Nos olhos da violência: um jornalismo vestido de sangue

Análise da ética e sensacionalismo na cobertura de criminalidade

Bel
singular&plural
4 min readOct 6, 2022

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Por Isabela Aoyama

Enquanto andamos na rua desprendidos de verdades e encarcerados por falsas projeções da realidade, o canto do olho nunca descansa — no silêncio, tomado pela memória de um acontecimento que aterroriza o cotidiano humano, o “será”, a possibilidade da violência não perde o fôlego.

Segundo dados apurados pelo G1, o índice nacional de homicídios apresentou 20,1 mil assassinatos só nos primeiros seis meses do ano de 2022. Em 2021, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas. E, nos primeiros cinco meses deste ano, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) registrou um total de 7.447 denúncias de estupro no país; das vítimas, 79% são crianças e adolescentes. O Atlas da Violência, feito pelo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), trouxe dados que verificam o aumento no número de mortes violentas¹ por causas indeterminadas em 2019.

Não faltam dados que retratam a violência urbana. E também, não faltam notícias, que mesmo nuas e grotescas, apresentam essa violência. Sem muito filtro, as marcas de sangue não somem da roupa do povo; os atos e os fatos chegam ao berço da população com muita brutalidade. Em um mundo cercado por teias digitais e por um jornalismo-cidadão, a informação aterrissa como uma grande bomba-relógio: quem viu, viu. Quem não quer ver, feche os olhos.

É muito comum se deparar nos jornais ou nas redes sociais com vídeos de uma ou mais violências. Seja assédio, estupro, assassinato ou linchamento. Todos podem, todos têm acesso e todos têm olhos. Apesar do vídeo e noticiamento servir não apenas como informação e evidência de interesse público, mas também como elemento principal da construção da realidade dentro do quebra-cabeça jornalístico. O cidadão, consciente ou não, se debruça no saber e na memória do que é, pode ser e será de acordo com o recorte dos jornais de credibilidade, entendidos como a maior e mais forte fonte da realidade.

É exatamente aí que se encaixa a problemática: de que forma essa evidência é utilizada para noticiar a violência? O jornalismo, ainda que siga éticas e morais pesadas, não dispõe atualmente de filtros que garantam o bem-estar dos telespectadores. E muito menos, propõe-se a apresentar casos de violência sem o apego sensacionalista e de audiência.

Photo by NEOSiAM 2021 on Pexels

Não faltam exemplos. Nos veículos de mídia on-line, os vídeos dessas violências são destacados e, muitas vezes, até os mais vistos ou compartilhados. Na TV, o jornalismo policial ganha cada vez mais espaço, com programas como Brasil Urgente, da emissora TV Band, o Cidade Alerta e o Balanço Geral, ambos da emissora TV Record. Com altos índices de audiência, a violência é narrada de maneira exaustiva e dramatizada. O elemento que carrega essas mídias é uma visão da realidade social brasileira submersa em violência, em que todos estão passíveis ou sujeitos a ameaças.

Sem uma discussão profunda do tema, utiliza-se dessas evidências e notícias para criar e afirmar, como diz Romão², sensações de vulnerabilidade e medo socialmente disseminadas. Além disso, dentro desse jornalismo repleto de pós-verdades, e no sensacionalismo desses programas, a violência é até mesmo utilizada como ferramenta política de posicionamento, que questiona ou se coloca ao lado dos feitos e desfeitos do Estado. Muitas vezes, o comportamento policial antiético e a justiça pelas próprias mãos são exaltadas.

Embora a violência provoque efeitos e sintomas diferentes em cada telespectador, a forma em que o jornalismo entrega essa realidade afeta todos os sistemas sociais. Há aqueles que evitam os jornais pelo medo da violência e há aqueles que evitam o mundo pela paranoia da violência. O discurso é rotulado pelo perigo, pelo incomum e o inesperado, naturalizando essas realidades, que acaba assim por uma regulamentação oculta.

Ainda que o assunto seja polêmico e sensível, tentar filtrar o que pode ou não ser mostrado ao público e como é ainda muito debatido no campo jornalístico. Cabe a nós, jornalistas, que acreditam na importância do tema, criar debates reflexivos e notícias que ultrapassam o imaginário popular a respeito da violência. Estar apenas vestido de sangue não comunica a verdade.

¹ Termo utilizado como um dos indicadores de mortalidade; categoriza-se como mortes por causas externas e de violência. Ou seja, homicídios e suicídios, agressões físicas e psicológicas, acidentes de trânsito, transporte, quedas, afogamentos e outros.

² ROMÃO, Davi Mamblona Marques. Jornalismo policial: indústria cultural e violência. 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) — Instituto de Psicologia, University of São Paulo, São Paulo, 2013. doi:10.11606/D.47.2013.tde-30072013–113910.

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