O dizer sem ser dito e o significado nas entrelinhas

Gustavo Alonso acusa a “turba digital” e se esquiva de culpa após receber críticas por obituário de Marília Mendonça na Folha de S.Paulo

Viviane França
singular&plural
3 min readDec 2, 2021

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Marília Mendonça posa para foto com as mãos na tiara em cima da sua cabeça, veste uma blusa preta de mangas longas e bufantes.
Reprodução / Instagram @mariliamendoncacantora

Por Ana Caroline Melo e Viviane França

Após confirmar a morte de Marília Mendonça, no último dia 5 de novembro, o colunista Gustavo Alonso, da Folha de S.Paulo, foi designado a escrever o obituário da cantora em sua coluna. O texto, pouco tempo após a publicação, repercutiu de forma negativa devido a dois parágrafos em que o autor comenta sobre as medidas da sertaneja. Isso causou revolta, principalmente nos fãs de Marília, e Gustavo foi chamado machista e gordofóbico.

Ao afirmar que Marília Mendonça “nunca foi uma ótima cantora” e, em seguida, chamá-la “gordinha” que “brigava com a balança” levantou o debate sobre como os trabalhos das mulheres são apagados, colocando suas aparências como foco do sucesso ou não. Isso ficou mais evidente por se tratar da Rainha da Sofrência, umas das precursoras do feminejo, subgênero do sertanejo, majoritariamente masculino.

Ainda, o texto contém críticas disfarçadas de elogios, técnica conhecida como negging, em um dos trechos em que ele cita: “afirmava a poética da autoaceitação, mas aparentemente teve que mudar sua imagem e emagrecer ao longo dos anos de showbizz”. Nessa frase, Alonso desqualifica o posicionamento da artista referente à autoaceitação em vez de questionar os padrões que a colocaram na posição de buscar o emagrecimento constante.

Ao notar as críticas ao texto, a Folha de S.Paulo usou a repercussão da polêmica para gerar mais polêmicas, com a publicação de outros artigos opinativos. Um deles foi do jornalista Tony Goes, em que aborda a gordofobia estrutural. O objetivo era mostrar pluralidade de vozes, porém o resultado foi inverso. Os leitores entenderam como descaso com a opinião sobre o obituário, exigiam uma retificação clara e objetiva.

Após oito dias, Gustavo Alonso produziu outro texto, “Tribunal digital”, em que usa de ironia para falar do que ele denominou “turba digital”, se referindo ao comportamento em massa de críticos aos dois parágrafos do seu texto. Para ele, os da turba digital “agem na grande rede com o objetivo de interditar o debate implodindo qualquer possibilidade de conversa a partir de acusações, não argumentos”. Entretanto, houve muitos argumentos racionais que ele decidiu ignorar, dando voz apenas aos discursos de ódio e ameaças — que convenhamos, também é um problema a ser discutido na comunicação digital.

O jornalista usa de adjetivos para se defender e cita outros personagens para justificar seu artigo anterior. Em nenhum momento ele admite o erro ou se desculpa pelo obituário insensível que publicou poucas horas depois da confirmação da morte da cantora.

Além disso, o jornalista cita que não foi misógino e gordofóbico como as pessoas o acusavam; ele afirma que apenas falou como a indústria do sertanejo funciona: “Preferiram atacar o mensageiro ao rei”. Sua tentativa de tirar a culpa fica nítida entre as linhas, onde ele se preocupa em justificar seus argumentos e dizer que foi mal interpretado.

Os comentários de Gustavo Alonso mostram a pouca noção do cenário vivido por mulheres diariamente, quando os seus talentos e feitos são julgados em função de seus corpos. Isso fica evidente com a pesquisa feita em 2017 pela Skol Diálogos, em parceria com o Ibope, em que 92% dos entrevistados relataram sofrer com a gordofobia no cotidiano, enquanto apenas 17% declaram ter sido ou ser preconceituosos. Ainda vale ressaltar pesquisa feita pelo IBGE, que mostra que obesidade nas mulheres aumentou de 14,5% para 30,2% entre 2003 e 2019.

O intuito do obituário foi apresentar as diferentes faces da trajetória de Marília, uma mulher que revolucionou o gênero sertanejo, cogitada como compositora para diversos artistas desde os seus 12 anos até se tornar a Rainha da Sofrência. Entretanto, errou no tom das palavras e reconhecimento do próprio erro, ignorando a luta constante das mulheres por equidade de gênero e contra imposições sociais.

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