Importância seletiva

Marcela Gasperini
singular&plural
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5 min readMay 24, 2018

Sete meses após os atentados ocorridos na Somália, continua o descaso frente aos problemas na África

Por Marcela Gasperini e Marina Xavier

Vítima de constantes conflitos internos e guerras civis, o continente africano diferentemente do resto do mundo, teve a formação dos seus países como resultado de um processo de exploração colonial e consequentes independências tardias. Visto isso, além da inevitável desigualdade social que assola o país até hoje, as diferentes etnias que foram obrigadas a coexistirem após a Conferência de Berlim, em 1885, constantemente entram em conflito entre si.

O genocídio de Ruanda ocorrido em 1994, cujo resultado foi o extermínio de milhares da minoria tutsi, pode ser considerado um claro exemplo das consequências do domínio europeu sobre esses povos. Na época, a mídia exaustivamente se preocupava em conseguir uma ampla cobertura dos acontecimentos do Ocidente, mas para muitos críticos dela, não houve o mesmo esforço com relação aos africanos.

No final do ano passado, após um ataque com dois carros bombas em Mogadíscio, capital da Somália, que deixou mais de 300 mortos e 400 feridos, houve um aumento significativo acerca da discussão dos critérios de noticiabilidade impostos pela mídia. E além disso, o ocorrido do dia 14 de outubro de 2017 no principal país localizado no chifre da África, abriu espaço para análise à respeito da comoção da sociedade e da cobertura feita pela mídia quando o assunto é continente africano. Segundo as informações do ministro da informação do país, Abdirahman Osman, além do número de mortos e feridos, outras 122 pessoas foram levadas de transporte aéreo para receberem tratamento na Turquia, no Sudão e no Quênia após o ataque contra o povo somali.

De acordo com as informações obtidas pela agência de notícias internacional Reuters, pelo menos metade dos mortos não puderam ser identificados devido a gravidade das queimaduras que sofreram. O ataque, atribuído pelo governo local ao grupo militante islâmico Al Shabaab, não foi confirmado pelo mesmo, porém, as autoridades se empenharam em responsabilizar o grupo, ligado ao militante islâmico, Al Qaeda, pelo ocorrido.

Destoando dos ataques em Paris ocorridos em 2015, por exemplo, quando a comunidade internacional apoiada pela cobertura midiática se envolveu em uma campanha de solidariedade para com o povo francês, a mesma comoção não foi percebida com os recentes acontecimentos na Somália. Outros exemplos mais recentes aconteceram em Barcelona (Espanha), Londres (Reino Unido), Las Vegas (EUA) e Boston (EUA). Todos eles causaram uma comoção mundial, sendo tratados na mídia por um longo período, mobilizando as pessoas nas redes sociais e nas ruas, por meio de manifestações em favor das vítimas.

Em uma rápida pesquisa na internet sobre os últimos dez atentados terroristas no mundo é possível encontrar um bom resumo. Porém, apesar de ser o mais recente, o ataque na Somália aparece em apenas um ou outro site, ou nem mesmo aparece nas pesquisas. E praticamente também não é falado nem divulgado que, de acordo com o Consórcio Nacional para o Estudo do Terrorismo e Reações ao Terrorismo (EUA), a Somália é um dos 10 países que mais sofre atentados no mundo todo. Isso reflete, mais uma vez, a importância que a imprensa (não) demonstra para com os países africanos. E esse padrão não é percebido apenas no país e nesse momento, uma vez que o continente foi palco de diversas guerras como a extensa Guerra do Congo, que continuam não recebendo o devido auxílio social.

Para o Diretor de Redação do portal Opera Mundi, Haroldo Ceravolo Sereza, 43 anos, a falta de atenção da mídia com os acontecimentos na África se deve ao fato de que a cobertura internacional é controlada pelos veículos que têm recursos econômicos para uma cobertura global: “A pauta internacional no mundo é controlada pelos veículos que têm recursos econômicos para uma cobertura global. Simplificando, mas sem deixar de expressar a realidade, as grandes agências de notícias ocidentais (AP, AFP, EFE, Deutsche Welle) conseguem impor a agenda deles para o mundo”.

Essa escolha de agenda pode explicar a concentração de assuntos no noticiário internacional: “São veículos com fortes relações com os Estados nacionais em que estão instalados (Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha), e essa cobertura mantém estreita relação com os política externa de Estados Unidos e União Europeia. Há alguma exceção, tipo a Xinhua, chinesa. Mas essa concentração é que explica a pouca cobertura da África, uma vez que o espaço territorial africano ainda é um espaço de exploração fortemente influenciado pela história colonial”. Ele ainda explica que a cobertura do continente enfrenta outros problemas: “Cobrir África é caro, por razões óbvias: a infraestrutura é mais precária e o mercado menor. A questão central é recursos e cultura de cobertura, ou seja, dinheiro e tempo”.

Devido aos recentes acontecimentos, muito se discutiu acerca do assunto, como também maneiras de evitar o distanciamento que a mídia mundial e especialmente brasileira, recentemente transmitiram na cobertura dos fatos. Através de tais análises e discussões, percebeu-se que o continente africano em sua maioria foi sempre tratado de modo único, ou seja, diferentemente do resto do mundo, a percepção que se obtinha era de que a África se tratava de algo único, e não um conjunto de países com diferentes etnias, culturas e línguas.

Sendo assim, o próprio tratamento ao qual recebiam os povos africanos por meio dos noticiários acabavam contribuindo para um inevitável distanciamento da sociedade mundial, que seria incapaz de imaginar a África, além daquilo que lhes eram impostos: um único país assolado por guerras civis e habitados por pessoas que não conseguiam se organizar. A análise dos porquês de tais conflitos nunca foram feitos, e dificilmente o contexto colonial pelo qual a África foi submetida e as consequências de tais ações dificilmente foram discutidas.

Haroldo ainda avalia que as disparidades que foram observadas no caso Paris-Somália é algo cada vez mais comum e perceptível: “Cada vez mais nos deparamos com situações assim. As raízes são históricas e estão ligadas às hegemonias econômicas e culturais. No caso da França, ela é uma espécie de capital cultural do mundo, com todas as implicações simbólicas que isso implica. O imperialismo europeu construiu a ideia de que um ataque à França é um ataque à humanidade. Na África, a ideologia imperialista construiu a ideia de que os homens e mulheres de lá não são, quase, seres humanos”.

Entendendo-se que há uma questão econômica por trás disso, uma vez que se trata de um continente que oferece condições precárias muitas vezes, é claro que o debate é necessário para que a percepção jornalística a respeito da importância e valor da notícia mude. Apenas a partir disso, o noticiário global, que é controlado pelas agências internacionais, como explica Haroldo, conseguirá diversificar as pautas, e consequentemente, mudará a visão etnocêntrica atual do mundo.

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