A Previdência, o Déficit, a Demografia e a Reforma

Cassiano Ricardo Dalberto
Silly Random Walks
Published in
22 min readMar 28, 2017

Quantidade não implica em qualidade, mas diante das questões que surgem com os atuais debates acalorados em torno da previdência, resolvi abordar várias delas em um único artigo. Afinal, a previdência é deficitária ou não? Precisa de reforma? Quais as opções? Qual nossa situação numa comparação internacional? Questões como essas exigem um número razoável de palavras para serem abordadas adequadamente, então já peço sua paciência para seguir adiante.

Naturalmente, muitos já possuem suas convicções formadas a respeito desses questionamentos. Mas se você está entre aqueles que ainda não formaram uma opinião, ou entre aqueles que estão dispostos a reconsiderar seus posicionamentos, então talvez o presente artigo mamútico tenha serventia. A intenção aqui é lançar alguma luz sobre diversos aspectos da questão, tentando trazer informações que possam colaborar para o diálogo. Mas se você está entre aqueles que não querem nem saber desse negócio de diálogo, então ao menos lhe fica o consolo de que nenhuma árvore foi derrubada para publicar essas palavras, tampouco seus impostos financiaram as mesmas.

Pois bem, vamos lá. Mas antes de buscar dar respostas, contudo, é preciso esclarecer bem quais os sistemas públicos vigentes, e como operam a distribuição de recursos. Essa é uma contextualização importante, mas se você já está bem informado sobre o assunto, pode pular para a próxima seção.

O sistema previdenciário brasileiro é composto por três regimes distintos:

  • Regime Geral de Previdência Social (RGPS): é destinada aos trabalhadores em geral: empregados com carteira, empregadores, trabalhadores rurais, contribuintes individuais, membros dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), servidores públicos não vinculados ao Regime Próprio (abaixo), entre outros. É de caráter obrigatório, e operado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
  • Regime Próprio de Previdência Social (RPPS): é destinado aos servidores públicos de cargos efetivos (concursados), sendo de caráter obrigatório. É operado pelo Ministério da Previdência Social (MPS), e sua instituição fica a cargo dos entes federativos. Quando a entidade federativa não institui o RPPS para seus servidores, eles vão para o RGPS (atualmente, cerca de 1/3 dos servidores ativos está no RGPS).
  • Regime de Previdência Complementar (RPC): se subdivide em dois tipos: o aberto, onde qualquer cidadão pode contribuir (via bancos ou seguradoras); e o fechado, onde operam os fundos de pensão das empresas públicas e privadas. O RPC é de caráter facultativo.

Dito isso, vamos à forma de distribuir os recursos. Grosso modo, existem dois sistemas possíveis: o de repartição e o de capitalização. O sistema de repartição opera redistribuindo as contribuições de hoje para os beneficiários de hoje. É basicamente pegar todas as contribuições sendo feitas e redistribuí-las para quem as deve receber. O sistema de capitalização, por outro lado, consiste em destinar as contribuições individuais para um fundo, onde o dinheiro será acumulado a fim de garantir os benefícios no futuro.

Nesse sentido, como funcionam os três regimes? O RGPS funciona pelo sistema de repartição, com o INSS distribuindo os recursos captados via contribuição. Já o RPPS possui os dois modos, podendo operar tanto por distribuição (Plano Financeiro) quanto por capitalização (Plano Previdenciário), a depender de como foi instituído pelo ente federativo. Já o RPC, por sua vez, utiliza o sistema de capitalização.

Como o RPC não pode receber aporte de recursos públicos, conforme regido pelo artigo 202 da Constituição Federal, a análise subsequente se restringirá aos segmentos da previdência que utilizam recursos públicos: o RGPS e o RPPS.

A Previdência Social é deficitária ou não?

Um dos pontos que mais tem gerado confusão diz respeito à atual situação do financiamento da previdência. Afinal, ela realmente consome mais recursos do que suas receitas? Para responder adequadamente essa questão, é preciso antes fazer alguns esclarecimentos sobre a contabilidade por trás do financiamento da previdência e sobre o orçamento público.

