Dez anos desde a morte de Eloá Cristina: o que erramos?

Isabella Marques
singular&plural
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4 min readMar 26, 2018

Por Isabella Marques

Neste ano completa-se dez anos desde o caso em que Eloá Cristina foi morta pelo ex-namorado Lindemberg Alves. Em um cenário no qual a culpa do criminoso é a mais óbvia, é possível apontar, porém, outro agente de interferência nas circunstâncias, cujas ações foram tão determinantes quanto as do sequestrador: a mídia.

Após Lindemberg invadir a casa de Eloá e mantê-la junto a sua amiga Nayara como reféns, foram quatro dias de cárcere privado. Já nas primeiras 24 horas, emissoras de televisão e repórteres dos mais diversos veículos começaram a acompanhar e divulgar as informações sobre o acontecimento, muitas vezes ao vivo e exaustivamente durante o dia.

Assim, no segundo dia, foi pedido que a imprensa se afastasse, por questões de segurança. E, como era difícil obter informações pelos policiais e pelas famílias dos envolvidos, que foram orientadas a não dar entrevistas, os repórteres procuraram maneiras de continuar presentes para realizar a cobertura. Por exemplo, entrando em contato diretamente com o sequestrador.

A repórter Zelda Mello da TV Globo foi uma das que tiveram êxito; a entrevista foi ao ar no Jornal Nacional.

No entanto, a conversa entre Lindemberg e o repórter Luis Guerra, da Rede TV!, é, sem dúvidas, a mais polêmica. Na entrevista, o sequestrador pergunta se estão ao vivo, e o repórter responde: “Estamos gravando. Se você quiser, a gente grava, e coloca no ar o que você quiser”.

O diálogo desenrola com perguntas sobre o bem estar da garota, os motivos do cárcere, o sentimento do Lindemberg e uma conversa com a refém. Guerra pede calma, tranquilidade e confiança no rapaz “de bem”, segundo o repórter, e em Deus, além de recados para os familiares. Logo após, o sequestrador exige que a entrevista seja colocada na íntegra no ar.

Mais tarde no mesmo dia, Sônia Abraão, no programa A Tarde é Sua, entra mais uma vez em contato com o criminoso, dessa vez ao vivo, e os assuntos voltam aos mesmos da entrevista anterior; diversas vezes Lindemberg afirma a possibilidade de atirar na ex-namorada. Começa então uma espécie de negociação para o fim do sequestro, envolvendo apelo da irmã, saúde da mãe, detalhes da soltura e confiança na polícia. A postura da apresentadora foi amplamente criticada.

Outro momento absurdo é quando um dos convidados do programa, o advogado Dr. Ademar Gomes, quando perguntado sobre como ele acredita que será o desfecho da situação, responde: “Bom, eu sou muito otimista. Eu espero que isso termine em pizza, e em um casamento futuro entre ele [Lindemberg] e a namorada apaixonada dele. Ele está passando por uma fase momentânea […] um rapaz jovem muitas vezes se desequilibra. Isso vai terminar realmente em um final feliz, graças a Deus. Eu tenho plena convicção disso”.

No final da tarde do último dia, o caso chega ao fim com a invasão policial. Eloá morreu horas depois de ser atingida por um disparo do sequestrador.

É importante, porém, abrir um parênteses aqui: a presença da mídia foi (e, em geral, é, em diversas situações) essencial para vigilância da ação policial, considerada precipitada, por exemplo, ao mandar a amiga de Eloá, Nayara Rodrigues, que já havia sido libertada, de volta ao cárcere, e ao invadir o local após um suposto tiro, alegação desmentida pelos repórteres.

Seja como for, é notável a interferência e influência da mídia nas ações do sequestrador, e, possivelmente, nas da polícia. O jornalismo e a mídia são, como um todo, formadores de opinião, e é preciso que sejam exercidos com compromisso e cautela. O jornalismo policial, especialmente, exerce um papel essencial na sociedade pelo enorme potencial denunciador que possui.

Mas quase dez anos depois, fica a reflexão: como a cobertura de casos como o de Eloá e Lindemberg pode ser feita de modo diferente? Se acontecesse nos dias atuais, a cobertura teria sido diferente?

São perguntas hipotéticas demais, com respostas complexas demais. Mas vale o questionamento: como zelar para que uma cobertura não ultrapasse dos limites? E quais são esses limites?

Se uma emissora tem a possibilidade de entrar em contato direto com um sequestrador, ela deve “perder a oportunidade”? Deve “ficar para trás” enquanto outros canais exibem suas entrevistas exclusivas? Como zelar para que essa entrevista não pareça ser controlada pelas vontades do criminoso?

Se um advogado tem espaço para expressar sua opinião extremamente machista ao vivo e em rede nacional, ele deixará de fazê-lo, mesmo que correntes de pensamento feminista tenham ganhado força? O apresentador deve aceitar seu comentário e apenas trocar de assunto para não causar-lhe constrangimento?

Se dez anos e um final trágico como o de Eloá deveriam ser motivos suficientes para aprimoramento da cobertura midiática, da ética jornalística e do senso crítico do público, a realidade atual do jornalismo e o crescente fenômeno das fake news vêm para mostrar o contrário. Ainda há muito o que se aprender.

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