A diferença não está no vinho, mas no homem

Simonsen
Editora Simonsen
Published in
3 min readNov 6, 2016

Por Alex Bezerra de Menezes

Nota do editor: este é um trecho do romance “Depois do Fim”, que pode ser adquirido com desconto no link http://www.ciadoslivros.com.br/depois-do-fim-723018-p585279

Curioso beber um vinho num dia e achá-lo excelente, arrematar duas garrafas da mesma safra e da mesma prateleira, e no dia seguinte o vinho estar diferente, até meio insosso, e daí perceber que a diferença não está no vinho, mas no homem. O vinho pode ser o mesmo, o homem é que precisa mudar a cada gole, a menos que o dia anterior mesquinhamente racione.

Recebo um telegrama com o código postal 75001 e percebo que é do estrangeiro. Depois de me ater à origem, vou desvirginando o envelope e, pela simpatia da escrita, descubro que vem da França a correspondência. O idioma francês sabe chegar, tem essa musicalidade implícita e, mesmo analfabeto na língua, a gente a quer ler já fazendo bico. A carta trazia o lacre de cera com o sinete performando o brasão da família do Sr. Glinoer, leões alados e um escudo cruz-de-malta esparramado no papel para lá de nobre, que deu uma dó de abrir, e o conteúdo me deu certeza de que era melhor tê-lo enviado à vidraçaria e mandado emoldurar.

Muito delicadamente e em tradução livre, o francês me pediu para que eu mexesse os pauzinhos e conseguisse para ele também um quadro de Albert Eckhout, parceiro de Frans Post na aventura holandesa por aqui. Teria me tomado por traficante de obras de arte, o cidadão? É a isso que se prestam os habitantes do Terceiro Mundo quando inventam de travar mercantilismo com a matriz europeia: ou são tomados por larápios, ou são vitimados a prolongar o extrativismo para sempre, e a realidade mostra que essa espécie de sempre nunca acaba.

Daí, por costume, já me subjuguei à sugestão dele, imaginei-me vestido de preto, touca ninja para esconder o tédio, escalando os portões do Museu Nacional de Arte da Dinamarca, onde estão os rabiscos de Eckhout, presenteados por Maurício de Nassau aos seus reais comparsas europeus.

Furioso com a sugestão do francês, vi que ele nem querer havia também tisnado a memória da minha avó, que nunca comerciou nada a não ser um pouco de excentricidade para equilibrar a normalidade de uma vida repleta de golpes de sorte, de riquezas inesperadas, de heranças provindas de fontes inesperadas.

O cabeçalho da carta tinha a delicadeza da sugestão, mas o inteiro teor da missiva discutia quando ele poria finalmente as mãos no quadro e, afinal, já expirados seis meses, o um milhão de dólares, acrescidos de juros civilizados, já valia um pouco mais, e pedia para eu me apressar. Acelerar o processo é sempre bom quando se lida com a emoção e o sentimento das pessoas que investem alto num patrimônio sentimental.

Revirando os arquivos, entrevistando pessoas prósperas por intermédio de Maria, que com seu sobrenome quilométrico conseguia abrir muitas portas, sobretudo as que já estavam escancaradas, cheguei perto da gênese do meu cliente. Interroguei Maria como descobrira tão rápido e facilmente os dados sobre o homem, e ela fez o que fazia quando queria segredar seus segredos, emudecia com um sorriso.

A pesquisa me deu o retrato do Sr. Glinoer.

Judeu de nascimento e de convicção, sua família perambulou pela Europa até ser sugada pelo ralo do nazismo e dispersar-se por alguns bueiros com nomes de países. Recuando um pouco mais na sua árvore genealógica, vi que o homem tinha laços muito apertados com uma família de origem holandesa que remontava aos anos de ouro da Holanda capitalista, que exportava e importava de tudo. O que mais emocionou, no entanto, foi saber que ele guardava perigoso parentesco e sobrenome prussiano, em suma um pré-alemão, como Maria.

Alex Bezerra de Menezes nasceu a 21 de abril de 1972, em Pernambuco. É advogado por necessidade e ficcionista por devoção. Em 2005, publicou seu livro de estreia, Incandescências, de forma independente, e em 2016 o romance Depois do Fim, pela editora Simonsen, que pode ser adquirido clicando-se na imagem abaixo.

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