Chuva não é certamente
Por Francisca Romão
Já lembrava Saramago que “o viajante é um sentimental”. É um sentimental, porque interrompe a sua Viagem a Portugal para arrancar um ouriço de um dos castanheiros da beira da estrada. Mal não faria ao castanheiro, tal a densidade de ouriços que povoa os seus ramos — “tantos que fazem lembrar bandos de pardais verdes” — e mal não faz também ao viajante que, meses depois, “já o ouriço ressequiu” e continua a ver nele “o grande castanheiro da beira da estrada”. Um desejo apenas: que o viajante não seja tão sentimental ou que a memória lhe seja fugidia, porque repetir a viagem e o simbólico gesto afigura-se uma missão impossível. Se não impossível, pelo menos capaz de o deixar à beira de um lago de lágrimas. Não por muito tempo, no entanto, que a falta de chuva não deixa correr as lágrimas de que são feitas as suas águas.
Se o imprudente viajante insistir em desbravar Portugal, serão muitos os quilómetros de árvores cremadas, de culturas destruídas, de riachos quase secos. Os próprios ouriços parecem envelhecer e enrugar-se nos ramos dos castanheiros. Dos que ainda restam, pois assistimos à “morte de muitos castanheiros”, sentença das Estatísticas Agrícolas de 2016, elaboradas pelo Instituto Nacional de Estatística. De acordo com o relatório, registaram-se “atrasos na maioria das zonas de cultivo” de castanha, um decréscimo da sua produção e do próprio calibre do fruto. O ouriço que é agora arrancado dos ramos do souto é mais pequeno que antes, mas poupa meses de espera ao viajante: ainda na árvore e já ressequido.
Cenários climáticos que geram apreensão
Segundo Nuno Ganho, professor de Geografia, “os cenários apontam para uma forte tendência de aumento da temperatura e diminuição da quantidade de chuva que cai de forma mais irregular”. Ao passar a palavra a quem normalmente apenas segura a enxada, também nos confirmam este quadro quente e seco. Maria Odete, agricultora já reformada, recorda que “em abril já não choveu quase nada, em maio nada, em junho nada, em julho nada, em setembro e outubro nada”. Saltou o mês de agosto, deixando-nos sem a certeza de se ter tratado ou não de uma partida da memória. “É um processo a que muitas vezes chamamos de ‘tropicalização’”, conclui Nuno Ganho. Ou seja: climas que não são tropicais passam a partilhar do “bafo” quente que lhes é característico.
Também João Santos, professor e investigador do Centro de Investigação e de Tecnologias Agroambientais e Biológicas da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, reconhece a possibilidade de que os climas tropicais ascendam a latitudes mediterrânicas. Não em toda a sua glória, no entanto. Na bagagem, trazem as elevadas temperaturas, mas (qual Sozinho em Casa) os elevados níveis de precipitação parecem ter sido esquecidos nas densidades amazónicas. Em consequência, “nem as culturas tradicionais portuguesas beneficiam do seu ótimo climático”, sugado pela seca, “nem as culturas características de climas tropicais se conseguem desenvolver”, reflete o investigador.
“E já nem as estações do ano oferecem a certeza de um calendário”
E já nem as estações do ano oferecem a certeza de um calendário. “Há uns anos, as estações vinham certas; agora não. Quase parece que não há estações”, comenta a agricultora das Beiras. E acrescenta “há culturas que se deveriam ter começado a fazer no mês de outubro, mas não se fizeram porque não choveu”.
É o lamento de alguém que, mais do que próximo da terra, dela viveu. Maria Odete aponta o exemplo de uma pequena vala que irrigava os terrenos junto à casa. “Era uma vala em que corria água branquinha que era um espetáculo”, sentencia. De tal forma cristalina que nela se espelhavam as próprias estações do ano: de inverno, “transbordava, galgava as margens e inundava os terrenos”; nos meses de primavera, nela cresciam “verdes” as folhas de agrião.
“Era um luxo”, remata a agricultora. E assim, de forma quase casual e inocente, sintetiza uma das prováveis próximas lutas da humanidade. Não o faz sozinha. Já o presidente da Câmara dos Representantes dos E.U.A., Jim Wright, alertava para o mesmo problema. “A crise que a diminuição dos recursos hídricos pode gerar é tão severa quanto qualquer outra crise de períodos de guerra”, denunciava.
