O exercício da piedade em família

Simonsen
Editora Simonsen
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7 min readOct 31, 2016

Por Rafael Vitola Brodbeck

“A família cristã é o primeiro lugar da educação para a oração. Fundada no sacramento do Matrimônio, é ‘a igreja doméstica’ na qual os filhos de Deus aprendem a orar ’em igreja’ e a perseverar na oração. Particularmente para os filhos pequenos, a oração familiar quotidiana é o primeiro testemunho da memória viva da Igreja pacientemente despertada pelo Espírito Santo.” (Cat. 2685)

A piedade é muito prática. Fazer dela um mero sentimento religioso ou um respeito devocional sem atitudes concretas é falseá-la. O Apóstolo São Paulo recomendava a São Timóteo, Bispo de Éfeso, e um dos Setenta Discípulos (cf. Lc 10), que se exercitasse na piedade (cf. 1 Tm 4,7). A piedade deve ser praticada, feita, vivida, não somente desejada, aspirada ou sentida. Mais ainda: precisa ser exercitada.

Os atletas gregos, que São Paulo tinha em mente quando escreveu a Timóteo, exercitavam-se à exaustão até que conseguissem a vitória em seus esportes. Os militares também se exercitam, treinam, fatigam-se no aperfeiçoamento de sua técnica, para que estejam preparados na hora da batalha. Do mesmo modo, os cristãos precisam ter piedade treinada, praticada, exercitada. A fim de alcançar a vitória definitiva no céu, precisam, neste exílio e vale de lágrimas, praticar a piedade.

Mas como se faz isso?

Tendo uma vida de oração disciplinada e profunda. Uma oração que, mesmo combinando repetições de palavras (como a recitação de salmos, de preces compostas por outros cristãos ou pela Igreja, de fórmulas bíblicas e litúrgicas), não sejam vãs (cf. Mt 6,7–8). Uma oração que não seja apenas a expressão de um momento, de uma compartimentação da vida: uma hora somos profissionais, outra pais e mães, outra pessoas que oram. Não, a oração deve estar presente em todos os aspectos da nossa vida. Devemos, mais do que rezar, mais do que orar, ter vida de oração. O mesmo São Paulo, escrevendo à Igreja de Tessalônica, mandava a todos que orassem sem cessar (cf. 1 Ts 5,17).

O cristão bem formado sabe que sem oração não é nada. A oração é parte fundamental e insubstituível do seu relacionamento com Deus. Santa Teresa d’Ávila, reformadora do Carmelo, ensinava: “Que não é outra coisa a oração mental senão tratar de amizade, estando muitas vezes tratando a sós com quem sabemos que nos ama” (Vida 8,5) Orar é estar com Deus, expressar o que sente, o que pensa, e até o seu vazio, rogando Sua misericórdia. É louvar, é adorar, é glorificar o Senhor, clamar poe Sua graça e misericórdia. É falar, mas também ouvir a Deus. Mais do que tudo, rezar é estar com Deus, contemplando-O, falando de amor com Ele que nos ama.

Para orarmos bem, é preciso a vontade. Não bastam sentimentos e emoções fugazes, que logo podem fugir de nós. O Catecismo da Igreja Católica é claro nesse sentido: “A oração não se reduz ao brotar espontâneo dum impulso interior: para orar, é preciso querer.” (Cat. 2650)

Ora, vemos que a oração, então, passa pela disciplina. Temos que ser metódicos na oração. Temos que colocar a vontade a serviço da oração. E isso é exercício, é também exercitar-se na piedade.

É necessário rezar sempre. Diz novamente Santa Teresa: “O verdadeiro amante em toda a parte ama e sempre se recorda do Amado.” (Fundações 5,16)

Momentos específicos, ao longo do dia, para a oração particular, são extremamente necessários. É o trato pessoal com Deus. Sem a esposa, sem o marido, sem os filhos. A sós, a alma com o Senhor.

Também colocar os outros momentos da jornada diária na presença de Deus, ainda que não seja necessário tomar tudo sob uma perspectiva espiritualmente neurótica ou caricata. Fazer tudo como se estivéssemos andando lado a lado com Jesus — e de fato estamos.

Enfim, rezar em casal, e rezar com os filhos, ensinando os pequenos a tratar com o Senhor, a crer que Ele está presente, que nos ouve e fala em nossos corações, sobretudo mediante a Igreja.

E se não sabemos rezar?

