A voz da mentira de uma mente sombria
Programas policiais desrespeitam crianças e adolescentes atrás do jornalismo
Por Carol Duarte, Fernando Claure e Késsy Balog
J á é praxe ligar a televisão e se deparar com títulos como “Padrasto confessa abuso e assassinato de criança de cinco anos”, “Mãe é indiciada pela morte do filho de dois anos” e tantos outros encontrados no site do programa Cidade Alerta, transmitido de segunda a sexta durante o período da tarde na metrópole de São Paulo, dependendo de afiliadas para a exibição em outros lugares do país.
Com a finalidade de transmitir notícias sobre tráfico e diversas violências, o programa criado pela Rede Record com o mesmo escopo do Aqui Agora, produzido pelo SBT nos anos 1990, leva ao público todas as ocorrências do dia de maneira “descontraída”, trazendo o jornalista investigativo Percival de Souza como comentarista de cada fato, como um Sherlock Holmes engravatado.
Apresentado desde 1995, o Cidade Alerta já foi apresentado por nomes conhecidos, dentre eles José Luiz Datena (que apresenta na mesma linha o Brasil Urgente da Rede Band), Reinaldo Gottino, Marcelo Rezende e atualmente o “queridinho” Luiz Bacci, que de fato adotou para si o papel de “herói” da sociedade.
As entrevistas com as vítimas ou familiares leva o programa a ser um “shownarlismo”, no qual discussões e embates tomam enormes proporções; fazendo parte do sensacionalismo utilizado nas matérias que se repetem várias vezes com teor apelativo, como este exemplo recente: “Criança é encontrada morta e equipe do programa é agredida”.
De acordo com o artigo 247 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é proibida a publicação de nome e imagem de crianças e adolescentes. Porém, isso não é impedimento para programas como o já citado Cidade Alerta, que grava, exibe e consequentemente dissemina informações danosas para os jovens. A busca por entretenimento já se mostra maior do que o comprometimento com um jornalismo sério e factual. Multas e indenizações são pagas, mas os mesmos programas continuam produzindo esse tipo de conteúdo sem nenhum cuidado com os cidadãos retratados e para os quais se apresenta.
Isso abre portas para a discussão sobre a classificação indicativa para essa programação. A necessidade de estabelecer um aviso para a faixa etária à qual o programa remete é o mínimo que emissoras responsáveis devem ter com a audiência. A discussão da influência desses programas sobre a população em geral é tomada com um tom de desprezo e indiferença, principalmente por aqueles que não possuem o costume de consumir esse tipo de conteúdo televisivo, mas para muitos gera uma ideia que muitas vezes é infundada. Jovens consumidores dessa programação começam a desenvolver uma mentalidade incompatível com a realidade em que estão inseridos, o que é prejudicial tanto para suas vidas, quanto daqueles ao redor.
Um outro debate levantado pelo impacto do jornalismo policial sobre crianças e adolescentes é o caso da garota Bel, do antigo canal “Bel para Meninas” no Youtube. Em maio de 2020, internautas inscritos na plataforma destinada a retratar a vida da menina de, na época, 13 anos, chamaram atenção para supostos maus tratos que a adolescente recebia da mãe. Como resultado, o Conselho Tutelar denunciou a situação ao Ministério Público por exposição vexatória, a família retirou as publicações do canal, e a mãe publicou um vídeo negando as acusações.
Entretanto, incontáveis veículos divulgaram a imagem da menina por diversas semanas. Ou seja, além da exposição provocada pela própria mãe, Bel ainda foi obrigada a ver, em todos os lugares, seu rosto estampado em manchetes agressivas, que desencadeavam comentários ainda piores, sob a justificativa de uma liberdade de expressão puramente egocêntrica. Além do desenvolvimento traumático de uma pré-adolescente exposta a tudo isso, acerca da temática, a indagação é: até quando ditos “comunicadores” vão desrespeitar leis, estatutos, juramentos e, principalmente, crianças, alegando informar a população?