Brincadeira tem limite: a cobertura do episódio envolvendo uma mulher fitness e um morador de rua

Ultrapassaram os limites até mesmo do jornalismo sensacionalista, com nítidas falhas jornalísticas e midiáticas

Nicolli Kiko
singular&plural
7 min readApr 8, 2022

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Por Amanda de Oliveira, Leonardo Cavalcanti e Nicolli Kiko

a história do mendigo da Planaltina viralizou nas redes sociais // istock photo

Algumas faíscas se tornam grandes incêndios. Alguns incêndios poderiam se apagar, mas continuam ali porque tem quem os alimente com mais faíscas e até mesmo gasolina.

No último dia 9 de março, um vídeo percorreu as redes sociais. Eram imagens de uma câmera que flagrou o momento em que um personal trainer do Distrito Federal agride um sem-teto. Passada mais de uma semana, dia 24, o então morador de rua Givaldo Alves concedeu uma entrevista ao jornal Metrópoles contando todo o ocorrido naquela noite.

A mulher, identificada como Sandra Mara, é casada com o personal trainer Eduardo Alves, flagrado pela câmera, e estava realizando atos de evangelização na rua com sua sogra no dia do ocorrido. Em entrevista com Eduardo, a mãe havia voltado para casa sem a esposa; isso o preocupou e o fez ir à rua procurar por ela. Acontece que as agressões foram na verdade consequência do que Eduardo presenciou naquele momento.

Sandra havia ficado na rua e laudos médicos apontam que a moça não estava psicologicamente bem naquele dia. Em áudio, ela mesma se justifica dizendo que viu o semblante de Deus naquele morador de rua. Por ver Deus, ela fez questão de namorar o sem teto em questão e foi flagrada pelo marido durante o ato.

Depois de diálogos e visitas médicas para a mulher, o personal deixou claro que irá manter o casamento com ela e ambos deletaram suas contas nas redes sociais.

Na entrevista concedida por Givaldo Alves, o morador de rua, ele conta detalhes íntimos da relação sexual que teve com Sandra naquele dia. A entrevista viralizou e, além de gerar memes, o mendigo se tornou uma subcelebridade, ganhando até mesmo uma música de samba e um convite para se candidatar a deputado nas eleições de 2022.

Brasil, 2022. Ainda vivemos numa época em que a mídia não dá voz suficiente para as mulheres. O personal Eduardo conseguiu se explicar pela agressão em outra entrevista exclusiva pelo Metrópoles. Givaldo contou seu lado da história na entrevista que fez sucesso. E a Sandra? O que ela teve além de um áudio? O grande questionamento é: cadê a mídia e o público se questionando a respeito do lado dela da história, o que ela sentiu sobre isso tudo e o que aconteceu de fato na visão dela? A moça sumiu exatamente porque não quer exposição e a mídia continua enxergando apenas o lado masculino, apenas um lado da moeda e não se dá conta que isso continua expondo o outro lado também; a mídia está faltando com ética e respeito sobre a vida da mulher.

Isso podemos ver perfeitamente nas análises abaixo.

Na matéria acima, feita pelo jornal Metrópoles, o enfoque é dado em como o “sem teto” viralizou por fazer as pessoas na internet rirem. No texto, são mostrados exemplos de piadas feitas por internautas e repercutidos em forma de caça-clique.

A matéria junta uma coletânea de piadas e até músicas feitas para humorizar a situação triste pela qual a Sandra Mara passa.

O comprometimento do jornalista perante a divulgação de fatos, e a responsabilidade para com Mara, são fatores inexistentes na matéria. A falta de senso crítico com uma situação que virou piada chega em um ponto de tomar partido, afetando a imparcialidade ética do jornalista.

Ser condescendente com esse tipo de humor é irresponsável da parte de um profissional da comunicação.

É irreverente um profissional de comunicação que não pondera seu discurso. Uma vez que é sabido que a mídia é um canal de comunicação entre o fato e a população, sendo assim o repórter um mediador do discurso.

A reportagem do UOL cita que Givaldo foi visto dentro de um carro de luxo. Na matéria há complexidade devido até mesmo a um fato totalmente atípico, é possível perceber que em um certo momento o veículo de imprensa relata “o morador de rua que foi espancado por um personal”, deixando a entender que o fato foi isolado e tirando do contexto o que de fato aconteceu.

