O último Moinho
Por Claúdia Sousa, em Amsterdão
Kalverringdijk nº29. 8h30 da manhã. Um homem de 67 anos prepara-se para mover 15 toneladas sem outra ajuda que a do próprio corpo. E faz isso todos os dias há 36 anos. De tamancos de madeira calcados e cachimbo na boca. Estamos no topo do De Kat, último moinho de vento no mundo ainda dedicado à produção de tintas para fins comerciais. Foi na aldeia que o alberga, Zaanse Schans, a 20 km de Amsterdão, que nasceu há 400 anos atrás o primeiro pólo industrial de que há registo a nível mundial.
“Tempo fantástico hoje!”, lança sem ironia Piet Kempenaar enquanto reorienta as pás do seu moinho para o melhor vento. O dia amanheceu cinzento, está frio e cai uma morrinha persistente mas sobretudo está vento, muito vento. Força 5. Piet caminha nos raios de uma roda vertical com o dobro do seu tamanho. Com esse movimento faz girar 180º a calota giratória do moinho e suas quatro pás, cada uma com 21 metros de altura. Uma das tarefas fisicamente mais exigentes de um moleiro, segundo Piet. Puxa em seguida de uma corda e pendurando nela todo o seu corpo faz descer cada pá, uma a uma, para em seguida ajustar as suas velas de pano. “Tudo a postos” exclama Piet. O dia pode começar
Em 1646, ano em que foi construído o De Kat, seriam mais de 600 moinhos no distrito de Zaan transformando-o na área industrial mais antiga do mundo. Hoje restam apenas seis com atividade comercial. De forma a preservá-los, foi criada a Sociedade de Moinhos de Vento de Zaan que garante o seu funcionamento regular numa área de conservação e museu a céu aberto na aldeia de Zaanse Schans. O moinho de Piet Kempenaar é um deles e é também um dos moinhos mais visitados em todo mundo.
“Agora feche os olhos e imagine-se no topo deste mesmo moinho há quatro séculos atrás. Estaríamos cercados por perto de mil construções iguais a esta, milhares de pás movidas em simultâneo pela forca da natureza a trabalharem para a produção de papel, pranchas de madeira, óleos, mostarda, tabaco ou cânhamo”. Mas não só para a transformação ou drenagem eram relevantes lembra Piet. Na paisagem plana da Holanda os moinhos podiam ser vistos a quilómetros de distância e eram por isso comummente usados por moleiros para enviar mensagens a vizinhos distantes. O posicionamento das pás podia nomeadamente indicar o luto pela morte de um ente querido ou anunciar o casamento de um filho. Na Segunda Guerra Mundial foram usados para avisar de ataques iminentes.
Característica da paisagem holandesa e símbolo da luta do país contra a água, a maioria dos moinhos têm hoje nos Países Baixos o estatuto de património do estado. Inicialmente usados para drenar a água das terras baixas de volta para os rios além dos diques permitindo o cultivo de terrenos e evitando enchentes, rapidamente fizeram crescer em seu redor uma indústria inteira. Eram cerca de dez mil no século XVII, auge de um tempo em que eram retratados nas pinturas de van Ruisdael, Hobbema ou Rembrandt. Hoje restam pouco mais de 1200 em toda a Holanda e apenas 28 com produção dedicada a fins comerciais.
No interior do moinho de Piet Kempenaar cheira a madeira, a pedra e a pó. Os cantos mais escuros da sala principal estão iluminados por lâmpadas a óleo e velas. Piet fala à meia-luz com um grupo de turistas ingleses. Usa a indumentária de um moleiro do século XVIII, de bata azul, tamancos de madeira, cachimbo e boina de marinheiro bretão. Mas não é essa pequena viagem ao passado que mais cativa quando se entra. São sobretudo as dez toneladas de pedra de moagem que na sua rotação e fricção, fazem estremecer o chão e ranger as paredes de madeira do moinho, um barulho ensurdecedor e a sensação de que nos movemos dentro de um barco soprado pela força do vento. Ao ganhar velocidade, o movimento das pás acelera a rotação do eixo vertical que atravessa o moinho e impulsiona o trabalho das mós que estão no rés-do-chão, onde nos encontramos. “Esta mecânica repetitiva e lancinante, sobretudo quando o vento vai crescendo, é música para os meus ouvidos. É como uma orquestra, um Bolero de Ravel” conta Piet confessando que o silêncio de dias seguidos sem vento lhe causam grande angústia e “quase depressão”.
