O papel da mídia na distorção da realidade

Análise da construção da realidade no caso de Amanda Knox, acusada pelo assassinato de Meredith Kercher em 2007

Bel
singular&plural
4 min readNov 28, 2022

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Por Isabela Aoyama

Ela é o demônio com cara de anjo. Manipuladora cruel, maestra do sexo, a donzela de gelo, foxy knoxy — esses são alguns dos apelidos gentis utilizados nas manchetes de grandes tabloides para descrever Amanda Knox, acusada de matar Meredith Kercher.

Americana e loira, aos seus 20 anos, Knox vivia um romance como estudante de intercâmbio em Perugia, na Itália. Sua colega de quarto, Kercher, de 21 anos, morena e britânica, uma estudante exemplar. Apesar dessas descrições e dados parecerem irrelevantes de primeira instância, foram exatamente essas proposições que polarizaram o caso de assassinato que ocupou a mídia em 2007.

O caso, que causou muita comoção internacional por envolver duas estudantes de intercâmbio, pressionou a mídia e as autoridades italianas por uma performance inesperada.

Poster do documentário “Amanda Knox”, lançado em setembro de 2016 na plataforma Netflix. (Fonte/Reprodução: IMDb)

Há exatamente 15 anos, Kercher foi encontrada com um corte profundo na garganta, seminua, com evidência de traumas sexuais no apartamento que dividia com Knox em Perugia. Outras contusões indicavam que sua respiração foi forçadamente interrompida pelas mãos do agressor. Com o cenário do crime, a brutalidade só poderia ter sido cometida por um “monstro”, segundo o policial responsável pelo caso, Giuliano Mignini.

No dia em que o corpo foi encontrado, uma cena inusitada foi gravada pela mídia italiana. Knox podia ser vista no lado de fora da casa, beijando seu então namorado na época, Raffaele Sollecito, também acusado de participar do crime. Não demorou muito para os investigadores entenderem o caso como um “jogo sexual” que deu errado, mas isso não passava de teoria. Outro acusado de participar do crime, Rudy Guede, um imigrante com histórico criminal, confessou o crime sozinho.

A cena de afeto entre Knox e Sollecito foi só o início das acusações. Aos olhos da mídia internacional, isso não era algo que alguém em luto faria. Aos poucos, a imagem e vida de Knox passaram a ser enquadradas de forma fantástica pelos jornais. Tudo que Knox fez e não fez tornou-se passivo de culpa. Até mesmo seu diário pessoal foi vazado pela mídia. De maneira extremamente misógina, ela foi apresentada como a bela menina que orquestrou um crime sexual perfeito — porque, segundo eles, ela simplesmente “não gostava” de sua colega de quarto, descrita como pura e inocente.

As fotos de Knox nos tribunais que circulavam pela mídia eram todas muito bem recortadas. Momentos únicos, em que ela podia ser vista sorrindo, arrumada, “bem vestida”, como se estivesse debochando da situação. As fontes italianas, como o policial Mignini, traziam informações infundadas, machistas e xenofóbicas. Sollecito e Guede, apesar de também serem acusados, não tiveram o mesmo espaço na mídia que Knox.

O jornalista Nick Pisa, responsável na época pela cobertura britânica do caso, atuando pelo The Daily Mail, é a figura mais controversa da história. O crime foi seu grande furo e fez manchetes mundias. O problema? Pisa fala abertamente no documentário da Netflix, Amanda Knox, de 2016, que a narrativa era impecável. Era a história que todos os jornalistas gostariam de contar. Ele compara a sensação de ter seu nome na primeira página com o sentimento de transar, apesar de publicar, sem qualquer evidência sólida encontrada, que Kercher era vítima de uma crime sexual grupal e Knox a culpada. Havia uma grande discrepância entre as informações apresentadas pela mídia e as do registro policial.

Montagem com as capas dos jornais publicados em 2011, relatando que Knox tinha sido absolvida do assassinato de Meredith Kercher. (Fonte/Reprodução: The Telegraph¹)

A má apuração e antiética de Pisa contribuíram muito para a distorção da realidade no caso. E ele também nunca se responsabilizou pelos resultados. Com a propagação dessas informações isoladas, a história vendeu tão bem que em todos os lugares o nome caricato de Knox podia ser visto. O número de notícias sensacionalistas que perpetuaram essa personagem era incontável. A realidade foi tão distorcida que até mesmo as autoridades italianas não conseguiam lidar com a tensa cobertura midiática, o que resultou em um julgamento injusto de Knox. Eles conectaram a personagem criada pela mídia com a sua participação no crime. Knox foi sentenciada inicialmente a 26 anos de prisão pelo assassinato e estupro de Kercher, ao lado de Sollecito, mas no final conseguiu cumprir apenas quatro anos de prisão.

“Há quem acredite na minha inocência. E há quem acredite que sou culpada. Não há meio-termo. E se sou culpada, significa que me devem temer, pois não sou o tipo óbvio. Mas por outro lado, se eu for inocente, significa que todos são vulneráveis. E esse é o pesadelo de todos. Ou sou uma psicopata em pele de cordeiro ou sou você” — Amanda Knox, 2016

Amanda não é o único exemplo de uma distorção pautada na misoginia. O caso atual de Amber Heard e Johnny Depp, envolvendo difamação e violência doméstica, que movimentou a mídia e as redes sociais, só mostrou que— culpada ou não, a mulher, nos olhos do mundo e na alimentação selvagem da mídia e seu público, é passiva como alvo. Além de reforçar a exaustão da mídia de sempre buscar por dualidades radicais nas narrativas.

¹Ilustração disponível em: <https://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/europe/italy/8806255/World-media-reaction-to-Knox-verdict.html>.

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