Nosso Humor, Nossa Arma

Bolívar Escobar
Sobre Comédia
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5 min readJan 16, 2015

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Os primeiros dias do mês de dezembro de 1984 acabaram sendo marcados na história como a data da tragédia de Bophal. A cidade indiana era sede das instalações de uma fábrica de pesticidas da Union Carbide India Limited. O vazamento dos produtos tóxicos começou pela madrugada do dia 2 e, no fim, a tragédia contabilizava mais de 2 mil mortos. As consequências perduram até hoje: boa parte da água da cidade se tornou imprópria para o consumo, diversas pessoas ficaram desabilitadas por causa da contaminação (mais de 120 mil!) e até hoje as substâncias abandonadas nas ruínas da fábrica continuam a poluir o solo e o sistema de abastecimento de água de Bophal. Muitas empresas multinacionais decidem construir filiais em países subdesenvolvidos por causa de sua fracas leis trabalhistas e ambientais. Isso não tem nada a ver com comédia.

Em 2001, a Union Carbide foi comprada pela empresa americana Dow Chemical Company — que viria, em 2009, a se tornar a terceira maior empresa de manufatura de produtos químicos do mundo. Isso é grana. A Dow Company não tomou nenhuma providência em relação à Bophal até hoje. A cidade continua a sofrer com as sequelas da tragédia e apenas 8 ex-membros da antiga Union Carbide foram presos — e soltos após pagas as míseras fianças de 2 mil dólares em seus nomes.

O que fazer pela vida desses humanos miseráveis? Eis que em 2004, o porta-voz da Dow, Jude Finisterra, apareceu na BBC em uma entrevista ao vivo por causa do “aniversário” de 20 anos da tragédia. Quando indagado sobre a situação na cidade indiana, Jude, alegremente, afirmou que a empresa havia decidido fechar a Union Carbide e investir os 12 bilhões de dólares resultantes da venda em políticas sociais para Bophal. Duas horas depois, a bolsa de valores de Frankfurt já anunciava que a Dow valia 2 bilhões a menos no mercado. Pouco depois, a multinacional emitiu uma nota declarando que o pronunciamento do porta-voz era um trote.

Jude Finisterra era, na verdade, Andy Bichlbaum: um dos ativistas integrantes do grupo Yes Men, engajado em culture jamming e em fazer ações para levantar atenção para razões sociais consideradas urgentes por eles. Os principais alvos do Yes Men, nos dois filmes que lançaram até agora (você pode assistir um aqui no youtube), têm sido as grandes corporações que se aproveitam sonegando impostos ou explorando os desfavorecidos. É uma espécie de ativismo, um humor bastante engajado politicamente e bastante perigoso — em 2012 o Yes Men descobriu que estava sendo monitorado justamente pela Dow por causa do incidente de 2004.

Muita conspiração e paranóia: a “comédia” propagada pelo Yes Men não tem graça. Ou pelo menos não deveria ter, mas acaba arrancando risos pela ousadia e, no fim das contas, heroísmo da dupla. Intervenções como a SurvivalBall (uma roupa capaz de te manter protegido em caso de guerras nucleares, com garras capazes de sugar os nutrientes de uma vaca) ou o documentário-trote sobre Milton Friedman tornam-se engraçadas no fim não pelo resultado, mas sim porque revelam a hipocrisia e os interesses sujos de pessoas muito mais poderosas que nós — mas que estão ali, naquele momento de comédia, se expondo.

O humor surge então, como mencionaria Kurt Vonnegut em “Um Homem Sem Pátria”, em uma de suas formas mais nobres: como uma defesa. Acabamos rindo porque, ao que tudo indica, rir de algo nos deixa maiores do que esse algo, mesmo sendo a grandeza esse algo tão distante. “O humor é uma maneira de mostrar como a vida pode ser horrorosa, de se proteger. No fim, você simplesmente fica cansado demais, e as notícias são muito ruins, e o humor não funciona mais” diz ele, nesse seu último livro.

O ponto de interesse aqui é a forma como o Yes Men traz uma antiga forma de humor aplicada desse modo tão nobre: a chacota. Vulgo, tirar sarrinho de alguém, apontar, falar “seu trouxa” e depois rir, tocar a campainha da Exxon Mobil e sair correndo. Pelo fato do alvo desse humor ser o “poderoso” e quem ataca ser o lado mais fraco, como platéia somos muito impelidos a posicionarmo-nos como parte desse lado mais fraco. Rir torna-se um dever. É como descobrir que você está vivendo em um universo Orwelliano e poder colocar uma tachinha na cadeira do seu opressor sem ele perceber.

É claro, a questão exigiria um aprofundamento sobre quem é bom e quem é mau, quem merece ou não a nossa chacota, se o homem é o lobo do próprio homem e etc, mas tome por exemplo Joseph Heller em sua obra-prima, “Catch-22”: o comportamento dos personagens evidencia um claro clima de ironia e tiração de sarro em torno do elemento antagonista presente durante o decorrer da história: a guerra. Em determinado momento, o Capitão Yossarian pede para ser enviado de volta para casa por achar que está louco e não pode mais pilotar seu bombardeiro durante a Segunda Guerra mundial. Justamente por isso, o médico se recusa a dar a carta de aposentadoria: “Orr would be crazy to fly more missions and sane if he didn’t, but if he were sane he had to fly them. If he flew them he was crazy and didn’t have to; but if he didn’t want to he was sane and had to” — vulgo, ter noção de que você é louco significa estar são, e se você está são, você pode continuar na guerra, apesar disso ser uma loucura.

Esse exemplo nos faz refletir: sabemos que a guerra é uma coisa ruim. O humor “chacota” poderia, então, funcionar como uma bússola no estilo “tá vendo aquilo ali? É possível rir daquilo porque, apesar de parecer algo assustador e medonho, no fundo pode ser tão ridículo quanto nós mesmos”.

E, claro, apenas para dar um toque final, isso nos dá liberdade para rir de qualquer coisa, seja de forma justa ou sádica. É uma faca de dois gumes, mas é um dos poderes do riso. É quase uma arma — cabe a nós decidir contra quem quem apontá-la, como nos mostrou Rafucko e sua sátira aos telejornais da televisão que cobriram os protestos da semana passada pelo Brasil.

Originalmente publicado em sobrecomedia.com em 24/06/ 2013.

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Bolívar Escobar
Sobre Comédia

Só vim dar uma olhada, já vou embora (textos sobre séries e filmes contém spoilers).