Nuno Ganho: “Alterações climáticas? Não temos a certeza”
Que os ouriços não abundam nos ramos dos castanheiros e que o fruto que lhes serve de coração “bate” numa cadência mais enfraquecida é um facto. Mas, nas palavras de Nuno Ganho, é “imprudente falar já em alterações climáticas”. Isto porque uma certa variabilidade climática entre anos é “relativamente normal nas nossas latitudes”. Confessa ser necessária precaução ao falarmos de mudanças ao nível do clima, uma vez que “o facto de estarmos a passar um ano particularmente quente e seco não quer dizer que estas sejam logo alterações climáticas”. O professor de Geografia não descarta por isso a hipótese de que aquilo que parecem ser alterações climáticas não passem, na verdade, de “ciclos naturais que desconhecemos”. Até porque a medição sistemática do clima é algo recente.
Nuno Ganho prefere “não fazer juízos de valor” quanto às alterações climáticas. Chama a atenção para a necessidade de “conhecer os cenários futuros de mudanças climáticas”, tanto para sabermos o que podemos esperar, quanto para podermos “adaptar o tipo de culturas”. A adaptação é uma estratégia que surge de mãos dadas com a mitigação, de forma a “tornar as consequências das alterações climáticas menos intensas”. A adaptação não é, contudo, um processo fácil. Em particular para quem tanto depende do clima, como os agricultores.
Maria Odete já não o é — pelo menos, não de forma “oficial” — mas vive o drama do setor com a mesma preocupação. “Se ainda tivéssemos animais e quiséssemos semear ervas era um desastre muito grande”, confessa.
“A agricultura ressente-se mais com as mudanças climáticas do que as provoca”
Ouriços sem castanhas, “azeitonas sem carne” — expressão que o professor de Geografia “roubou” a um agricultor anónimo — e uma agropecuária sem erva são sintomas de um clima ao qual se diagnostica a doença da variabilidade de humor. E, perante diagnósticos de tal ordem, não se pode falar em “alarmismo excessivo”. Como defende, “não há alarmismo quando falta água para abastecimento, quando muitas barragens têm níveis de água inferiores a 40% ou quando a quantidade de água no solo é inferior a 20%”. O conceito de alarmismo não cabe em discursos que adjetivam a atividade agropecuária de “muito difícil” ou que a identificam com “um desastre muito grande”.
“A água não bate na terra, mas quem paga é o agricultor”
As alterações climáticas não são um tema recente. Nem a consciencialização relativa à importância da água. E, na hora de apontar responsabilidades, há suspeitos do costume cujo cadastro não permite que deles nos esqueçamos. É o caso, por exemplo, do efeito de estufa.
Efeito de Estufa: uma maratona demasiado exigente
“O efeito de estufa existe naturalmente na atmosfera. E ainda bem que assim é” — são as primeiras palavras de Nuno Ganho que imediatamente desmistificam alguns preconceitos que possam sobrar de anos e anos a ouvir falar do fenómeno. Mas quando ouvimos o geógrafo sentenciar, relativamente aos gases de estufa, “ainda bem que existem, estão lá para isso”, sentimos que este enredo de anos e anos deu demasiados nós e que a nossa compreensão poderá ter sido trilhada por um deles.
Não por muito tempo, porque — qual escuteiro — Nuno Ganho rapidamente os desfaz.
A atmosfera é constituída por uma mistura de gases; entre eles, os gases com efeito de estufa, como o metano, o dióxido de carbono e — admirem-se os mais céticos — o vapor de água. Estes gases funcionam na mesma lógica de uma maratona: deixam passar as radiações solares, visíveis e de onda curta sem qualquer obstrução — tal como qualquer maratonista, mais ou menos treinado, passa certamente da linha de partida. A radiação solar é depois absorvida pela Terra e transformada em radiação terrestre. No entanto, os gases com efeito de estufa já não deixam passar a radiação terrestre, retendo-a tal como a linha da meta retém todos aqueles que ficam pelo caminho. E, até aqui, tudo isto é normal.
O problema surge quando o teor dos gases de estufa ultrapassa valores normais, gerando uma maior absorção de calor pela atmosfera e um aumento da temperatura. Ou seja, a percentagem de radiação retida pela atmosfera é muito elevada. À semelhança do que acontece numa maratona, ainda que o título de vencedor caiba a apenas um atleta, convém que ele não seja o único a cortar a meta. Convém que nem todos fiquem pelo caminho; presos na atmosfera, entenda-se.
Para maratonistas mais sedentários, a quem não convenha uma metáfora com linhas de partida, metas, pódios e velocidade, há a convencional metáfora que batizou o fenómeno: os raios solares passam pelo vidro da estufa, mas — enquanto calor — ficam retidos, criando uma atmosfera quente para que, dentro dela, as plantas se desenvolvam.
