Um dilema de responsabilidade

O poder de influência do jornalismo põe em xeque o estereótipo de isenção

Raquel Kie Oshio
singular&plural
3 min readJun 15, 2021

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Por Ana Luiza Xavier e Raquel Kie Oshio

No último dia 13 de maio, a Câmara dos Deputados concluiu a votação de um projeto que tem como objetivo flexibilizar as regras que pautam o licenciamento ambiental. Ou seja, a ferramenta que o Brasil utiliza para controlar e regulamentar empreendimentos, obras e atividades que utilizam recursos naturais foi flexibilizada.

Assim como faz com todas as decisões do governo, o portal de notícias da Folha de S.Paulo fez uma cobertura da votação e, quando chegou-se a um resultado, o veículo publicou uma reportagem com aquilo que não poderia deixar de ser noticiado. Como esse tema foi abordado em um dos veículos mais respeitados pela sociedade, ou pelo menos, por parte dela?

Como dita o estereótipo do bom jornalismo, a matéria da Folha apresenta uma fachada de imparcialidade e pluralismo — com quase a mesma quantidade de fontes contra e a favor do projeto de licenciamento ambiental aprovado na Câmara. Além de uma pessoa no meio-termo, claro. Em números exatos, três das fontes compõem o enunciador a favor, enquanto quatro seguem o enunciador contra. Isso sem contar o jornalista que escreveu a matéria, que a princípio deveria ser “isento”.

E a votação na Câmara? 122 votos contra a medida — e 300 a favor. Vale ressaltar.

Os dados apenas servem para mostrar como, mesmo em um veículo tradicional e consagrado no meio jornalístico, a matéria apresenta uma narrativa por cima dos acontecimentos noticiados. E isso não é ruim. Contanto que jornalista e público estejam cientes. Por quê? Porque um jornalista é tanto um agente modificador quanto é um observador da realidade.

O jornalismo sempre apresenta um determinado recorte da realidade. Fonte: Pine Watt

Para um entendedor da profissão, o recorte — ou framing — é claro. Além do maior número de fontes (e de aspas) contra a proposta, o jornalista ainda inclui duas figuras: árvores caídas, natureza destruída. No entanto, para o grande público, especialmente aquele que segue o veículo religiosamente há anos, a posição da matéria pode não ser tão cristalina; afinal, não há nenhum adjetivo que escancare o desagrado do jornalista à respeito do projeto de licenciamento ambiental — e isso potencializa seu efeito influenciador.

Com o poder de modificar a opinião do seu leitor, vem a responsabilidade do jornalista — o que o torna longe de ser “isento”, no sentido estrito da palavra. Trata-se de uma via de mão dupla, pois cabe ao jornalista ser honesto quanto ao recorte da realidade que ele usa para compor seu texto, assim como deveria caber ao leitor entender que as matérias as quais tem acesso devem servir apenas para ajudá-lo a construir sua visão de mundo.

Mas, se houvesse uma forma dos jornais comunicarem ao leitor que aquilo que lêem é apenas um recorte da realidade, uma interpretação dela, o jornalismo teria a mesma influência na opinião e no conhecimento da sociedade? Se o estereótipo do bom jornalismo isento cai por terra — por sua própria impossibilidade — , qual pode ser a prática do jornalismo responsável? Fica aí a pergunta.

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Raquel Kie Oshio
singular&plural

Escritora amadora. Artista. Jornalista em formação. Cristã até o último átomo da minha existência.