Responde-nos São Josemaria Escrivá:

“Não sabes orar? — Põe-te na presença de Deus, e logo que começares a dizer: ‘Senhor, não sei fazer oração!…’, podes ter certeza de que começaste a fazê-la.” (Caminho, 90)

A oração em família deve ser feita nos tempos da alegria e da tristeza, nos momentos em que sentimos muito a presença do Senhor e naqueles em que Ele parece distante, na consolação e na desolação (como ensina Santo Inácio de Loyola), na graça e no pecado, no júbilo e na aridez espiritual.

É a oração um dos meios, ao lado dos sacramentos, para conquistarmos a graça. E sem ela não podemos ver a Deus. É a graça que nos faz ser, para Deus, o que Cristo é por Sua própria natureza.

E o livro que recolhe as principais frases da espiritualidade dos Legionários de Cristo e do Movimento Regnum Christi assim nos diz sobre o crescimento da graça em nós e a necessidade de nela perseverarmos mediante o exercício da piedade:

“A graça de Deus é um princípio de vida e movimento que se insere no cristão e o faz crescer constantemente; é como o coração no nosso organismo: uma vez que começa a funcionar, já não pode parar, sob pena de provocar a morte.” (Cristo ao centro, n. 1764)

Também é parte do treinamento na piedade a recepção dos sacramentos e o uso dos sacramentais, o jejum, a abstinência, a observância do calendário da Igreja, as boas obras, a penitência, o apostolado, o viver santamente os seus próprios deveres familiares e profissionais. Tudo a partir da vida de oração: profunda e disciplinada. Que fale realmente com Cristo, e que seja rigorosamente observada. Que seja amorosa para com Deus e atenta ao que Ele nos quer falar.

“Vida interior, em primeiro lugar. Como são poucos ainda os que a entendem! Ao ouvirem,falar de vida interior, pensam na escuridão do templo, quando não no ambiente rarefeito de certas sacristias. Há mais de um quarto de século venho dizendo que não é isso. O que descrevo é a vida interior de um simples cristão, que habitualmente se encontra em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no trabalho, na família e nos momentos de lazer permanece atento a Jesus o dia todo. E o que é isso senão vida de oração contínua? Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, com uma relação de amizade com Deus que te leve a endeusar-te? Essa é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as almas de oração. Escreve Clemente de Alexandria: Torna-se Deus o homem que quer o mesmo que Deus quer.

A princípio custa; é preciso esforçar-se por dirigir o olhar para o Senhor, por agradecer a sua piedade paternal e concreta para conosco. Pouco a pouco, o amor de Deus — embora não seja coisa de sentimentos — torna-se tão palpável como uma flechada na alma. É Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que estou à tua porta e bato. Como vai a tua vida de oração? Não sentes às vezes, durante o dia, desejos de conversar mais com Ele? Não lhe dizes: mais tarde te contarei isto, mais tarde conversarei sobre isto contigo?

Nos momentos expressamente dedicados a esse colóquio com o Senhor, o coração se expande, a vontade se fortalece, a inteligência — ajudada pela graça — embebe em realidades sobrenaturais as realidades humanas. E, como fruto, surgem sempre propósitos claros, práticos, de melhorar a conduta, de tratar delicadamente, com caridade, todos os homens, de nos empenharmos a fundo — com o empenho dos bons esportistas — nesta luta cristã de amor e de paz.

A oração se torna contínua, como o palpitar do coração, como o pulso. Sem essa presença de Deus, não há vida contemplativa; e, sem vida contemplativa, de pouco vale trabalhar por Cristo, porque, se Deus não edifica a casa, em vão trabalham os que a constroem.” (São Josemaria Escrivá. É Cristo que passa, 8)

Um atleta não treina apenas quando tem desejo. Um soldado não se exercita somente quando “dá na telha”. O fiel, sem quer ser digno desse nome, precisa, como manda o Apóstolo, se exercitar na piedade, treinar sua vida espiritual. E isso faz diariamente, a todo momento, até a exaustão.

Férias? Só no céu!

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Rafael Vitola Brodbeck é delegado de Polícia, e diretor do apostolado “Salvem a Liturgia”. É autor de dois livros jurídicos — “Inquérito policial. Instrumento de Defesa e Garantia dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana” e “Lei de Drogas Anotada” — e vários religiosos — entre os quais “Santo Elias, o Doutor de Israel” e “Jesus Cristo, Rei do Universo”. Estão no prelo outras obras suas, tanto jurídicas quanto religiosas. Ministra palestras e conferências sobre doutrina católica, família, liturgia e o tema do laicismo e das relações entre a Igreja e o Estado.

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