Basicamente, pode-se distinguir dois tipos de orçamentos públicos no Brasil: o fiscal e o da seguridade social. Neste último estão incluídos a previdência social, a assistência social e a saúde pública, conforme definido pelo artigo 194 da Constituição. Já o orçamento fiscal é responsável pelos demais gastos públicos. Cada um desses orçamentos possui uma fonte diferente de recursos. As receitas do orçamento fiscal provêm dos impostos, ao passo que as receitas da seguridade social provêm das contribuições sociais. Uma diferença importante entre os impostos e as contribuições é que, enquanto os primeiros não possuem vinculação (isto é, não estão atrelados a uma destinação específica, de modo que os recursos podem ser canalizados para onde o estado desejar), as contribuições são vinculadas, ou seja, possuem destinação específica. Por exemplo, as contribuições previdenciárias são destinadas especificamente para custear os benefícios previdenciários.

Mas existe um mecanismo que permite que parcela das contribuições possa ser direcionada para o orçamento fiscal. É a Desvinculação das Receitas da União (DRU). Atualmente, mais da metade do orçamento federal é composta pelas contribuições, e apenas o restante (a receita de impostos) pode ser alocada livremente pelo estado. Uma forma de flexibilizar o orçamento foi criar a DRU, que permite que até 20% de todos os tributos federais (impostos mais contribuições) vinculados por lei possam ser aplicados livremente. Mais tarde voltaremos à DRU. Por agora, vamos às contribuições:

Atualmente existem diversas contribuições, sendo as principais:

  • Contribuição para os Programas de Integração Social (PIS) e Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep)
  • Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins)
  • Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Pessoas Juríficas (CSLL)
  • Contribuição para o Plano de Seguridade do Servidor Público (CPSS)
  • Contribuições aos Regimes Próprios das Previdências Estaduais e Municipais
  • Contribuição para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)
  • Contribuição para a Previdência Social (ou para o Instituto Nacional de Seguridade Social, o INSS)

No caso do PIS, a incidência é sobre o faturamento mensal das pessoas jurídicas, e sobre a folha de pagamento, no caso das entidades sem fins lucrativos. No caso do Pasep, a incidência se dá sobre o valor do faturamento das empresas públicas. Em ambos, a destinação dos recursos é para o custeio do seguro-desemprego e o abono aos empregados que recebem até dois salários mínimos.

A Cofins incide sobre o faturamento mensal das pessoas jurídicas, e se destina para atividades-fim da seguridade social em geral.

A CSLL, como o nome diz, incide sobre o lucro líquido do exercício das pessoas jurídicas. Sua destinação é para financiamento da seguridade social como um todo.

A CPSS incide sobre a folha salarial dos servidores públicos e destina-se a financiar a seguridade destes, em seus regimes próprios (RPPS).

O FGTS é pago pelos empregadores, sendo calculado com base no rendimento do trabalhador, e destinado a prover recursos ao trabalhador demitido sem justa causa, ou em outras situações (como aposentadoria, falecimento, falência da empresa, etc.)

Por fim, as contribuições ao INSS incidem sobre a folha salarial do trabalhador, mas também podem ser feitas em caráter facultativo, e destinam-se especificamente a financiar o sistema previdenciário geral (RGPS).

Destes fatos, se observa que as únicas contribuições vinculadas especificamente à previdência são as contribuições para o INSS (no caso do RGPS) e a CPSS (no caso do RPPS). Exceto por PIS-Pasep e FGTS, as demais contribuições (isto é, CSLL e Cofins) podem ser destinadas para qualquer área da seguridade social: saúde, assistência social ou previdência.

Pois bem, vamos aos números.

