“8 de Aborto”: quando a Argentina foi substantivo próprio e feminino

Lucas Berti
singular&plural
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8 min readSep 20, 2018

Por Julia Abud, Lucas Berti e Victória Johanna

Mobilização pró-aborto em Santa Fé (Foto: Wikipedia Commons/Reprodução)

Segundo dados da Anistia Internacional da Argentina, ao menos 500 mil abortos são realizados anualmente no país. Interromper a gravidez em casos de estupro, risco de saúde da mãe e má formação fetal já é algo permitido na lei argentina. No entanto, para além da subjetividade do que é ou não nocivo à saúde da gestante, as condições restritas de acesso a informações e métodos abortivos seguros contribuíram com a morte de 43 mulheres só em 2016. Este ano, as fatalidades por complicações na hora de abortar aumentaram: 63. E estima-se, ainda de acordo com a AI, que pelos menos 10 mil acabaram internadas por complicações. Em sintonia com movimentos feministas e alarmantes 251 casos de feminicídio só em 2017, a questão de gênero ganhou força; o debate recebeu caminho livre do presidente Mauricio Macri (que é assumidamente contrário ao aborto) e foi ao Congresso para tentar aprovação. Conseguiu: por 129 a 125, era a chance do aborto até 14 semanas ser despenalizado, livrando mulheres, vítimas da própria falta de alternativas, de penas que variam entre um a quatro anos de prisão. O país se inflou. Feministas comemoravam um avanço impensado, enquanto a parcela conservadora, circunscrita pela Igreja Católica, tomou as ruas para que a medida não andasse ainda mais. E conseguiu: no Senado, o projeto não virou lei e tentará de novo, com texto revisto, em 2019. No apanhado geral, a sensação foi de “é um primeiro passo”. A mídia agiu em cima desse debate.

Reivindicações pela descriminalização mobilizaram milhares pelo país (Foto: Wikimedia Commons/Prensa Obrera/Reprodução)

Como a mídia se comportou diante da hecatombe?

O papel da imprensa no “8 de aborto” — como ficou conhecido e sintetizado o caminho de avanço da lei do aborto na Argentina — passa por uma acirrada e saliente divisão entre dois mundos. Enquanto alguns veículos faziam a exposição factual e “seca” do ocorrido, outros adotaram posturas mais analíticas e aprofundadas do assunto.

Foi possível observar, inclusive, o caráter questionador e, no limite, até ácido de algumas coberturas que se preocuparam em expor um passo além da notícia, com críticas logo no título.

“Senado da Argentina diz ‘não’ à legalização do aborto e país fica com lei de 1921”, diz “El Pais”

O título usado pelo jornal “El Pais” é exemplo direto da transfusão entre as duas coisas. Ainda que sem abrir mão da verdade, a manchete direciona o enfoque da notícia de modo a trazer com ela uma bagagem complementar de informação, que pode extrair do leitor um olhar mais amplo e universalizado sobre qual é o contexto em que a legalização é negada.

Movimentos estudantis também lideraram manifestos pró-aborto (Foto: Wikimedia Commons/Reprodução)

Por “Senado da Argentina”, depreende-se a metonímia de “instituição” ou “política”. Essas mesmas instituições “negam” o projeto, algo feito com certa veemência e que pode conter uma visão de mundo — posteriormente descrita na matéria — que mostra como esse “não” precisou se munir de influências avessas ao progresso para existir.

Ao finalizar o título com “fica com lei de 1921”, é evidente que o retrocesso é quase autoexplicativo, tornando fato e aprofundamento ainda mais homogêneos.

O Antagonista ao aborto e ao jornalismo

A questão acerca do aborto na Argentina foi tratada de forma sucinta, irônica e um tanto quanto despreocupada, no Antagonista — site de “notícias” criado por Diogo Mainardi e Mario Sabino. Com pouco mais de um parágrafo de duas linhas, os jornalistas noticiam o fato do aborto ter sido derrubado. E só.

O posicionamento político de Mainardi e Sabino é bastante conhecido, principalmente no meio jornalístico, o que dispensa qualquer dúvida sobre a opinião de ambos sobre a descriminalização. Mas não deveria dispensar a apuração, a estruturação da notícia e a imparcialidade — considerada quase impossível no meio.

(Foto: Wikipedia Commons/Reprodução)

Também conhecido como um dos maiores blogues da direita conservadora do Brasil, o Antagonista traz, em suas três linhas de matéria, uma informação rápida e praticamente vazia. O primeiro dado do curto texto já pode ser vista quase como uma reclamação pelas 17 longas horas de sessão, seguida de uma informação que mais se parece com uma ideia de pauta ainda não formulada.

Em seguida, para encerrar a publicação, os jornalistas completam com ar de deboche, afirmando que na Argentina a legislação é feita de maneira correta, ao contrário do que ocorre no Brasil.

Não demora até encontrar outra notícia sobre o assunto, desta vez no Brasil. O tamanho do conteúdo e o tom de descaso não mudam muito. Com apenas duas linhas a mais que a anterior, esta afirma que “o STF deveria ter respondido que se trara (sic) de matéria do Legislativo” à ação apresentada pelo PSOL, criticando de forma indireta, porém clara, o partido de esquerda.