Todas estas são problemáticas muito divulgadas pelos media, discutidas por um público que, como Nuno Ganho argumenta, “nem tem a obrigação de estar bem informado” e onde há espaço para toda a sabedoria popular. Afinal, “a água bate na rocha, mas quem paga é o mexilhão” ou, numa roupagem mais atual, “a água não bate na terra, mas quem paga é o agricultor” — até porque esta atividade “ressente-se mais com as mudanças climáticas do que as provoca”, ilustra o geógrafo. Mas o mais importante, reitera, “é que este quadro nos faça pensar”.
Por seu lado, João Santos admite a possibilidade de haver agricultores cujo saldo é mais positivo do que o de outros, tanto no que a boas práticas agrícolas e ambientais diz respeito, quanto no que toca à rentabilidade da agricultura praticada. Para que a validade dos cheques não se esgote em poucos anos — assim como não convém que se esgotem os nutrientes dos terrenos agrícolas — “é necessário que se adaptem estas práticas”. Relativamente à agricultura desenvolvida na zona duriense, o investigador da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro denuncia a incapacidade de adaptação de alguns pequenos agricultores que “por inércia, desinteresse, desconhecimento ou falta de capital para investir, acabam por perpetuar aquilo que já se fazia na agricultura do século passado”. No Douro, esta fuga à contemporaneidade acaba por não apresentar resultados particularmente dramáticos, em virtude da diversidade de microclimas que nele existem. Mas, dramatismos à parte, é quando se levanta o pano (e a enxada) que percebemos que estes “pedacinhos de paraíso” poderiam ser mais bem aproveitados. Até porque “os reservatórios de água existentes não podem ser usados de forma completamente livre”, acrescenta João Santos. Resta então que, no palco agrícola, se afinem instrumentos e atores para que a peça saia concertada.
“Medidas aparentemente tão óbvias e simples quanto as que reiteram a necessidade de união e coesão na aplicação de novas práticas agrícolas”
É o grito que ecoa, com palavras que, já declamava Eugénio de Andrade, ferem como “(…) um punhal, / um incêndio” ao sugerir medidas aparentemente tão óbvias e simples quanto as que reiteram a necessidade de união e coesão na aplicação de novas práticas agrícolas. É também o grito que saiu do 8º Fórum Mundial da Água, realizado este ano, em Brasília, e que ficou gravado na sua Declaração de Sustentabilidade.
“Espera-se uma colaboração e cooperação forte, democrática e inclusiva envolvendo a sociedade em geral. Deve reunir as comunidades de povos indígenas e grupos minoritários, setor privado e financeiro, académicos e formuladores de políticas, parlamentos e autoridades locais e associações nacionais de recursos hídricos”, refere-se.
Enquanto se concertam e desconcertam mentalidades e práticas agrícolas, voltamos às palavras, na esperança de que não sejam “orvalho apenas”.
Soluções (literalmente) alternativas
Na hora de traçar linhas de ação que permitam adaptar e mitigar os cenários de mudanças climáticas, Nuno Ganho exprime a sua convicção quanto à possibilidade de realmente solucionar o problema. “Acredito, mas não imediatamente”, concretiza. E justifica, “as medidas agora tomadas, e que devem ser mesmo tomadas, só terão repercussões sensíveis dentro de muitos anos”. O facto de as ações humanas terem um cadastro ambiental faz com que “ainda estejamos a sofrer os efeitos cumulativos daquilo que fizemos em anos anteriores”.
Para que, dentro de algumas décadas, possa o viajante arrancar um ouriço de um castanheiro, sem o peso de despir a árvore do seu quase único filho, as energias alternativas têm que entrar na equação. “Quando pensamos em ‘grandes poluidores’, pensamos em grandes fábricas, mas esquecemos os automóveis”, explica Nuno Ganho. “São milhões e milhões de automóveis a circular por este mundo”, mas se, unidade a unidade, se começarem a substituir os combustíveis fósseis (como é o caso do petróleo) pelos carros elétricos, chegar-se-á um dia a milhões e milhões dessas não tão insignificantes unidades.
E quem, nas viagens de fim de tarde pela estrada fora, esconde os olhos do sol, pode no entanto usá-lo para produzir energia. “Temos energia solar para usar e vender, se for devidamente aproveitada”, conclui o professor Nuno Ganho, “principalmente em anos de seca”.
Poderá assim o viajante continuar a sua Viagem a Portugal, guardando ouriços, bolotas e folhas de parreira douradas pelo sol. Que continue a ser um sentimental guiando e deixando-se guiar entre o sol e a chuva das latitudes lusitanas. Faça-o, contudo, num carro elétrico.