Liberalismo em tempos de pandemia

Cassiano Ricardo Dalberto
Silly Random Walks
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5 min readApr 24, 2021
Um abraço em meio à pandemia — a empatia em registro do fotógrafo Mads Nissen, que venceu o prêmio de foto do ano da World Press Photo Foundation.

Com recorrência tenho visto um tipo de leitura (que está mais para wishful thinking) político-econômica que varia em torno de algo do tipo: “a pandemia revelou a insustentabilidade do modelo liberal”.

Essa leitura, se é que se pode dar o benefício de assim chamá-la, revela, a um só tempo, um grande desconhecimento do que é o liberalismo e também da histórica associação dos estados com uma ampla gama de males, muitos dos quais esgueiram por trás justamente de medidas de exceção demandadas em tempos difíceis. Vou tentar apontar aqui porque há aí um grande desconhecimento sobre o que é liberalismo e sobre como o liberalismo vê o estado, e também argumentar que as ideias liberais permanecem extremamente importantes no atual cenário, talvez mais do que nunca.

De antemão, ressalvo que o liberalismo não é algo monolítico, muito longe disso, então tratar as ideias liberais como tal já é um erro primário. Não vou me delongar aqui em discorrer sobre as inúmeras vertentes do liberalismo; ao invés disso, vou focar nos pilares comuns desse conjunto de ideias.

É corriqueiro que, na conversa de botequim, se pense o liberalismo meramente como doutrina econômica. Errado. As filosofias liberais enfatizam, antes de mais nada, uma extensa gama de liberdades adicionais, abarcadas nas dimensões civis e políticas: liberdade de expressão, religiosa, de imprensa, etc. Essas liberdades implicam na necessidade de igualdade de tratamento perante a lei e da luta contra elementos coercitivos. Nesse sentido, as ideias liberais tendem a direcionar sua crítica ao estado, historicamente o maior mecanismo de coerção e opressão já inventado. Isso não significa, no entanto, que liberais sejam anarquistas (alguns poucos o são, mas sobre isso eu falo mais adiante). Longe disso.

Há, em praticamente todas as ideias liberais, e certamente no liberalismo clássico, um reconhecimento de uma dualidade em torno do estado: embora tradicionalmente um vetor opressivo, também há elementos do mesmo dos quais dependem elementos da liberdade (ao menos em uma sociedade grande/complexa). Nesse sentido, é papel legítimo do estado, por exemplo, defender a sociedade de ameaças externas, estabelecer um sistema de administração da justiça e também realizar e manter obras e instituições que beneficiem a sociedade, mas que os setores privados não sejam capazes de ofertar satisfatoriamente. Dentre as instituições que podem aí se enquadrar estão aquelas ligadas à provisão de educação e saúde para a população.

O cerne do que o liberalismo aponta, então, para a necessidade simultânea de controlar o estado, para evitar que esse se torne opressivo, e direcioná-lo para o exercício de suas justas funções. Há, aí, o reconhecimento de um equilíbrio frágil entre esses elementos: querer ampliar o escopo de atuação do estado sempre apresenta o risco de caminharmos para um declive escorregadio, em que a sociedade civil perde cada vez mais espaço — e liberdade — para o estado. Muitas vezes esse caminho de difícil retorno foi trilhado, justamente em situações de exceção: guerras, crises, epidemias. Medidas ditas de exceção podem se tornar permanentes.

Nesses tempos de pandemia, as sociedades se encontram, uma vez mais, diante desses dilemas. E é justamente para evitar excessos do poder e procurar garantir que as atribuições legítimas do estado sejam observadas à risca é que as ideias liberais continuam extremamente importantes. Se trata de reconhecer que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

A típica resposta de “mas o estado mínimo neoliberal quer privatizar tudo, até a saúde” não se sustenta. Primeiro que “privatizar tudo” é um espantalho que não condiz com a imensa maioria das filosofias liberais, como expus acima (claro, há quem pense assim dentro de um liberalismo vulgar, que nesse quesito anda ao lado de uma minoria mais extremista, defensora de um modelo anárquico. Mas não estou aqui tratando das ideias vulgares, tampouco vou falar sobre utopias).