Indo além do balanço dos fatos

(Foto: Pixabay/Reprodução)

Entender o contexto numérico desta notícia é fundamental para calcular a distância entre a forma como o fato caminhou na Argentina e a forma como ele foi exportado pelos setores de mídia para a população mundial e, em especial, para o Brasil.

Aqui, vale um paralelo. De acordo com Nelson Traquina, em Teorias do Jornalismo, no campo ideológico, o jornalismo deve funcionar a serviço do público. O autor reconhece que são necessários mais insumos do que apenas boa intenção e caneta funcionando, para que os jornais cheguem às gráficas. Esse fato faz com que o jornalismo esteja subordinado a questões, geralmente intrínsecas a interesses. Após reconhecer a existência dessas amarras, no entanto, Traquina aponta para o fato de que existe moderada autonomia no campo desta atividade.

Esta autonomia, resguardada pela esperança em um jornalismo auto-suficiente, está, portanto, ameaçada por um dos casamentos mais longos da história: aquele entre os grandes veículos, isto é a interface do jornalismo, e a indústria.

A presença ou ausência desta autonomia é, portanto, o prisma que guia a leitura.

(Foto: Pixabay/Reprodução)

O portal G1, mantido pelo grupo Globo, publicou uma matéria intitulada como: “Senado da Argentina rejeita legalização do aborto no país”. A notícia é quente e seu esquema de construção textual funciona dentro dos moldes do hard news, isto é, com lide e pirâmide invertida. É possível observar que o veículo optou por subtrair da manchete, da linha fina e do lide o fato de que parte expressiva da população argentina está descontente com o desfecho da votação.

Após um leve apanhado histórico e a constante repetição de que a proposta não foi aceita, há um vídeo de um protesto desfavorável à decisão, sendo que sua legenda o descreve como “violento”. Por escrito, a existência deste grupo a favor do aborto só é mencionada após o primeiro bloco de informações, quase no fim do texto, um espaço reservado a informações suplementares, abaixo da hierarquia de relevância, em se tratando do modelo de pirâmide invertida.

Com um viés de esquerda, o portal “Brasil de Fato” cobriu o acontecimento com um texto que atua como uma perfeita antítese da publicação do grupo Globo. Na publicação, o vídeo do “protesto violento” do G1 foi substituído por imagens de mulheres de verde, a cor que sinaliza a luta argentina pela legalização do a aborto.

(Foto: Wikipedia Commons/Reprodução)

O pouco espaço para os grupos a favor da legalização do aborto, do G1 foi replicado para os grupos favoráveis. O mesmo serve para o “El País”, que se posiciona logo na manchete: “Senado da Argentina diz ‘não’ à legalização do aborto e país fica com lei de 1921” .

Há aí uma clara insinuação de que a decisão do Senado alia-se a uma política retrógrada. Esse texto se estende no questionamento à submissão do Estado à Igreja.

A diferença na intenção das três publicações, no entanto, reside no fato de que o “Brasil de Fato” sinaliza a carga opinativa de seu conteúdo. Inclusive, a disposição de sua publicação na editoria “Direitos das Mulheres” demonstra que a não neutralidade faz parte de sua proposta. O G1, no entanto, apresenta um claro ponto de vista maquiado com neutralidade.

Os altos índices no registro das mortes, levantados antes da decisão do Senado, clamam pela necessidade de uma tratativa humanizada na abordagem do assunto. O que se vê em ambas as publicações, no entanto, é um compromisso com políticas editorias. Cada veículo à sua maneira, nutre o padrão ideológico que tem.

(Creative Commons/Reprodução)

Deve-se dissociar os conceitos de autonomia do veículo e de autonomia do jornalismo. Embora haja mobilidade ideológica de um veículo para outro, publicações dentro de um mesmo veículo costumam manter o mesmo layout. O caso da cobertura do “8 de Aborto”, analisado juntamente com o histórico dos veículos observados, reafirma esse fenômeno.

A “Indústria Cultural” de Adorno e Horkheimer aponta para tendência de monetização e massificação das produções em geral. Tendo esse conceito de mercantilização da notícia em vista, o G1 e o Brasil de Fato se posicionam como concorrentes diretos dentro, compartilhando o mesmo mercado.

Uma consequência ao se transformar acontecimentos em produtos é a recorrência das abstenções informativas que, quando ocupadas, tornam a notícia um produto com defeito e que, portanto, corre o risco de não ser consumido.

Por fim

Filósofo conversou com membros da imprensa alternativa em SP (Foto: Barão de Itararé/Reprodução)

O linguista, ativista e filósofo Noam Chomsky, participou nesta segunda-feira (17/09)de uma palestra sobre mídia alternativa, democracia e atualidade e foi acompanhada por um dos integrantes do grupo, na sede da Barão de Itararé, em São Paulo.

Durante as falsa, Chomksy disse algo pertinente à discussão: “a mídia é controlada por homens ricos que querem que algumas coisas não sejam ditas”. Quando discutimos o “8 de Aborto”, essa problemática apontada pelo filósofo se mostra não só viva, sólida e totalmente causal em relação à cobertura da mídia, como também um questionamento que estará eternamente em debate enquanto temas sociais estiverem diante do interesse público.

Referências

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Lucas Berti
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Repórter no Opera Mundi e independente no Da Fronteira Pra La | Jornalismo internacional com foco em América Latina