O veículo parece tratar Givaldo como “artista” ou a única vítima do fato, todos o tratam como “o último romântico” ou “mendilove”, enquanto a moça é apenas uma “maluca” que foi atrás de problema, mas ninguém pensa quanta necessidade ela também passa no momento e uma das principais talvez seja a necessidade de compreensão. A grande questão é: o que ele fez de tão importante para se tornar uma celebridade tão querida? — a ponto de ser convidado para ser deputado, mesmo sem proposta política alguma ao povo. Ser vítima de violência não justifica ter liberdade para expor coisas tão íntimas que acarretam no outro lado da moeda também.

Matéria publicada em rede social pelo jornal O Globo sobre a situação em que se encontra Sandra, a mulher da história // foto/reprodução: Instagram

A mídia trata as condições de saúde e do psicológico da mulher como se fosse um show; o sensacionalismo passou longe da empatia, a necessidade de noticiar algo passou longe da ética.

O sensacionalismo tomou tanta conta da sociedade que virou música. Música em que a mulher é retratada como objeto e o mendigo de Planaltina é o grande vencedor, o “pegador”, como retrata a letra da canção abaixo.

“Mendigo pegador, mendigo pegador pegou a mulher do sarado, deu aquele trato e ela gostou”

“Pegou a mulher do sarado” — voltamos a repetir, Sandra não é só “a mulher do sarado”, ela tem nome e cargo, ela é empresária e não apenas a esposa de alguém. É um equívoco em pleno 2022 a mídia e a sociedade, num geral, ainda cometer o ato de sempre precisar relacionar a mulher com alguma figura masculina, como se a mulher por si só não sustentasse seus papeis pessoais sozinha. A mídia nesse caso não se trata apenas do jornalismo, e sim do plano das artes num geral; tudo aquilo que comunica apresenta um reflexo do que pensamos e do que vivemos.

“Deu aquele trato e ela gostou” — novamente uma fala infeliz de origem patriarcal

A matéria acima, do jornal Extra, retrata o fato como “cômico”, porém de que ponto de vista estamos olhando? O jornalismo sincero é feito de integridade e principalmente de imparcialidade, necessita dos dois lados da moeda para ser jornalismo e, quando colocamos a situação como “cômica”, estamos vendo apenas a posição de quem se beneficiou e deixando de lado a parte da moeda que ficou virada para baixo, mas que ainda existe ali. Os veículos de comunicação noticiaram essa música e consequentemente acabaram fazendo propaganda de uma letra machista. Logo, a mídia está mais uma vez do lado masculino e ignorando o lado feminino.

Como se não bastasse contar tudo uma vez, Givaldo contou tudo sobre a noite em mais uma exclusiva, dessa vez para a Band, e logo após ocorreu vazamento explícito do conteúdo, sem nenhum corte nas falas detalhadas sobre o fato. A emissora emitiu nota de repúdio, porém o vídeo continua em circulação pela web.

Em resumo, o jornalismo ainda apela ao machismo e à falta de caráter com a mulher. As pessoas se incomodam em chamar Givaldo apenas de “mendigo”, ele é um ser humano, mas ninguém pensa que a mulher tem nome também, ela é humana, e além do nome ela carrega uma vida que a mídia está ajudando a corromper. Sandra não é apenas a mulher do episódio ou “a mulher do personal”, ela é uma empresária que precisa de apoio e assistência no momento, e isso não dá o direito às pessoas de a diminuírem ou invadirem sua vida como está acontecendo atualmente. A falta de ética jornalística está justamente nessa exposição que o caso vem trazendo a ela, colocando cada vez mais lenha na fogueira a cada matéria nova que sai a respeito.

Há tantas coisas que precisam ser noticiadas, tanta gente precisando de voz e por que a mídia ainda insiste numa história onde a mulher está sendo humilhada? Por que investir em algo que já deveria ter dado seu desfecho?

Aqui a grande questão é: há um limite entre noticiar e invadir a vida privada de alguém. Aí está o crime do jornalismo brasileiro ainda cobrindo essa história.

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