Em segundo lugar, há que se recuperar aqui a relação histórica entre estado e epidemias: estas não existiam sem aquele, e o surgimento dos primeiros estados trouxe, consigo, as primeiras epidemias. Quase irmãos siameses. Outra atividade típica dos estados também teve papel fundamental em iniciar diversas epidemias: a guerra. São dos males que inevitavelmente acompanharam a trajetória das sociedades, desde que deixamos para trás a realidade caçadora-coletora para nos concentrarmos geograficamente cada vez mais.

Em virtude disso, é possível argumentar que, além do papel clássico do estado em fornecer proteção contra ameaças externas, há outra atribuição que acompanha sua fundação: a proteção contra epidemias. Esta, inclusive, pode ser pensada como uma variante do papel de evitar violência entre os indivíduos de uma mesma sociedade, uma vez que a transmissão de uma doença pode ser assim encarada.

Para finalizar, quero chamar a atenção para outro princípio comum às ideias liberais: a noção de que, sempre que os indivíduos puderem solucionar adequadamente seus problemas prescindindo de ações estatais (logo, de coerção) de escalas maiores, estas soluções devem ser priorizadas. É o chamado princípio da subsidiariedade.

Esse princípio não diz respeito apenas ao indivíduo isoladamente, mas também, e principalmente, às suas agregações: famílias, amigos, vizinhos, bairros, cidades. Aquilo que pode ser resolvido pelo bairro, não deve ser pelo município; o que o município pode solucionar, não deve ser realizado pela unidade federativa, e assim sucessivamente. Isso significa que devemos deixar ao governo central o imprescindível, aquilo que apenas ele pode fazer; e defender, sempre que possível, as soluções mais locais, comunitárias, menos coercitivas. E a sociedade civil mostrou, reiteradamente, ser capaz de fazer o que o estado não pôde nesta pandemia.

Essa é a base da solidariedade, necessária, em última instância, para uma sociedade melhor e mais capaz de enfrentar cenários como o que observamos atualmente, como bem ressaltou Albert Camus, em A Peste, romance que descreve a vida em um cenário de epidemia, que assolava a cidade argelina de Oran.

Em certa altura do romance, o personagem do médico Dr. Bernard Rieux dialoga com seu amigo Jean Tarrou, explicando, em termos simples, que no mundo existem as pestilências e as vítimas, mas também uma terceira categoria, a dos verdadeiros médicos, os verdadeiros curadores, que se dedicam a aplacar a peste. E continua Rieux:

“Foi assim que decidi pôr-me do lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os danos causados. No meio delas, posso, ao menos, procurar como se chega à terceira categoria, isto é, a paz.”

Ao terminar, Tarrou balançava a perna e batia levemente com o pé no terraço. Depois de um breve silêncio, o médico soergueu-se um pouco em sua cadeira e perguntou a Tarroux se tinha alguma ideia sobre o caminho que era preciso seguir para se chegar à paz.

“Sim”, ele respondeu. “O caminho da empatia.”

Algo similar ao que constatou ninguém menos que Adam Smith (aqueles que muitos pensam ser o “defensor do egoísmo”), em A Teoria dos Sentimentos Morais, ao asseverar que o principal elemento humano que mantém uma sociedade viável é a nossa capacidade de empatia, isto é, nos colocarmos no lugar dos outros.

Nota: o termo utilizado em inglês por Smith para empatia é “sympathy”, que é o mesmo que aparece na edição inglesa de A Peste. Esse termo equivale ao uso mais atual de “empathy”, empatia. A opção por usar “empatia” na tradução é para evitar o sentido corriqueiro associado a “simpatia” como algo visando meramente agradar ou ser afável.

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Cassiano Ricardo Dalberto
Silly Random Walks

Doutor em Economia (UFMG), compulsivamente curioso, observador de pássaros, filósofo de boteco