficar aberta e atender por domicílio. Como o senhor passou? Tá bonito o quintal, brilhado! Chamou uma faxineira?

E pôs-se a falar sobre a sobrinha que tinha fugido com um namorado para a Bahia, sobre o dono da quitanda do bairro que não queria nem saber de máscara de proteção, sobre a polícia que tinha dispersado a tiros um pancadão e sobre outras pequenas tragédias, pontuadas com sua visão pessoal sobre a quarentena: “Eu lá vou ter medo de bactéria? Sou baiana e filha de pernambucano, meu nego!”

Thiago foi pai no final de maio, uma menina adorável. Parecia-se com ele, pelo que vi nas fotos que mandou pelo celular. Nove meses antes, quando me falou da gravidez, pensei maravilhado como era nascer em 2020, um ano belo redondo, cabalístico, cheio de significados ocultos. Mal imaginava o futuro.

Hoje tenho certeza de que o futuro, então, já existia.

Alguns dias depois, Thiago me mandou uma mensagem:

“Amigo, abriu uma vaga aqui na agência. Será que você não quer vir trabalhar conosco?”

Talvez fosse uma boa ideia.

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