Em 2016 o RGPS foi deficitário em cerca de 150 bilhões, ou 2,4% do PIB, fruto de uma disparidade entre as arrecadações (364 bilhões) e os benefícios (516 bilhões). Essas informações e o comportamento dos últimos anos podem ser vistos na figura abaixo:

Esse rombo pode ser decomposto entre a previdência urbana e rural. Tradicionalmente a previdência rural é mais deficitária, pois ela é majoritariamente um benefício não contributivo — isto é, que não requer contrapartida financeira -, por ser considerada uma forma de combate à pobreza. A dinâmica das previdências urbanas e rurais pode ser vista abaixo:

Ou seja, do atual déficit do RGPS, cerca de 2/3 provêm do segmento rural, enquanto que o segmento urbano — que foi superavitário entre 2009 e 2015 — responde por aproximadamente 1/3. Uma característica adicional desse fato é que os benefícios rurais são voltados para uma quantidade muito inferior de pessoas: em 2015 haviam 28,2 milhões de benefícios ativos no RGPS, sendo 18,9 milhões (67%) no segmento urbano, e 9,3 milhões (33%) no rural. Por sua vez, o valor dos benefícios urbanos foi de R$ 1227 em 2015, enquanto que para os rurais essa média foi de R$ 788.

— Beleza, mas e o que constitui as “arrecadações líquidas” nesses gráficos?

Basicamente, é a Contribuição para a Previdência Social, citada anteriormente, aquela que é descontada diretamente da folha salarial do trabalhador (ou que você pode pagar voluntariamente). Ela é líquida porque dos valores brutos são deduzidos repasses a outras entidades (sobretudo FNDE, Incra e Sistema S).

— Ué, mas e as outras contribuições? E a CSLL, e a Cofins?

Muito embora essas contribuições possam ser utilizadas para ajudar a cobrir o rombo previdenciário, é preciso lembrar que elas não são destinadas especificamente para a previdência, e sim para a seguridade social como um todo, podendo então também serem destinadas para a saúde e a assistência social.

Assim, se quisermos considerar contabilmente a situação da previdência, precisamos levar em conta os recursos que são direcionados especificamente para tal fim, e contrastá-los com as saídas existentes. É daí que provém o déficit. As demais contribuições, por não serem atreladas especificamente à previdência, destinam-se a cobrir o rombo de acordo com critérios discricionários.

Para ilustrar melhor isso, vou pegar emprestado um exemplo do Gustavo Franco:

“Imagine uma jovem de maus bofes, sem nenhum talento para o comércio, e que se dedica a administrar uma loja de artigos baratos, todos custando R$ 1,99, e que dá enorme prejuízo. A dona do imóvel, madrinha da jovem, não cobra aluguel, fornece refeições gratuitas e ainda lhe paga uma mesada que cobre as perdas da loja com sobra.

A jovem quer mudar de carreira, pois tem a sensação de que não leva jeito para a coisa. Mas a madrinha teme que a afilhada entre para a política, e com a ideia de dissuadi-la arrumou um consultor que provou por A + B que a loja era lucrativa. Bastava tratar a mesada como uma receita, que designou como “Contribuição da Sobreloja para o Lucro” (CSLL), e também ignorar o subsídio no aluguel e na comida, que a conta ficava no azul. O pessoal da contabilidade criativa faz chover, não?

Com a Previdência se passa algo muito semelhante. Segundo a tal tese, se colocarmos na conta algumas receitas em nada relacionadas com o assunto, como a mesada da madrinha, a conta fecha. A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), por exemplo, nada mais é que um adicional ao Imposto de Renda, porém criado sob a forma de uma “contribuição”, pois assim pode ser estabelecida em lei a “vinculação” da receita a determinado uso. Da mesma forma, a Cofins, que é um tributo sobre o faturamento das empresas, tem seus recursos destinados a fechar o rombo da Previdência, que também recebe a valiosa contribuição de receitas oriundas de loterias.

Tal como a mesada da madrinha, esses tributos se destinam a financiar o rombo, tal como emissões de títulos da dívida pública. Mas uma coisa é o rombo, outra é seu financiamento: a mesada não é receita.”

— Mas e aquela história do superávit?

Para tentar chegar ao superávit, é preciso utilizar alguma ginástica contábil. Vamos a elas.

