As flechas de Páris sob os olhos de Hermes
Mergulhado na presidência pelas divindades que habitam o Olimpo construído na Praça dos Três Poderes, Michel Temer era pendurado pelo calcanhar envolto pelas mãos sujas de Eduardo Cunha, Moreira Franco, Eliseu Padilha e as demais vestais peemedebistas que ululavam moralidade nos microfones da eclesiástica casa. “Pela família”, gritou Hades. “Contra a corrupção, pela moral e os bons costumes”, bradou Dionísio. Enquanto Cunha se assumia como Afrodite, Rodrigo Janot conservava suas flechas em um caldeirão qualquer.
Hermes estava cansado de escrever editoriais contra o governo Dilma. Jurava aos meros mortais que a Acrópole voltaria a viver seus tempos de glória depois da queda da presidente que falava grego.
Eis que Deméter, deusa da Agricultura, trajada em vestes goianas de um sujeito que brada “nóis não vai ser preso”, com um gravador fuleiro nos bolsos, fez as vezes de Apolo, conduzindo a flecha de Páris ao Palácio do Jaburu, ao calcanhar captado pela voz rouca que ecoava na madrugada de 7 de abril. “Tem que manter isso aí”, cantarolou o Aquiles simpático a mesóclises – vistoso e articulado –, protegido pelas prerrogativas que Têmis de toga, que atende pelo nome de Gilmar Mendes, lhe garantia.
Na articulação entre Páris e Deméter, Aquiles viu-se flechado perante a opinião pública. Menos de 3% da população apoia o líder de mãos exaltadas em batalha contra a Procuradoria-Geral da Acrópole. Porém, Hermes, na condição de mensageiro, visa proteger o homem que não renuncia em nome das transações que se dão na pólis.
Os módicos avanços econômicos obtidos pelo governo Michel Temer desde a defenestração de Dilma Rousseff dividiram os rococós editoriais dos jornalões. Enquanto o grupo Globo ─ jornal, rádio e emissora cariocas ─ encampa o “Fora, Temer”, os Mesquita, donos d’O Estado de S.Paulo, ricocheteiam as flechadas miradas no presidente da República buscando o procurador-geral, Rodrigo Janot, enquanto a Folha mantém-se sob um muro reconfortante.
Podemos ser ingênuos e crer no moralismo ululante dos Marinho – ou numa defesa com unhas e dentes do furo conquistado, o que não limita-se como explicação plausível –, que, depois de Lauro Jardim, colunista do jornal que a família assina, revelar o conteúdo da delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista e cúpula da empresa que comandam, a J&F – conglomerado de empresas detentor da maior produtora de proteína animal do mundo –, os moralistas donos da maior emissora do país vestiram a camisa amarela e manifestaram-se, inclusive na novela das nove, pela queda do presidente. No dia em que o bate-papo criminoso que rolou no Jaburu foi revelado, em 18 de maio, o jornal publicou, com o título em garrafais: A renúncia do presidente.
O Estadão, por sua vez, panfleta como base-aliada e defende, com unhas e dentes, a permanência de Michel Temer, vendo no homem que não renunciará o divino articulador para a implementação das reformas propostas pelo governo.
Relembremos dois editoriais recentemente ilustrados na página dois do Estado, buscando desgrenhar a imagem do flecheiro: Janot deveria renunciar, publicado na manhã seguinte à divulgação, por parte da Procuradoria, da patacoada audível no arquivo entregue por Joesley Batista e Ricardo Saud, diretor da JBS, onde os dois executivos revelam que o ex-procurador Marcello Miller, que trocou o Ministério Público Federal pelo escritório Trench, Rossi & Watanabe, responsável pelo desenho do acordo de leniência da JBS, como bom amigo, atuara para facilitar o desenho do acordo de delação para que os dois falastrões não fossem presos; e o editorial Sob nova direção, publicado nesta terça-feira, dia seguinte à posse da nova chefe do MPF, exaltando que “as palavras de Raquel Dodge dão a esperança de que a PGR deixe de ser a fonte de instabilidade e de violação de direitos básicos que tanto mal fez ao País nos últimos tempos, sob a chefia de Rodrigo Janot”. Em nome da “estabilidade política e econômica”, o jornal atua como Antônio Carlos de Oliveira Mariz – até onde sabemos, de forma gratuita, fora a publicidade corriqueira do governo nos jornais.
A diferença editorial entre os dois jornais –Estadão e O Globo– se baseia em uma pergunta: mercadologicamente, Temer ainda é interessante para o país?
Impressionantemente acompanhado pela revista Veja, que se colocou, junto ao Estado e a O Globo, como artífices atuantes pela queda de Dilma, o jornal dos Marinho acompanha a ruptura do humor do mercado aliado à estabilidade política e vê no presidente, o primeiro denunciado por crime comum durante o mandato, como um obstáculo para a retomada econômica e, até mesmo, para a aprovação das reformas que encabeça.
Já o Estadão entende que Michel Temer, tendo o Congresso fuleiro nas mãos – independentemente de como, mostrou a distribuição de verbas às vésperas da votação da primeira denúncia contra ele na Câmara –, representa o que brada entre as mãos esvoaçantes nas discurseiras sob o nome do Brasil: ele é o salvador da bancarrota com a qual Dilma Rousseff presenteou o país – governo que, ressalte-se, Temer fez parte por um mandato e meio.
Pelos distintos vieses, entende-se a abordagem da imprensa a Rodrigo Janot. Parcela dos “barões midiáticos” veem no ex-procurador – com as devidas ressalvas pelo acordo inicialmente firmado com Joesley e cia. –, um atuante membro do poder público investigando a corrupção “enquanto houver bambu”. Outros, mirando a alva cabeleira do caçador, acertam a testa do povo que clama por moralidade, sob uma prerrogativa fictícia.
Na Acrópole brasileira, fiquemos com Cunha brincando de bardo: “Que Deus tenha misericórdia desta nação”, repleta de anjos caídos prostrados em Brasília e retratadas pelos olhos de Hermes interessados em fazer política.