O problema do Brasil é realmente o brasileiro?
Recentemente, o norte-americano Mark Manson publicou uma carta aberta ao Brasil, onde aponta o próprio brasileiro como principal problema do país, como fator que nos impede de sermos uma nação mais rica, mais desenvolvida. Mas será mesmo que o problema do Brasil é o brasileiro? Vou tentar explorar essa questão um pouco mais a fundo, sob a luz de alguns cientistas sociais, para encontrar possíveis explicações que fujam dessa platitude.
Devo dizer que, enquanto adepto do individualismo metodológico, a tese de que a origem do problema pode ser traçada aos indivíduos e na maneira como agem e interagem parece ter um certo apelo inicial. Por outro lado — e isso em nada contraria o individualismo metodológico –, é necessário reconhecer que indivíduos não agem no vácuo. Pensadores adeptos do individualismo metodológico sempre reconheceram isso, de Menger a Weber, de Hayek a North. A interação dos indivíduos ao longo do tempo permite a emergência de instituições, de normas que regulam e influenciam o comportamento humano em sociedade. O próprio estado pode ser visto como uma instituição emergente, fruto de inúmeras “rodadas” de interação humana ao longo de séculos — interações que deram espaço para o estabelecimento daquilo que Mancur Olson denominou, em seu livro Power and Prosperity (2000), de bandido estacionário: alguém capaz de fazer uso da força em um território específico sem ser desafiado, que descobre que é mais vantajoso permitir aos habitantes de tal território alguma medida de liberdade para realizarem suas atividades, o que lhe possibilita coletar “tributos” periódicos em troca de “proteção” contra bandidos de fora, aumentando assim sua própria estabilidade. Charles Tilly já havia feito constatação semelhante em War Making and State Making as Organized Crime (1982). E qualquer semelhança com a máfia não é mera coincidência.
Se já sabemos que indivíduos não agem no vácuo, convém abrir nossa análise para levar em consideração as estruturas que intermediam as ações e interações humanas — aquilo que, em Ciências Sociais, denomina-se comumente de instituições. Em termos simples, as instituições podem ser vistas como as “regras do jogo” (North, 1990), ou como sistemas de regras sociais predominantes e estabelecidas que estruturam as interações na sociedade (Hodgson, 2006). Exemplos de instituições são o já referido estado, os idiomas, o dinheiro, as leis, as empresas, e por aí vai. Essas instituições são restrições que moldam as interações humanas, e justamente por isso, nos elucida North (1990), elas estruturam os incentivos existentes para tais interações, sejam elas políticas, sociais ou econômicas. Diante disso, não é possível compreender as sociedades e como elas evoluem sem compreender as instituições.
E é por isso que a análise feita pelo Mark Manson, em sua carta aberta, é rasa: ela leva em consideração apenas um elemento de uma estrutura consideravelmente mais complexa. E justamente por essa simplicidade, ele vê como necessária solução para o nosso problema uma irreal mudança de comportamento, de hábitos, de cultura. “O jeitinho brasileiro precisa morrer”, nos diz a carta. Como se repentinamente as pessoas se dessem conta de seus defeitos e os consertassem. Como se hábitos pudessem mudar sem alterar as estruturas de incentivos em uma sociedade, isto é, sem alterar gradualmente as instituições. Como se as pessoas pudessem gradualmente se mover em direção a um certo modelo ideal, preconizado pela mente de algum visionário, como no sonho comunista do “novo homem soviético”.
Uma vez visualizado que algum grau de análise institucional é imprescindível para compreender os problemas de uma sociedade qualquer, vamos então nos voltar para algumas ideias que possam nos fornecer pistas no sentido de compreender um pouco melhor “o problema do Brasil”. Naturalmente, nenhuma explicação ou hipótese abaixo deve ser encarada como resposta final ou inequívoca. Se fosse simples explicar em poucas linhas os problemas de uma sociedade tão ampla e diversa quanto a nossa, naturalmente alguém já o teria feito, e talvez muitos desses problemas já estivessem solucionados e eu não estaria aqui escrevendo isso.
Vou começar esse “diagnóstico alternativo” chamando a atenção para um ponto recorrente em economia institucional: a ideia de que a história importa (history matters). Isso significa que as nossas possibilidades de escolhas atuais são moldadas por instituições que evoluíram no tempo, isto é, que devem a sua atual forma a escolhas e fatos do passado. Colocando em outros termos, as escolhas do passado limitam a amplitude de escolhas do presente, propriedade também denominada de “dependência de trajetória” (path dependence). Se quiser visualizar melhor os efeitos desse tipo de propriedade, recomendo ler sobre a história dos teclados QWERTY, contada por Paul David.