Alguns apelam para o argumento de que não se pode considerar a previdência de maneira isolada, mas sim o sistema da seguridade social como um todo. Acontece que esse orçamento também é deficitário. Mais precisamente, um déficit de cerca de 259 bilhões em 2016. Aí entra uma primeira mágica contábil: desconsiderar os recursos desvinculados pela DRU, sob o argumento de que eles pertencem originalmente ao orçamento da seguridade social. Muito embora a DRU seja considerada constitucional, e não faça sentido ignorar sua importância para os setores aos quais é destinada, temos que, ainda que ela fosse extinta, a seguridade social seria deficitária: se devolvermos as receitas desvinculadas em 2016, que somaram 92 bilhões, o buraco da seguridade fica em cerca de 167 bilhões. Além disso, é preciso notar que a DRU não retira recursos das contribuições previdenciárias.

Então temos uma segunda possibilidade de contabilidade criativa: retirar da conta o RPPS da União, que também é altamente deficitário (atualmente em cerca de 77 bilhões). Acontece que o RPPS da União faz parte do orçamento da seguridade social, e não há sentido em removê-lo da conta. Ainda assim, ao fazer a conta para 2016, nota-se que a seguridade social permanecia deficitária em cerca de 90 bilhões. E aí há aqueles que avançam na ginástica contábil, devolvendo para as receitas da seguridade os recursos das renúncias tributárias. Embora seja realmente questionável a concessão dessas renúncias seletivas, o fato é que elas não podem ser desconsideradas da conta enquanto existirem, além de não resolverem o problema maior da previdência, que é sua trajetória futura, como veremos adiante. Aliás, não resolve nem a questão no presente: as desonerações em 2016 foram de aproximadamente 43 bilhões. Devolvendo esse valor para a seguridade, ainda permanece um déficit em torno de 47 bilhões. Em outros anos a ginástica contábil pode ter dado um jeito de encontrar superávit, mas em 2016 não parece haver mágica capaz de fazê-lo.

Sobre o RPPS propriamente dito, observa-se do valor mencionado no parágrafo anterior que ele também é um grande dreno dos recursos públicos, sobretudo por que o montante do déficit diz respeito à uma parcela muito pequena de beneficiários, quando comparado com o RGPS. Mais precisamente, o RPPS da União atualmente cobre 974 mil de beneficiários, contra os já mencionados 28,2 milhões do RGPS. Enquanto o déficit do RPPS da União foi de R$77,2 bilhões, o RGPS, como já visto, foi de R$151,9 bilhões. Isso significa que, para cada beneficiário, o RPPS da União é deficitário em cerca de R$ 72 mil, enquanto que o RGPS o é em aproximadamente R$ 5,4 mil. Ou seja, o RPPS da União custa cerca de 14 vezes mais por beneficiário.

Em 2016, o déficit do RPPS da União era composto da seguinte maneira:

— E quanto aos RPPS dos estados e municípios?

Embora eles não entrem na conta do déficit previdenciário da União (que abrange o RGPS e o RPPS da União), eles merecem ser mencionados, especialmente os dos estados, que adicionam um tom mais dramático ao quadro atual.

Em 2016, os municípios foram superavitários em 11,1 bilhões, ao passo que os estados foram deficitários em 89,6 bilhões. Somando esses valores ao déficit da União naquele ano, o total do saldo negativo dos RPPS foi de 155,7 bilhões!

Se formos colocar todos esses valores em um gráfico só, ficaria desse jeito:

Se fossemos além e somássemos o déficit do RPPS ao do RGPS (151,9 bilhões), chegaríamos a um valor de R$307,6 bilhões! Esse déficit previdenciário total de 2016 equivale a cerca de 5% do PIB!

Além do tamanho do buraco, nota-se um claro problema distribucional: embora tanto RGPS quanto RPPS sejam muito deficitários, o primeiro abrange uma base muito maior de beneficiários. Mas justamente por isso o RGPS tem uma trajetória mais perigosa à frente, como se verá.

Conclusão: a previdência é deficitária, e bastante deficitária. Mas calma, porque a coisa é ainda pior, pois…

O maior problema não é o déficit. É a demografia!