Num dia bom, “vento a favor e sem demasiados turistas a exigirem atenção” saem do De Kat até uma tonelada de giz. É esse mesmo giz que servirá depois para desenhar as linhas de demarcação de estádios de futebol como o do Ajax ou para a indústria do pavimento em linóleo, atualmente o maior cliente do De Kat. A matéria-prima, pedras de cal escavadas de pedreiras na região francesa de Champanhe, é primeiro seca durante um a três meses num anexo do moinho e só depois reduzida a pó pelas mós.
A par do giz, os pigmentos e as tintas são dois outros artigos produzidos e comercializados pelo moinho de Piet Kempenaar. Dos pigmentos diz que “são perto de uma centena, oriundos dos quatro cantos do mundo”. Estão guardados numa pequena sala nas traseiras do moinho. Cobrem duas paredes inteiras, dispostos em pequenos sacos de papelão, dentro de gavetas de madeira etiquetadas à imagem de uma farmácia antiga. Pode ler-se “Âmbar de Chipre”, “Ocre do Rousillon” ou “Verde Terra de Verona”. Entre os mais caros estão o Lápis-lazúli cujas pedras são trazidas do Afeganistão, vendido a 48 Euros as 10 gramas e o Castanho Sépia, a 118 Euros as 50 gramas. Deste último Piet não tem apenas boas recordações. “Antigamente retirávamos aqui mesmo os sacos de tinta dos polvos. Depois de extraídos, secávamos os sacos num forno até ficarem duros para poderem ser moídos. Era um cheiro intragável a peixe durante um mês”.
Nessa mesma sala, Piet recebe uma vez por semana um engenheiro químico. Com ele transforma o espaço num laboratório improvisado onde se misturam potes de terebintina, óleos de colza e de linhaça, gemas de ovo e goma-arábica para dar origem às “melhores tintas”. Estas serão posteriormente compradas por museus, restauradores, pintores, universidades, fabricantes de instrumentos musicais ou até tatuadores profissionais. Dos quatro cantos do mundo vêm também artistas ou curiosos aprender com Piet já que regularmente converte o seu Livro de Receitas para Tintas em sessões práticas de aprendizagem.
Hoje cinquenta por cento dos rendimentos do De Kat provém dos turistas e os outros cinquenta da venda dos seus pigmentos, tintas e giz. Piet Kempenaar já se reformou oficialmente há mais de dois anos mas oficiosamente nada mudou. Passa ainda a maioria dos seus dias a correr “por gosto” por entre as suas pás, as suas cores e os seus turistas. Quanto ao futuro do seu moinho está confiante. A sua sucessão diz, “está assegurada”. O seu filho trabalha hoje a tempo inteiro no De Kat tendo-se formado há 3 anos atrás como moleiro profissional na Guild of Voluntary Millers (GVM), uma aliança nacional de moleiros voluntários, criada no final dos anos 60 por um grupo de entusiastas com o objectivo de capacitar cidadãos comuns para a gestão de moinhos de água e vento. A GVM conta hoje com 2400 membros, tendo formado com êxito mais de 2000 candidatos numa aprendizagem intensiva de dois anos e 185 horas práticas. Piet Kempenaar faz parte desse grupo de voluntários que prepara a nova geração de moleiros holandeses e que contribui para que muitas centenas de moinhos funcionem ainda hoje de forma regular na Holanda.