Maior liberdade econômica é capaz de trazer maior tolerância?
Existe alguma relação entre as liberdades econômicas e o nível de tolerância em uma sociedade? O desenvolvimento do livre mercado é capaz de elevar a moral e a ética das sociedades?
Essas questões não são novas. No século XVIII Adam Smith já defendia a hipótese de que o comércio e o livre mercado são responsáveis por elevar aspectos morais da sociedade, e que o próprio desenvolvimento do livre mercado depende em parte da moralidade dos indivíduos. No mesmo século, Montesquieu e Hume defendiam também a ideia de que o comércio altera o caráter e a disposição das pessoas, tornando-as menos violentas e mais sociáveis — tese que o economista Albert Hirschman (1977) chama de doux commerce (doce comércio).
A defesa moral que Smith fazia do livre comércio se baseava em alguns pontos por ele observados: além de permitir que as pessoas superem a miséria e de elevar a quantidade de indivíduos vivos na sociedade, o comércio possibilita que esses indivíduos vivam mais livremente, através de instituições que promovem a liberdade. Sociedades não-comerciais são caracterizadas por relações pessoais / personalistas, e isso, para Smith, implicava em dependência e servidão, sendo que tais relações podiam facilmente se tornar tirânicas. Já as sociedades comerciais se caracterizam por relações impessoais, que implicam em independência e liberdade. Além disso, o comércio seria capaz de facilitar o desenvolvimento da imparcialidade, valor essencial para o desenvolvimento moral.
Mais recentemente, a economista Deirdre McCkloskey (2006) afirma, por exemplo, que o comércio permite o florescer da ética ao promover o diálogo entre iguais e as trocas entre os estranhos. Já o psicólogo Steven Pinker (2011) identifica a expansão do comércio como uma das principais forças por trás da gradativa redução da violência nas sociedades, suportando a ideia do doux commerce.
Mas tais teses têm validade em termos práticos? Seria possível verificar tais relações empiricamente e inferir algum nexo de causalidade? A resposta é afirmativa para as duas questões, e diversos trabalhos científicos têm investigado e confirmado tal hipótese.
Recentemente, uma dupla de economistas levantou justamente a questão que dá título à presente postagem. Niclas Berggren e Therese Nilsson (2013) decidiram verificar empiricamente qual a possível relação entre indicadores de liberdade econômica e a tolerância de diversos países. A definição de liberdade econômica utilizada pelos autores se refere à existência de instituições, políticas e resultados que possibilitem maior amplitude para a operação de livres mercados. Os autores também seguem a definição do economista urbano Richard Florida, que atesta que “lugares que são abertos e possuem barreiras à entrada muito baixas para as pessoas ganham uma vantagem criativa, por sua habilidade em atrair pessoas de uma ampla gama de contextos. Tudo mais igual, lugares mais abertos e diversos são mais propensos a atrair maiores números de pessoas talentosas e criativas — os tipos de pessoas que potencializam a inovação e o crescimento” (2003, p. 11, tradução própria).
Por outro lado, a tolerância é definida pelos autores em termos de respeito pela diversidade: indivíduos tolerantes aceitam a presença e a participação de todos tipos de pessoa na sociedade. A partir disso eles constroem medidas de tolerância baseadas em pesquisas do World Values Survey e do European Values Study, abrangendo questões como a tolerância das pessoas em ter vizinhos homossexuais e de diferentes etnias, bem como a importância dada para o ensino da tolerância às crianças.
Os resultados encontrados pelos pesquisadores apontam que a liberdade econômica alimenta a tolerância, em especial que os indicadores de liberdade econômica se relacionam positivamente com a tolerância em relação aos homossexuais. Tal relação é testada também em termos de causalidade, onde verifica-se que aumentos na liberdade econômica induzem maior tolerância.
Naturalmente, a própria tolerância também é capaz de influenciar a liberdade econômica: se um indivíduo é mais tolerante, ele tende a ser menos desconfiado em relação ao funcionamento de uma economia de mercado, e mais favorável à liberdade comercial.
Mas qual a justificativa para tais relações?
São várias. Como os próprios autores do artigo mencionam, as instituições de mercado são instituições legais que garantem a segurança em transacionar com indivíduos desconhecidos. Nesse sentido, eles distinguem três mecanismos possíveis através dos quais tais instituições afetam a tolerância: i) à medida que as pessoas transacionam com aqueles que são diferentes elas passam a perceber que tais indivíduos são confiáveis e gradativamente internalizam uma visão positiva em relação a estes; ii) através de um desejo de melhorar a própria condição, as pessoas percebem que isso envolve tratar as demais com base não em seus atributos étnicos ou de orientação sexual, mas de suas produtividades; e iii) ao permitir uma mudança na sociedade, dos grupos pequenos e fechados (que exercem pressões conformistas sobre os indivíduos) para a sociedade ampla, onde as pessoas não precisam tentar controlar ou desgostar daqueles que se desviam das práticas e características da maioria.
