O machismo presente nas abordagens midiáticas

Como uma mesma situação pode ser relatada de formas diferentes quando o gênero se sobrepõe aos fatos

Mariana Apolinario
singular&plural
4 min readNov 25, 2020

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Por Izabel Rodrigues, Luana Figueiredo e Mariana Apolinário

Dentre as responsabilidades coletivas do jornalismo, há a disseminação de informações que não estejam imbuídas de qualquer tipo de preconceito. Porém, em alguns momentos, a mídia trata personagens femininos e masculinos de maneira diferenciada, reforçando estereótipos propagados pela misoginia estrutural. Isso é perceptível em duas matérias publicadas no jornal britânico The Guardian: “Why Kanye West’s fight for his masters marks a changing music industry” (“Por que a luta de Kanye West por suas músicas marca uma indústria musical em mudança”) e “Taylor Swift is furious at the sale of her master tapes — but she’s luckier than most” (“Taylor Swift está furiosa com a venda de suas músicas — mas ela é mais sortuda que a maioria”).

As duas matérias tratam do mesmo tema: a luta de artistas pelos direitos autorais de suas músicas. Porém, a escolha de palavras que compõe o título e o corpo do texto, além da escolha de fotos que acompanham cada matéria, geram discursos com sentidos diferentes. Em “Por que a luta de Kanye West pelas suas músicas marca uma indústria musical em mudança”, escrita por Rhian Jones, o título traz as palavras “marca” e “mudança” para salientar o impacto que as ações de Kanye West poderiam acarretar na indústria musical. Para completar a situação, a matéria classifica os argumentos utilizados pelo cantor como “razoáveis”.

Já em “Taylor Swift está furiosa com a venda de suas músicas — mas ela é mais sortuda que a maioria”, publicada por Eamonn Ford, a artista é vista como uma pessoa furiosa; sua luta contra os donos de suas músicas é uma reação emocional, enquanto a ação de Kanye West é pensada e capaz de modificar o cenário musical. Dessa forma, Kanye West é um salvador enquanto Taylor Swift é uma mulher sendo conduzida por suas emoções, furiosa e ingrata (pois ela é “mais sortuda que a maioria”). A matéria ainda deixa implícito que foi graças à gravadora Big Machine que Taylor Swift obteve sucesso, que sem eles a cantora não teria chegado ao seu atual patamar.

Entendendo que imagens e títulos tendenciosos influenciam na recepção dos leitores, é papel do jornalista ser cauteloso na escolha das palavras. A construção do texto que fala sobre a cantora está mais focada em expor uma imaturidade da parte da popstar do que o real problema, que são as vendas dos direitos autorais. Isso fica evidente quando a matéria mostra o descontentamento da artista com as atitudes do dono da empresa a qual pertencia, Scooter Braun, que ela acusa de intimidação. Logo em seguida, o texto traz uma afirmação da esposa do CEO de que seu marido não é um agressor, como uma forma de contradição às queixas de Taylor.

A diferença de abordagem de um mesmo acontecimento nas duas matérias citadas é explícita. Há uma intensa necessidade de colocar Swift em um papel inferior ao de Kanye West, como se ele fosse a vítima da situação. A linguagem utilizada na matéria do rapper traz palavras como “luta”, “revolucionar”, “sucesso”, “mudança” e outros exemplos de artistas que se adaptaram no ramo da música com relação aos diretos sobre os singles que produzem. Ao contrário do que ocorreu com Taylor Swift, as ações de Kanye, apresentadas no texto, para recuperar seus direitos são vistas com outros olhos, tendo sua história como a primeira da matéria publicada, como se o cantor tivesse sido o pontapé inicial na tentativa de recuperar a liberdade na indústria musical.

Taylor Swift durante show na Califórnia. Criador: Chris Pizzello. Créditos: Chris Pizzello/ Invision/ AP. Direitos autorais: Invision. Uso apenas para crítica.
Kanye West discursando na Lakewood Church em Houston, Texas. Criador: Michael Wyke. Crédito: AP. Direitos autorais: Copyright 2019 The Associated Press. Uso apenas para crítica.

A escolha das imagens que acompanham as matérias também é estratégica. Na matéria que traz Taylor Swift como protagonista, a imagem publicada é a da artista apresentando a música “You Need To Calm Down”, canção que acompanhou a petição por direitos iguais para a população LGBTQ+. Dessa forma, Taylor está vestindo um figurino com as cores da bandeira LGBTQ+ e, no fundo do cenário, há flores coloridas. Enquanto isso, na matéria em que Kanye West é o protagonista, a imagem que acompanha o texto é a do rapper vestindo um terno e discursando; ao fundo da imagem há uma parede lisa. Com isso, a foto de Kanye West passa mais credibilidade, seriedade e competência, enquanto a de Taylor Swift alude a uma popstar infantil.

Essas matérias são apenas um exemplo da atuação misógina da mídia. Diversas cantoras e atrizes já passaram por algo similar. A falta de responsabilidade e imparcialidade e excesso de machismo na cobertura de um acontecimento deixam rastros severos na vida dessas artistas, que precisam se reafirmar com seus trabalhos constantemente para não deixar que as manchetes ofusquem seus talentos.

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