A tentativa de desbanalizar a morte
470.968 mortos, 1.184 nas últimas 24 horas
Por João Guilherme Schneider
Desde que nascemos possuímos uma única certeza, a da morte. Apesar de fazer parte do ciclo da vida, este acontecimento é associado na cultura ocidental à perda, dor e sofrimento, sentimentos que ninguém quer sentir. Apesar disso, todos os dias as pessoas são bombardeadas por notícias de morte, retratada em suas mais diversas formas. Guerras, chacinas, atentados, catástrofes naturais, quanto maior o número de mortos mais alto o valor-notícia. O fascínio do ser humano pelo fim da vida alimenta um ciclo que leva a imprensa a querer reproduzir cada vez mais violência. Como produto, a morte vende.
Durante a pandemia de coronavírus os telespectadores passaram a ver diariamente contagens de mortos, percentual de pessoas em leitos de UTI, imagens de covas coletivas. A narrativa do medo diante da exposição contínua provoca reações. No início do surto, o medo do vírus letal manteve as pessoas em casa. No entanto com o passar do tempo, o número de óbitos cada vez maior começou a produzir um efeito colateral já conhecido, a banalização da morte.
Seja como um mecanismo de defesa para lidar com tamanha tragédia ou por mera força da repetição os indicadores aos poucos foram se tornando números aos quais as pessoas estão acostumadas. Com o passar do tempo, o cansaço do isolamento e a flexibilização das medidas de segurança podem gerar uma falsa sensação de que o que está acontecendo não é grave, como se só fosse possível ver quando alguém da família morrer.
Porém a pandemia mostrou um comportamento diferente dos veículos de imprensa na tentativa de reverter essa banalização. O Jornal Nacional por exemplo passou a exibir o número de mortos em silêncio no lugar das vinhetas tanto entre os intervalos comercias quando no encerramento das edições em que os números atingem novos patamares. Além disso, as histórias dessas pessoas que perderam vida começaram a ser contadas em matérias com tom sensível na tentativa de humanizar essas perdas. Outro exemplo está em analogias como o número de mortos equivalente em queda de aviões.
O Fantástico por sua vez decidiu prestar homenagem às vitimas, pedindo para que as pessoas enviassem cartas com mensagem sobre os entes perdidos. Essas cartas foram lidas e interpretadas por atores com música instrumental ao fundo. Seria possível reverter o efeito da veiculação maçante de morte com essas ações? Porque vivemos com a sensação do caos e o medo da morte quando essa é a única certeza que temos? A responsabilidade jaz sobre a imprensa mas também sob o público que paga, clica e consome.
Fator político
Diante do crescente número de mortos ao longo da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro deu uma série de declarações polêmicas, chegou a afirmar que não é coveiro. Negacionista, assumiu uma postura radical ao questionar a ciência e levantar teorias conspiratórias sobre a origem do novo vírus. Ao assumir um discurso pró-vida a TV Globo assume também um discurso de oposição ao Governo.
Ações como as do Jornal Nacional e do Fantástico buscam colocar a emissora próximas de valores como a preservação da vida, como interesse público tão necessário quando a democracia. Uma forma de legitimar suas intenções dentro de um espectro em que ocorre um jogo político diante de um presidente que ataca constantemente a imprensa e, portanto, a liberdade defendida por ela.
A responsabilidade do Governo é produzir uma narrativa oposta ao que está sendo veiculado na mídia, dois recortes distintos sobre a mesma realidade. Chega a ser surreal ouvir as duas versões do mesmo fato apresentado por forças opostas.