Outros trabalhos encontram resultados semelhantes. Buscando verificar as hipóteses de Smith de que o livre comércio é capaz de promover valores morais, a economista Maria Pia Paganelli (2013) realizou uma revisão de artigos que testam tais relações, e observou que em geral os resultados suportam as teses de Smith. Trabalhos no campo de teoria dos jogos, como os de Henrich et al. (2004, 2010), observam que quanto maior o nível de integração dos mercados, maior é o nível de cooperação e compartilhamento nos jogos experimentais, sugerindo que o processo de mercado promove cooperação e justiça. Já pesquisas como a de Al-Ubaydli et al. (2013), verificam que a exposição ao mercado possui efeitos positivos sobre o nível de confiança mútua das pessoas.
Já Gordon Tullock (1985), ao aplicar as ideias de Smith em um contexto de dilema dos prisioneiros, observa que as repetidas interações entre indivíduos, como ocorrem num livre mercado, levam ao predomínio de comportamentos cooperativos. O autor conclui que “onde o mercado é amplo e onde existem muitas alternativas, é melhor que você coopere. Se você escolhe não cooperar, você pode descobrir que estará sem ninguém para cooperar com você” (p. 1081, tradução própria).
De fato, Smith dizia que, à medida que passamos a negociar com pessoas desconhecidas, precisamos de regras para governar nossas interações, e com a institucionalização de regras de justa conduta a cooperação entre os indivíduos é reforçada e internalizada. Assim, amplia-se o espaço de comércio com aqueles que não conhecemos, e isso nos permite aprender as melhores maneiras de interagir com o outro sem que sejamos motivados unicamente pelo medo de retaliação.
Na ausência de mercados, as interações com desconhecidos são marcadas pelo perigo, pela exploração e pela desconfiança, e portanto tendem a ser evitadas. Já o desenvolvimento do comércio e de suas instituições permite que as sociedades passem a obter vantagens das transações entre estranhos. Isso também remete à ideia do sociólogo Franz Oppenheimer (1922) que, ao analisar as origens do estado, constata que existem duas maneiras de se obter riqueza: o meio político, através da coerção, e o meio econômico, através de transações pacíficas. Essas transações pacíficas são a alma daquilo que entende-se por mercado.
Os resultados encontrados pelos vários trabalhos acima mencionados não apenas corroboram a visão de Adam Smith, como nos trazem importantes lições sobre o papel da liberdade econômica. Ao possibilitar que as sociedades se tornem mais tolerantes e que o nível de confiança mútua seja maior, as liberdades econômicas revelam-se como fundamentais também para a liberdade política, como já argumentavam Milton Friedman e Friedrich Hayek. Assim, se queremos realmente construir uma sociedade mais tolerante, parece imprescindível que nosso caminho passe pela conquista de uma sociedade mais livre, não apenas nos âmbitos sociais e políticos, mas também no econômico.
Referências
Al-Ubaydli, O.; Houser, D.; Nye, J.; Paganelli, M.P.; Pan, X.S. The causal effect of market priming on trust: an experimental investigation using randomized control. PLoS ONE, v. 8, n. 3, e55968. doi:10.1371/journal.pone.0055968, 2013.
Berggren, N.; Nilsson, T. Does economic freedom foster tolerance? Kyklos, v. 66, n. 2, p. 177–207, 2013.
Florida, R. Cities and the creative class. City & Community, v. 2, n. 1, p. 3–19, 2003.
Henrich, J.; Boyd, R.; Bowles, S.; Camerer, C.; Fehr, E.; Gintis, H. (eds) Foundations of human sociability: economic experiments and ethnographic evidence from fifteen small-scale societies. Oxford: Oxford University Press, 2004.
Henrich, J.; Ensminger, J.; McElreath, R.; Barr, A.; Barrett, C.; Bolyantz, A.; Cardenas, J.; Gurven, M.; Gwako, E.; Henrich, N.; Lesorogol, C.; Marlowe, F.; Tracer, D.; Ziker, J. Markets, religion, community size, and the evolution of fairness and punishment. Science, v. 327, n. 5972, p. 1480–1484, 2010.
Hirschman, A. The passions and the interests: political arguments for capitalism before its triumph. New Jersey: Princeton University Press, 1977.
McCkloskey, D. The bourgeois virtues: ethics for an age of commerce. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.
Oppenheimer, F. The state: its history and development viewed sociologically. New York: Vanguard Press, 1922.
Paganelli, M. P. Commercial relations: from Adam Smith to field experiments. In: Berry, C. J.; Paganelli, M. P.; Smith, C. (eds) The Oxford Handbook of Adam Smith. Oxford: Oxford University Press, 2013.
Pinker, S. The better angels of our nature: why violence has declined. London: Penguin, 2011.
Tullock, G. Adam Smith and the prisoners’ dilemma. The Quarterly Journal of Economics, v. 100, p. 1073–1081, 1985.