Pois bem, então já temos um novo indício: é preciso olhar também para o passado, buscando compreender melhor nossa herança institucional. E é aqui que a porca torce o rabo, pois podemos buscar uma miríade de possíveis explicações e fatos históricos para suportar um outro sem-número de hipóteses. Portanto, é evidente que qualquer caminho escolhido será, em algum grau, arbitrário.
Dito isso, vamos começar pela introdução daquilo que North et al. (2007) chamam de Ordens de Acesso Limitado (OAL). Tais ordens são aquelas que criam limites ao acesso a funções econômicas e políticas, como uma forma de produzir renda para os membros de sua elite. Ao reduzir a competição política e econômica, os indivíduos mais poderosos podem manter privilégios e ganhos de renda. Tal tipo de ordem — que os autores denominam de “natural”, por ser o modo dominante pelo qual as sociedades historicamente se estabeleceram — contrasta com as Ordens de Acesso Aberto (OAA), onde prevalece a competição política e econômica, e os grupos mais poderosos são incapazes de influenciar as leis e normas em seu favor para gerar rendas, fazendo com que prevaleça a impessoalidade dos direitos.
O Brasil é um notório exemplo de OAL, e os próprios autores atestam que apenas alguns poucos países da atualidade conseguiram fazer a transição histórica das Ordens de Acesso Limitado para as Ordens de Acesso Aberto, permitindo que seus níveis de desenvolvimento aumentassem consideravelmente. Mais especificamente, o Brasil pode ser visto como aquilo que os autores definem como OAL madura: onde se permite uma grande variedade de organizações fora do estado, mas onde todas devem ser sancionadas por este. Nesse grupo estão, junto com o Brasil, a maior parte dos países da América Latina e da África, por exemplo. As instituições públicas em tais países são mais duradouras do que em países mais frágeis, e o governo pode se comprometer a uma ampla gama de regras e instituições, pois elites privadas possuem poder para punir o governo caso este se desvie de tais compromissos.
Ocorre que o Brasil é uma Ordem de Acesso Limitado desde que os primeiros portugueses se estabeleceram por estas terras. As portas da política e da economia sempre estiveram abertas apenas para as elites, seja diretamente através da posse do poder político, seja indiretamente pela compra dos favores deste. À população, sempre restou olhar pela fechadura, quando muito. A começar pelas capitanias hereditárias concedidas pela Coroa Portuguesa aos bem-relacionados dentro da corte, marcando desde muito cedo o acesso extremamente restrito sobre os recursos locais, o que contrastou pelos séculos seguintes com a privação total imposta aos escravos.
O caráter geral dessa OAL não mudou com a independência, com a monarquia ou com a república. Tampouco se restringiu apenas à relação estado-indivíduo. A grande centralização do poder é uma das marcas que fortemente restringiu as opções mais autônomas de desenvolvimento local/regional, por exemplo. Ainda no século XIX, como ilustra o historiador econômico Nathaniel Leff (1972), o avanço econômico do Sudeste teve como contrapartida o atraso em que se manteve o Nordeste, justamente por este estar submetido às condições limitantes de pertencer a essa mesma unidade política, territorial e monetária chamada Brasil, tendo pouquíssima margem para fazer, a nível regional, os ajustes necessários para enfrentar seu gradual declínio — o que poderia ser obtido se a região possuísse uma moeda própria, por exemplo.
Ao longo do século XX a situação geral melhorou, mas sempre aos trancos e barrancos, de modo que permanecemos como OAL. Entre a política do café com leite, passando pela ditadura varguista, pela república populista, pela ditadura militar e culminando no atual sistema democrático, passamos por inúmeros percalços — inclusive oito mudanças de moeda entre 1942 e 1994, e uma transição democrática turbulenta, com direito a inflação astronômica. A instabilidade política e econômica gerou uma constante e considerável incerteza, sempre absorvida de maneira mais intensa pela população geral, logicamente.
