A pandemia e o (falso) dilema: vidas x economia

Cassiano Ricardo Dalberto
Silly Random Walks
Published in
5 min readSep 4, 2020

Nesses tempos de COVID-19, quase todo mundo já deve ter se deparado com alguma discussão envolvendo um suposto dilema, que pode ser formulado mais ou menos da seguinte forma: “Até onde devemos preservar vidas às custas de prejudicar a economia?”.

Recentemente o site do Our World in Data abordou esse tema em uma publicação, comparando graficamente o resultado do PIB no segundo trimestre de diversos países com as mortes por milhão de habitantes, e parece nítido que aqueles países que se saíram pior no controle da pandemia (isto é, que apresentaram até aqui maior número de mortes por milhão de habitantes) também tenderam a ter pior desempenho econômico, o que seria um contraponto a quem coloca essa questão como dicotômica. Eis o gráfico:

Naturalmente, a análise apresentada pelo site é bastante simples, por não investigar mais a fundo se realmente existe um padrão de associação estatística, e se esse padrão permanece mesmo após utilização de controles por outros fatores. Então resolvi fazer um exercício estatístico bem simples, para verificar se podemos observar de fato algum padrão de correlação entre mortes por COVID-19 e desempenho econômico.

Primeiramente, utilizei um modelo de regressão por mínimos quadrados bastante simples, onde regredi o desempenho no PIB (2º trimestre de 2020 em relação ao 2º trimestre de 2019) contra as mortes por milhão. O resultado indicou uma associação estatisticamente significativa e negativa entre ambos, isto é, quanto maior o número de mortes por milhão, pior tende a ser o desempenho do PIB. Em termos de dimensão da relação, as estimativas indicam que para cada 100 mortes a mais por milhão de habitantes, o desempenho no PIB tende a ser, em média, inferior em 1,36 pontos percentuais. Abaixo, os resultados mais detalhados:

Indo adiante, adicionei algumas outras variáveis no modelo. Como a lista de variáveis que pode ajudar a explicar o PIB é bastante grande, resolvi focar em alguns elementos que pudessem diferenciar bem os países em análise e que poderiam constituir causas terceiras sobre a queda no PIB para além dos efeitos da pandemia. No Modelo 2, então, inseri dummies de controle para os continentes onde estão os países (o que pode ajudar a controlar por impactos mais intensos em alguns continentes do que em outros), proporção de pessoas acima de 65 anos em cada país (indicador de população mais velha, que pode ter relação com o nível de desenvolvimento do país e de seu sistema de saúde — o que também pode se relacionar com a COVID, até por ser a população mais vulnerável), Índice de Desenvolvimento Humano (IDH, que gera um risco de colinearidade com a população idosa, mas que capta outras dimensões de desenvolvimento), proporção de pessoas abaixo da linha da pobreza (idem para os riscos de colinearidade e dimensões de desenvolvimento), densidade urbana (população urbana dividida pela área urbana total de cada país), e resultado fiscal do ano anterior (pode indicar economias mais combalidas anteriormente, ou menos capazes de fazer frente aos desafios da pandemia).

Esse segundo modelo apresentou alguns problemas: multicolinearidade de algumas variáveis explicativas e heterocedasticidade (variância não constante) do termo de erro. Resolvi ignorar temporariamente a multicolinearidade e corrigir apenas a heterocedasticidade com um modelo de Mínimos Quadrados Generalizados, ponderado pelo inverso da variância dos resíduos. Os resultados desse modelo apontam que a relação inversa entre mortes por COVID e desempenho econômico persiste, enquanto a maior parte das outras variáveis não apresentou relação significativa com a dinâmica do PIB (exceto pelo IDH, cuja associação foi positiva). Quanto à dimensão da relação, dessa vez para cada 100 mortes a mais por milhão de habitantes, o desempenho no PIB tende a ser, em média, inferior em 1,55 pontos percentuais. Resultados detalhados dessa segunda abordagem:

Por fim, apliquei um terceiro modelo, onde removi variáveis que estavam causando certa redundância e gerando multicolinearidade. Mais especificamente, removi as dummies continentais, o IDH e a pobreza (mantendo a proporção de idosos já é possível captar boa parte do efeito “desenvolvimento”). Nesse caso o modelo não apresentou heterocedasticidade, e os resultados gerais dos modelos anteriores permanecem: as mortes por milhão são a única variável a se associar significativamente com o desempenho econômico — nesse caso, vez para cada 100 mortes a mais por milhão de habitantes, o desempenho no PIB tende a ser, em média, inferior em 1,45 pontos percentuais, como pode ser observado:

Em suma, não parece haver contradição entre preservar vidas e proteger a economia. Ao contrário: países onde a pandemia foi melhor controlada tenderam a apresentar melhores desempenhos econômicos. Há exceções? Naturalmente, sempre há. A Bélgica, por exemplo, teve muito mais mortes em proporção à sua população que o Canadá, mas o tombo econômico foi similar. Da mesma forma, Tunísia e Taiwan apresentaram poucas mortes pela epidemia, mas com desempenhos econômicos muito distintos — a queda do PIB na Tunísia foi muito maior. Entretanto, exceções consideradas, ainda assim um padrão estatístico permanece, indicando que a existência dessa associação por enquanto é a regra. Isso pode mudar futuramente? Pode. Precisaremos reavaliar isso mais à frente, idealmente com maior número de países e mais variáveis de controle (até porque os modelos que utilizei não explicam parcela tão elevada da variável de interesse). Mas, à luz dos resultados existentes até aqui, não podemos falar em trade-off entre proteger vidas OU a economia. Podemos preservar vidas E a economia.

Link para download da tabela com os dados utilizados e suas respectivas fontes: https://bit.ly/2QYjpT4

--

--

Cassiano Ricardo Dalberto
Silly Random Walks

Doutor em Economia (UFMG), compulsivamente curioso, observador de pássaros, filósofo de boteco