A trágica insensibilidade do jornalismo

O valor da notícia é mais importante que a empatia na cobertura de tragédias?

Lucy Matos
singular&plural
3 min readDec 2, 2021

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Por Lucy Matos e Vinícius Lima

Exploração de tragédias afasta o jornalismo de sua real função. Crédito: Jeremy Bishop / Pexels

No último 5 de novembro, por volta das 17h, foi noticiada a queda do avião transportando a cantora Marília Mendonça. Ela realizaria um show em Piedade de Caratinga (MG) naquela noite. A informação oferecida pela mídia nos primeiros momentos, era de que, tanto ela, quanto os outros passageiros, estavam bem. Contudo, o óbito de todos a bordo foi confirmado pouco tempo depois.

Ainda não se sabia sobre as causas do acidente e o assunto já dava o que falar em veículos de rádio, TV e internet. Guiadas pelo imediatismo, as mídias “surfaram” na onda da informação. A própria transmissão do fato, nesses primeiros momentos, já continha diversos erros, tanto de apuração, quanto de falta de sensibilidade dos jornais acerca do ocorrido. O maior exemplo disso é que, durante o Plantão realizado pela TV Globo, foi exibido ao vivo, em rede nacional, o corpo de Marília sendo retirado da aeronave.

Entretanto, a exploração da tragédia vai além do acidente em si. É comum ver conteúdos sendo criados a partir de fatalidades de forma insensível. Isso bota em cheque, inclusive, debates sobre os valores da notícia e até mesmo sobre a ética jornalística. Para se ter uma ideia, em 7 de novembro, o UOL publicou o texto “Ter avião próprio ou voar de táxi-aéreo: o que é mais seguro e econômico?”, citando a sertaneja. “No caso da cantora Marília Mendonça, morta na sexta-feira em acidente aéreo, tratava-se de um serviço de táxi-aéreo”.

Tal abordagem gerou revolta na internet, e leitores reagiram à postagem: “matéria descabida e desnecessária, falta de sensibilidade com o luto”, é um dos exemplos. Contudo, essa não foi a primeira vez que veículos de comunicação cometeram atitudes que os distanciam da realidade e gravidade dos fatos tratados. Em 29 de novembro de 2016, o avião do time de futebol Chapecoense caiu na Colômbia. Na época, o portal Catraca Livre fez uma série de publicações em um mesmo dia, explorando a temática de voos e quedas de aeronaves com matérias como “Medo de voar? Saiba como lidar com isso” e “10 fotos de pessoas em seu último dia de vida”.

Críticas também foram tecidas sobre a coluna escrita por Gustavo Alonso e publicada na Folha de S.Paulo, no mesmo dia do acidente de Marília, contendo comentários sobre o corpo e o peso da cantora no começo da carreira. “(…) era gordinha e brigava com a balança. Mais recentemente, durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos”, escreveu o historiador. O trecho revela a gordofobia estrutural que muito atinge as mulheres e contribui para essa construção social que destaca a aparência feminina em detrimento de questões como talento e conquistas. Afinal, ao falar sobre a trajetória da cantora em uma homenagem após sua trágica morte, qual é a necessidade de abordar tema tão trivial quanto sua forma física?

Daí se fortalece o debate sobre uma demanda urgente da prática de um jornalismo “humanizado”. Mesmo sendo feito por pessoas, sobre pessoas e para pessoas, parece haver um distanciamento muito grande entre quem noticia e quem ou o que é noticiado. Se temos a necessidade de discutir uma abordagem humanizada e essa, por sua vez, é uma vertente somente às vezes praticada no jornalismo, vemos que o próprio exercício do profissional comunicador tem uma discrepância com o valor da empatia.

Afinal, em que ponto a tragédia deixa de ser tratada como uma informação relevante ao público e passa a ser explorada apenas buscando bons índices de leitura, cliques, interações ou audiência? A responsabilidade coletiva dos veículos de comunicação vai ao encontro direto com a importância da informação. Contudo, os princípios éticos da profissão não podem ser deixados de lado por mero interesse comercial. Ao fazer isso, o jornalista e a mídia, como um todo, garantem não apenas uma postura caótica na prática da notícia, como também enfraquecem todos os valores que fazem do jornalismo um grande aliado do desenvolvimento das sociedades.

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