‘Marco temporal’ e as narrativas editoriais da imprensa

Cobertura do julgamento que impacta os direitos dos povos indígenas testa a relação de parcialidade entre o jornalismo e o agronegócio

Elisa Maria Fontes
singular&plural
3 min readDec 2, 2021

--

Por Elisa Fontes e Laura Donini

Indígenas de mais de 170 etnias acamparam em Brasília para acompanhar o início do julgamento no STF | Foto: Caíque Souza/Apib

Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar o chamado “marco temporal”, que define o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil. A tese define que os povos indígenas só podem reivindicar suas terras se estiverem nelas antes de 5 de outubro de 1988, a data da promulgação da Constituição. O assunto ganhou destaque nos jornais de forma didática. No entanto, para apresentar a situação dos povos originários na distribuição de terras do país, o Jornal da Band e o Jornal Nacional (Globo) apresentaram a realidade de forma distinta.

Quando a ação foi pautada no STF, no dia 26 de agosto, foram exibidas reportagens sobre o andamento do julgamento nos principais telejornais dos canais. A cobertura da Band destacou a “grande preocupação no campo”, como informou o próprio âncora Eduardo Oinegue. Apesar da reportagem citar a mobilização indígena histórica contra a tese, boa parte do conteúdo sinaliza que, mesmo em menor porcentagem, a população indígena tem grandes áreas do território brasileiro, sendo feito até mesmo uma comparação com territórios de outros países.

O repórter Valteno de Oliveira disse que “essa imensidão de terras onde vive menos de 0,5% da população brasileira pode dobrar caso o Supremo derrube o marco temporal” e destacou um trecho da entrevista do ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo — que defende a tese — à Rádio Bandeirantes. Nesse sentido, o enquadramento da Band apresentou os fatos de forma a induzir o telespectador ao que os ruralistas defendem, sem ouvir os principais envolvidos na ação julgada pelo STF, os próprios povos indígenas, e nem dizer por que eles são contrários.

Em outra perspectiva, o Jornal Nacional também apresentou uma reportagem explicando o julgamento “fundamental para as terras indígenas”, como chamou o âncora William Bonner, na mesma noite. A matéria destacou protestos pelo mundo e o acampamento “Luta pela Vida”, feito em Brasília, que pressionavam o STF a votar contra o marco temporal. Além disso, explicava o histórico e a origem da tese, referente a um pedido de reintegração de posse na Terra Indígena Ibirama-Laklanõ movido pelo governo de Santa Catarina.

O repórter Fabiano Andrade ouviu os dois lados da história: o procurador-geral do estado e um representante da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). A reportagem apresentou a importância da ação e da grande mobilização dos povos indígenas de forma mais informativa, apesar de não apresentar muitos dados. Em comparação com a reportagem da Band, a matéria do Jornal Nacional retratou uma realidade mais honesta, sem escolher lados no caso.

Como parte da grande mídia, as duas emissoras possuem parcerias com o agronegócio, no entanto, a editorialização da notícia fica evidente no Jornal da Band. A responsabilidade e o compromisso do jornalismo com os fatos não impede que a realidade seja distorcida a partir de um enquadramento e por linhas editoriais. Para isso, jornais omitem fontes e fazem comparações sem equivalências que não contam a história por completo. Os jornalistas, como agentes da construção da realidade, não devem ignorar os envolvidos e os impactados pelos fatos ocorridos.

--

--