Mesmo que a previdência fosse superavitária hoje, usar isso como argumento contra a reforma ignoraria a nossa evolução demográfica nos próximos anos. Para ficar bem claro o que vai acontecer, compare-se a pirâmide etária de hoje com a de 2060:

Como fica evidente, a população irá envelhecer bastante, alterando sobremaneira o formato da pirâmide. Tal mudança gerará um problema crescente para a previdência, pois haverá cada vez mais pessoas aposentadas para cada vez menos trabalhadores. Vamos lembrar que nosso sistema funciona por repartição, e que, portanto, os trabalhadores ativos hoje é que sustentam os beneficiários de hoje. Mas hoje a situação ainda é favorável: para cada pessoa com mais de 65 anos, há 7,7 pessoas em idade de trabalho (entre 15 e 59 anos). Em 2060 essa razão será de 2. De maneira equivalente, em cada 100 adultos (15 ou mais anos), hoje há 11,5 idosos. Em 2060, serão 33,4, isto é, três vezes mais. Essas mudanças podem ser vistas na imagem abaixo:

É justamente por conta dessa dinâmica demográfica que a reforma previdenciária se torna necessária hoje, tanto para manter o equilíbrio fiscal futuro quanto para garantir que as pessoas consigam se aposentar nas próximas décadas. E falando em equilíbrio fiscal, é preciso trazer outra conta para o debate: as projeções atuariais da previdência. Essas projeções nada mais são do que cálculos dos saldos (receitas menos despesas) da previdência para os anos futuros, sob o atual sistema.

Para o RGPS, o saldo previsto para 2060 é de um déficit de quase 9 trilhões em valores correntes de 2060, ou cerca de 1,9 trilhões em valores de hoje. Só esse déficit poderá equivaler a cerca de 11% do PIB naquele ano (e isso sendo razoavelmente otimista, com uma projeção de crescimento médio do PIB de 2,07% ao ano até lá, e com uma inflação centrada em 3,5% ao ano, o que é baixo para nossos padrões). Em outros termos, o déficit do RGPS como proporção do PIB vai quase quintuplicar até lá!

Para o RPPS da União o déficit em valores atuais permanece razoavelmente estável, se elevando até 90 bilhões em torno de 2040, e em seguida caindo até níveis semelhantes aos de hoje, atingindo 72,3 bilhões em valores atuais (ou 350 bilhões em valores correntes de 2060). Essa diferença em relação ao RGPS se dá justamente porque a grande pressão da demografia no futuro se dará sobre o montante imensamente maior de pessoas atendidas pelo RGPS, ao passo que o RPPS da União é muito menos sensível às mudanças demográficas. Como reflexo, a proporção do déficit de tal regime em relação ao PIB irá cair dos atuais 1,2% do PIB para cerca de 0,4% em 2060. Isto é, enquanto proporção do PIB, o RPPS da União possui trajetória inversa àquela do RGPS.

A evolução desses valores é apresentada abaixo, em valores trazidos para o presente:

O Brasil parece estar numa situação previdenciária complicada, mas afinal…

Onde estamos numa comparação internacional?

Mesmo estando ainda na fase de bônus demográfico (quando há maior proporção de pessoas em idade ativa em relação às crianças e idosos), somos um país que já gasta muito com previdência — atualmente cerca de 13% do PIB. O critério para atestar que isso é muito é dado pelo contexto comparativo fornecido pelos demais países. Na imagem abaixo, vemos a relação entre os gastos previdenciários (como proporção do PIB) e a proporção de pessoas idosas em diversos países. A linha pontilhada expressa a relação média entre essas variáveis (isto é, a relação esperada de uma, dado a outra).

Há uma relação razoavelmente linear: gasta-se mais conforme aumenta a participação da população idosa. Mas o Brasil destoa bastante, sendo o país mais distante da linha que expressa a relação média — ou seja, é o país que mais gasta com previdência acima daquilo que se esperaria para o tamanho de sua população idosa. Gastamos praticamente o mesmo com previdência que países como França, Áustria e Portugal, mas com uma população muito mais jovem. Países como Holanda, Suécia e Dinamarca possuem aproximadamente o dobro da nossa proporção de população idosa, mas gastam apenas a metade ou menos do que nós.