Atualmente, apesar de estarmos em posição consideravelmente melhor do que a de algumas décadas atrás, ainda vivemos em uma relação fundamentalmente díspar com o estado. O fenômeno do rent-seeking é quase ubíquo: vemos ele não somente nos escândalos políticos recentes, mas também no excesso de regulações e burocracia, que leva uma empresa a precisar de mais de 100 dias, em média, para ser legalmente aberta — fator que, entre outros, nos coloca na deprimente 116ª posição entre os países com maior facilidade para fazer negócios. Vemos ele no fato de sermos um dos países mais fechados do mundo e também na concentração de mercado que existe nos mais diferentes setores, sempre garantida pelas barreiras regulatórias à entrada — vide recentemente os casos de tentativa de proibição do Uber e de regulação da Netflix. Tal fenômeno é apenas a manifestação externa de um dos elementos que caracteriza uma OAL: a tentativa de manter o poder das elites através de regulações e manipulações sobre o ambiente econômico.
Mas não para por aí. Nossas instituições ainda são incapazes de garantir a propriedade privada para aqueles que mais precisam: moradores de favelas e outras ocupações “irregulares”. Quando convém ao poder político, inclusive, as propriedades privadas são desapropriadas para os fins mais banais possíveis. O vigor da lei é fraco, a taxa de elucidação de homicídios é baixíssima — e mesmo assim as prisões são superlotadas (para não falar na imensa precariedade destas). Por falar em homicídios, convivemos com mais de 50 mil deles por ano, o que nos legou uma taxa de quase 26 homicídios para cada 100 mil habitantes em 2014 e nos situa como um dos países mais violentos do mundo, com um nível epidêmico de assassinatos. Ainda, nossos governantes não respeitam a autonomia do Banco Central e são incapazes de cumprir regras de responsabilidade fiscal.
Uma das facetas mais cruéis de todos esses problemas — não somente dos atuais, mas de nossa herança histórica — é que o nosso nível de confiança (trust) em pessoas de fora de nosso círculo de amigos/família é baixíssimo. Numa comparação mundial, estamos entre os países com menor nível de trust. Essa desconfiança que permeia nossa sociedade é um fator bastante grave, que inibe o desenvolvimento de mercados e, consequentemente, nos deixa ainda mais nas mãos de governos parasitários.
Um estudo bastante amplo sobre o tema, feito por Yann Algan e Pierre Cahuc (2013), evidencia como o nível de confiança é inversamente relacionado com a quantidade de regulações sobre os mercados de produtos e com o nível de desigualdade, ao passo que é positivamente correlacionado com a qualidade do sistema judiciário e com a qualidade da governança.
Depois desse longo percurso, é hora de voltar ao nosso “jeitinho brasileiro”. Onde ele entra nessa história?
O “jeitinho”, seja ele em sua conotação boa (inventividade) ou ruim (malandragem), entra justamente na maneira como muitos brasileiros tipicamente reagem à estrutura de incentivos propiciada pelos aparatos institucionais vigentes. Uma das características distintivas das Ordens de Acesso Limitado, lembramos, é a predominância da pessoalidade das regras — isto é, estas podem funcionar de modos diferenciados, a depender de quem seja seu sujeito: elites ou o restante da população. Para aqueles, vale a flexibilização das normas e os atalhos. Para estes, a força da lei e os labirintos kafkaescos. O antropólogo Roberto DaMatta descreve, em O que faz o brasil, Brasil? (1984), a maneira como o brasileiro lida com essa dualidade:
Num livro que escrevi — Carnavais, malandros e heróis — , lancei a tese de que o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais. Haveria assim, nessa colocação, um verdadeiro combate entre leis que devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem. O resultado é um sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao pólo tradicional do sistema). Entre os dois, o coração dos brasileiros balança. E no meio dos dois, a malandragem, o “jeitinho” e o famoso e antipático “sabe com quem está falando?” seriam modos de enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro. Ou seja: fazendo uma mediação também pessoal entre a lei, a situação onde ela deveria aplicar-se e as pessoas nela implicadas, de tal sorte que nada se modifique, apenas ficando a lei um pouco desmoralizada — mas, como ela é insensível e não é gente como nós, todo mundo fica, como se diz, numa boa, e a vida retorna ao seu normal. (p. 80)
Isso não significa que todo brasileiro seja um Pedro Malasartes ou um Zé Carioca, tentando sempre contornar a formalidade do sistema e emular as relações que ele observa serem válidas entre os socialmente mais bem colocados — aqueles para quem as regras podem ser flexibilizadas. Significa, contudo, que desenvolvemos nosso próprio jeito de lidar com a realidade, o que, naturalmente, pode trazer tanto benefícios quanto prejuízos. É preciso lembrar os dizeres de Hayek — para quem a mente do indivíduo está inseparavelmente conectada ao ambiente em que vive — em The Sensory Order (1952):
O aparelho por meio do qual aprendemos sobre o mundo externo é o produto de um tipo de experiência. Ele é moldado pelas condições prevalecentes no ambiente em que vivemos, e representa uma espécie de reprodução genérica das relações entre os elementos desse ambiente, que vivenciamos no passado; e nós interpretamos qualquer novo evento no ambiente à luz dessa experiência. (p. 165, tradução livre)
É encarando a realidade das instituições brasileiras que muitos constatam que “há poucos motivos para seguir as leis no Brasil” e que é fácil desobedecer estas leis. E é justamente na lacuna aberta por essa desconfiança generalizada que o jeitinho se encaixa e muitas vezes se torna parte do problema, tornando-se hábito e reforçando a estrutura vigente. Então o “jeitinho brasileiro” não é O problema do Brasil. Ele é, ao mesmo tempo, resposta aos problemas e, por vezes, parte deles. Logo, é ilusório acreditar que a solução seja meramente mudar o homo malandriensis, numa vã esperança de que as pessoas possam facilmente atingir a iluminação, rever seus hábitos, e de repente opa!, agora estamos aptos a construir um país melhor!