Mas não é só isso. Também gastamos muito para o nosso atual nível de riqueza. Podemos visualizar isso pela relação entre gastos previdenciários e a renda média dos países, abaixo.

Aqui a relação não é muito direta: existem países bastante ricos e que gastam relativamente pouco com previdência (por exemplo, Noruega, Irlanda, Suíça, Islândia), ao passo que outros já não tão ricos (como França, Itália, Portugal e Grécia) gastam consideravelmente mais. Mas ainda assim o Brasil se destaca: comparado com seus pares de nível de renda, ele tem despesas com previdência muito maiores. Os únicos países que gastam acima de 12% do PIB com previdência são países com o dobro ou triplo de nosso produto per capita. Esses países são muito mais produtivos que nós, tendo assim uma melhor capacidade de financiar despesas tão altas (embora alguns deles estejam com uma situação fiscal complicada).

Nossa situação também não é boa quando comparamos a idade mínima de aposentadoria dos países com a expectativa de vida deles. Mas para fazer essa comparação de maneira adequada, precisamos utilizar a expectativa de vida correta — e não é a expectativa de vida ao nascer, como muitos utilizam, mas sim a expectativa de vida aos 65 anos. A expectativa de vida ao nascer é fortemente impactada pela mortalidade infantil e, portanto, pouco tem a informar sobre a verdadeira esperança de vida de alguém próximo de se aposentar. Assim, as imagens abaixo mostram as relações entre a idade mínima de aposentadoria dos países e a expectativa de vida aos 65 anos, para mulheres e homens. Nos poucos casos casos em que não há idade mínima definida, foi utilizada a idade média de aposentadoria.

Como se observa, a diferença de expectativa de vida aos 65 anos é razoavelmente pequena entre os países, variando entre 82 e 90 anos para as mulheres, e entre 78 e 85 anos para os homens. Nota-se também uma tendência a adotar a idade de 65 anos como critério de idade mínima para aposentadoria, tanto para homens quanto para mulheres.

Novamente, o Brasil tem seu destaque: primeiro, é um dos poucos países no mundo onde não há idade mínima de aposentadoria (além de nós, há outros 11: Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Egito, Equador, Hungria, Iêmen, Irã, Iraque, Luxemburgo, Sérvia e Síria). A idade mínima aqui só se aplica a quem se aposenta pelo critério da idade, já sendo de 65 anos para homens e 60 para mulheres. E veja só, esses geralmente são os mais pobres, pois passaram menos anos no setor formal, e acabam se aposentando com rendimentos menores.

Segundo, nossa idade média de aposentadoria (considerando aposentados por idade e tempo de contribuição) é consideravelmente inferior ao mínimo geralmente estabelecido nos demais países: aqui, os homens se aposentam, em média, com 59,3 anos, e as mulheres com 56,9. A coisa é ainda pior quando olhamos separadamente para as aposentadorias por tempo de contribuição: média de 55,7 anos para homens, e de 53 para mulheres.

Como as expectativas de vida aos 65 anos não são tão discrepantes, ocorre que o Brasil possui uma expectativa de sobrevida após a aposentadoria consideravelmente acima da média. Enquanto os demais países do gráfico possuem média de sobrevida na aposentadoria de 23,4 anos para mulheres e 19 anos para homens, no Brasil essas médias são de 27,6 e 22,4 anos, respectivamente. Se utilizarmos a expectativa de sobrevida da faixa de 55–60 anos (onde estão nossas médias), esses valores são de 26,7 anos para mulheres e 23 para homens.

Outra questão importante diz respeito à taxa de reposição, que é dada pela razão entre o valor do benefício recebido e a média dos salários do indivíduo quando contribuía. Esse ponto levantou polêmicas na atual proposta de reforma, pois ela prevê que para se aposentar recebendo 100% da média dos seus salários, seria necessário contribuir por 49 anos. Contudo, em praticamente nenhum país isso ocorre: a tendência é que os trabalhadores recebam realmente menos do que 100% de seus salários.

Como se nota, até nesse aspecto o Brasil é relativamente generoso — muito embora os países com menores taxas de reposição também possuem trabalhadores mais produtivos, que recebem maiores salários e que, portanto, receberão uma aposentadoria maior do que a nossa. Note-se que, como no Brasil o piso da aposentadoria é o salário mínimo, a taxa de reposição para quem recebe menos será muito mais próxima dos 100%.

Importante perceber que isso não vai mudar: para quem recebe um salário mínimo, a aposentadoria será garantida no mesmo valor (reposição de 100%) sem precisar contribuir 49 anos, mas sim os 25 anos mais a idade mínima de 65 anos. A progressão prevista para o tempo de contribuição tenderá a impactar mais justamente sobre quem tem maiores salários. Além disso, nos atuais moldes a reforma aumenta a taxa de reposição média, uma vez que que a menor taxa de reposição para quem contribuir por menos tempo será de 76%.

A atual proposta de Reforma é boa?

Parece evidente que uma reforma da previdência é necessária e não pode mais esperar muito. Mas disso não se segue necessariamente que qualquer reforma seja bem-vinda. É preciso analisar o impacto específico de cada medida e tentar avaliar em que grau ele avança para promover o equilíbrio fiscal da previdência e também um sistema mais justo.

Nesse sentido, a reforma atualmente proposta tem pontos positivos e negativos. Um dos principais pontos positivos é aumentar a idade mínima, alinhando-nos à experiência internacional, da qual não destoamos muito em termos da expectativa de vida aos 65 anos. Essa mudança também é fundamental por uma ótica distributiva: atualmente, quem se aposenta mais cedo não é o trabalhador em condições mais frágeis, pois este passa boa parte de sua vida trabalhando na informalidade, onde não contribui para a previdência. O trabalhador mais pobre já tende a se aposentar com 65 anos, então a reforma não irá afetá-lo, mas sim aqueles que mais ganham e trabalharam a vida inteira no setor formal.

Outro ponto positivo diz respeito ao critério progressivo para a taxa de reposição. Novamente, como já dito no final da seção anterior, esse tipo de mudança não afeta quem ganha salários próximos ao mínimo, mas sim os trabalhadores de maiores rendimentos.

Ainda, a reforma acerta em colocar a classe política e o regime dos servidores da União sob as mesmas regras do RGPS, fazendo com que todos sintam da mesma maneira a reforma. Ou quase todos, pois aqui já entram os primeiros aspectos negativos: a falta de um comprometimento em adotar as mesmas regras para militares — cuja previdência é altamente deficitária — e, mais recentemente, para servidores de estados e municípios. Mas, apesar desses problemas, que ajudam a colocar a população contra a reforma, é preciso lembrar que a dinâmica explosiva do déficit previdenciário está associada primordialmente com o RGPS, que é, portanto, o segmento que mais carece de reformas.

Outro aspecto negativo diz respeito à mudança dos critérios previstos para recebimento do Benefício da Prestação Continuada (BPC) para os idosos: atualmente, o benefício é concedido para aqueles com mais de 65 anos que possuem renda familiar por pessoa inferior à 1/4 do salário mínimo. A proposta é elevar essa idade para 70 anos. Acontece que o impacto fiscal disso será relativamente pequeno, ao passo que afeta desproporcionalmente o segmento de idosos mais necessitados. Se o critério da aposentadoria será de 65 anos, não faz muito sentido ser diferente para o BPC, cujo foco é justamente uma população em condições mais precárias.

Também é preciso criticar a falta em abordar as isenções tributárias que afetam a previdência. Algumas dessas isenções são totalmente questionáveis, sendo concedidas de maneira seletiva a grupos bem conectados ao poder, como para as grandes empresas exportadoras agrícolas. Isenções mais horizontais, como aquelas direcionadas aos pequenos empreendedores pelo Simples, não possuem esse problema e são benéficas para a economia.