É o mesmo tipo de engano cometido por quem resume os problemas do país através de chavões como “o brasileiro precisa aprender a votar”, ou “os políticos são apenas reflexo de seu povo”. Muito embora as duas constatações tenham alguma parcela de verdade, elas ignoram a dimensão mais profunda da realidade institucional, de como o sistema político funciona para manter o funcionamento da Ordem de Acesso Limitado e de como as pessoas reagem aos incentivos vigentes.
Qual a saída então? Infelizmente não existe uma receita de bolo para solucionar os problemas das Ordens de Acesso Limitado e fazer a transição para uma Ordem de Acesso Aberto. Existem, sim, problemas semelhantes que cada sociedade deverá enfrentar de maneira distinta. North et al. (2007), baseados em experiências de países que fizeram tal transição, listam três “condições de entrada” que precisam ser atingidas para um país tenha capacidade de se transformar em uma OAA: garantir i) o vigor da lei (rule of law) para as elites; ii) possibilitar a existência de instituições elitistas perpétuas (isto é, que sobrevivam àqueles que as criaram, sem depender destes), e iii) controle consolidado da violência. Satisfazer esses três itens não é condição suficiente para automaticamente se tornar uma OAA, mas certamente é condição necessária.
Para que a transição ocorra, é preciso que a garantia das condições listadas acima estimule a competição entre elites, ao invés de cooperações entre elas. A partir de tal ponto, as elites passam a ver como mais vantajoso se definirem em termos impessoais, e uma vez que a impessoalidade se estabeleça para tais grupos, ela poderá se estender para o círculo mais amplo da sociedade. Nesse ponto, as instituições econômicas, políticas, sociais e legais garantirão os direitos individuais de toda a sociedade em bases impessoais, tornando a sociedade uma Ordem de Acesso Aberto. Não é nada fácil, obviamente. Mas se queremos progredir enquanto sociedade, precisamos descobrir esses caminhos à nossa própria maneira, com ou sem jeitinho.
Referências:
Algan, Yann; Cahuc, Pierre. Trust, Growth and Well-being: New Evidence and Policy Implications. Discussion Paper n. 7464. Institute for the Study of Labor (IZA), 2013.
DaMatta, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
David, Paul A. Clio and the Economics of QWERTY. The American Economic Review, v. 75, n. 2, p. 332–337, 1985.
Hayek, Friedrich. The Sensory Order: An Inquiry Into the Foundations of Theoretical Psychology. Chicago: University of Chicago Press, 1952.
Hodgson, Geoffrey M. What Are Institutions? Journal of Economic Issues, v. XL, n. 1, p. 1–25, 2006.
Leff, Nathaniel H. Economic Development and Regional Inequality: Origins of the Brazilian Case. The Quarterly Journal of Economics, v. 86, n. 2, p. 243–262, 1972.
North, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
North, Douglass C.; Wallis, John J.; Webb, Steven B.; Weingast, Barry R. Limited Access Orders in the Developing World: A New Approach to the Problems of Development. Policy Research Working Paper n. 4359. The World Bank, 2007.
Olson, Mancur. Power and prosperity: Outgrowing communist and capitalist dictatorships. Basic books, 2000.
Tilly, Charles. Warmaking and Statemaking as Organized Crime. CRSO Working Paper n. 256. University of Michigan, 1982.