Por fim, a reforma não é profunda o suficiente para promover uma mudança na estrutura do sistema. Mesmo com as atuais propostas, a previdência brasileira permanecerá funcionando sob repartição, sem apontar para um modelo mais desejável e consistente do ponto de vista do equilíbrio atuarial — isto é, um modelo que tente caminhar para diminuir a lógica da repartição e introduzir gradativamente a capitalização.

Não existem outras opções?

Naturalmente, sempre existem. Muitas das soluções alternativas atualmente propostas, no entanto, não atacam o grande problema, que advém da dinâmica demográfica exposta. Exemplos são as propostas de tributação das grandes fortunas ou a cobrança de valores sonegados da previdência. O primeiro caso ilustra um tipo de receita adicional possível, mas cujos montantes a serem arrecadados, além de incertos, teriam contribuições provavelmente marginais, e que não estariam atreladas à lógica previdenciária — isto é, não constituiriam receita previdenciária de fato, mas apenas uma espécie de deus ex machina temporário (volte àquele exemplo do Gustavo Franco). Além disso, ignora-se o possível efeito de movimentos para evitar esses tributos, bem como a necessidade crescente que teríamos deles. O segundo caso poderia fornecer um reforço de caixa momentâneo, mas sem impactos sobre a sustentabilidade do sistema — isto é, tem impactos apenas sobre o estoque hoje, não sobre o fluxo futuro, que é onde está o maior problema. Além disso, despreza-se que grande parte dos tais valores são de massas falidas — isto é, dinheiro que sequer existe ou virá a existir.

Assim, quaisquer opções que visam atacar o problema de forma significativa, precisam passar por mudanças nas regras de contribuição e de acesso aos benefícios, a fim de colocar receitas e despesas previdenciárias em trajetória de equilíbrio no longo prazo. Sem isso, quaisquer outras soluções serão insuficientes e realizadas reativamente e cumulativamente, criando uma colcha de retalhos feitos a toque de caixa para cobrir os buracos conforme vão surgindo (lembra da CPMF?).

Uma proposta que caminha no sentido de promover o mencionado equilíbrio é a elaborada por dois professores da USP (Hélio Zylberstajn e Luis Eduardo Afonso), e dois pesquisadores da FIPE (Bruno Oliva e Eduardo Zylberstajn). O grande mérito da mesma é o de avançar sobre uma reforma estrutural, visando iniciar a implantação de um sistema misto, onde a capitalização terá cada vez mais espaço, a fim de diminuir os problemas do sistema de repartição puro.

Conclusão

A previdência social brasileira representa um grande problema do ponto de vista da dinâmica fiscal presente e, sobretudo, futura. Não atacar esse problema implica em cada vez menos recursos para outras áreas e um crescimento perigoso da dívida pública, que pode colocar o país em trajetória de colapso. Discursos que tentam vender saídas fáceis ou minimizar a dimensão do problema no presente em nada colaboram para solucionar a questão. Uma reforma ampla e profunda é necessária.

Toda proposta de reforma trará, contudo, muito descontentamento. Não é surpresa: numa ótica temporal, uma reforma representa para as pessoas um prejuízo instantâneo (concentrado no tempo), enquanto que os benefícios só serão sentidos no médio e longo prazo (logo, diluídos no tempo e entre diferentes gerações). Além disso, uma reforma não deve ser avaliada como um pacote único, onde tudo é bom ou ruim. Existem pontos positivos e negativos, que devem ser avaliados por seus méritos ou falta deles.

Diante desses fatos, apenas uma coisa é certa: não reformar a previdência hoje implica em tributar desproporcionalmente as gerações futuras e que não possuem voz política hoje. Empurrar o problema com a barriga irá onerar cada vez mais todos os segmentos da sociedade, em um país já repleto de injustiças tributárias.

(e se você me acompanhou até o fim dessa odisseia, eu deixo aqui meu mais sincero agradecimento ❤ )

--

--

Cassiano Ricardo Dalberto
Silly Random Walks

Doutor em Economia (UFMG), compulsivamente curioso, observador de pássaros, filósofo de boteco