Sobre Key & Peele

Eduardo Branco
Sobre Comédia
Published in
6 min readJan 15, 2015

Monty Python marcou época e é considerado uma das maiores influências na comédia atual. Saturday Night Live está no ar há quase 40 anos e ajudou boa parte dos atores dos filmes de comédia de maior sucesso dos últimos anos a alcançar a fama. Porta dos Fundos está aí fazendo essa revolução toda que vocês estão vendo na maneira como o humor brasileiro está sendo produzido, consumido, distribuído, processado, ameaçado de morte, e etc.

Programas de esquetes têm uma importância muito grande na cultura da comédia. Um dos recursos mais utilizados nesse estilo é pegar uma ideia e levá-la à lugares extremos, onde o absurdo e o ilógico são os catalisadores da situação cômica e do riso. Saber o ponto certo até onde se pode esticar uma premissa antes que ela se arrebente e leve embora consigo toda a graça que possuía durante sua concepção não é tarefa fácil, daí o hit and miss característico do gênero.

A comédia vem sendo usada há tempos nos EUA como discurso ativista na ajuda da conquista dos direitos dos negros, e o Thiago até escreveu um pouco sobre isso nesse texto. Porém, num passado recente foram poucas as séries de esquetes que se posicionaram firmemente em relação à esse tema tão relevante. Eu consigo lembrar de apenas duas¹:

In Living Color (1990–1994) — Série exibida na Fox e criada pelos irmãos Keenen e Damon Wayans. Tinha o elenco composto em sua maioria por negros. O nome inclusive era uma provocação aos programas que tinham seu elenco formado quase somente com gente branca, como o Saturday Night Live, pois é uma alusão à mensagem que a NBC anunciava nos anos 50 e 60 quando iria exibir um programa em cores. In living Color ajudou a tornar famosos atores até então desconhecidos do público, como Jim Carey e Jamie Foxx.

Chappelle’s Show (2003–2006) — Série exibida no Comedy Central e criada por Dave Chappelle e Neal Brennan. Foi um dos maiores sucessos que o canal já teve com um programa que trouxesse um material tão provocador, desde a estreia de South Park. Depois de apenas três temporadas Dave Chappelle decidiu inesperadamente não continuar com o show, deixando os executivos do canal e os fãs descacetados da cabeça. De lá pra cá o Comedy Central não havia apostado em nada parecido, até que no início de 2012 decidiu usar a seguinte peça como parte da campanha promocional de seu mais novo programa do gênero:

Key & Peele: Se você não assistir, é racista!

Key & Peele é protagonizado por Keegan-Michael Key e Jordan Peele, dois comediantes que haviam trabalhado juntos durante 6 temporadas na série MADtv (que também era de esquetes), e que se conheceram anos antes quando faziam parte de grupos de improvisação. Tanto tempo trabalhando juntos e o background que possuem na comédia de improviso são refletidos na boa atuação e, principalmente, na interação que os dois apresentam em cena.

Quando comecei a acompanhar o humorístico, ainda em 2012, minha primeira surpresa foi reconhecer Keegan como o apresentador das “vídeo cassetadas engraçadas de animais” que passavam no canal Animal Planet nas tardes de sábado. A segunda surpresa foi perceber que em algum momento da minha vida eu fui um cara que assistiu sozinho nas tardes de sábado as nem tão engraçadas assim “vídeo cassetadas engraçadas de animais” tempo o suficiente pra lembrar da fisionomia do apresentador, em vez de estar fazendo outra coisa mais proveitosa da vida.

Pelo apelo racial e por também ser produzido pelo Comedy Central as comparações com o Chappelle’s Show são inevitáveis, porém justificáveis, já que o estilo de apresentação entre uma esquete e outra — onde os dois fazem uma mistura de stand up com improviso e interação com a plateia presente no auditório — também é muito parecido.

Mas não é justo que Key & Peele fique à sombra do Chappelle’s Show. Se Dave Chappelle tinha Paul Mooney como Negrodamus — o Nostradamus negro, Key & Peele têm Luther, o intérprete nervoso que tenta expressar a agressividade escondida por trás da parcimônia dos discursos do presidente Barack Obama.

O humor racial que Key e Peele fazem nas esquetes é excelente por que na maioria das vezes vai além daquele “black people do this x white people do that” que tanto se vê por aí. Esse recurso é muito utilizado por eles quando estão ao vivo com a plateia, o que de vez em quando me faz querer pular essas partes e ir direto pras esquetes, mas no geral eles acertam bastante e parecem entender que não dá pra agradar muito ou se sustentar por muito tempo sendo monotemáticos. Graças a isso conseguem fazer esquetes com críticas sociais, ou totalmente neutras de conteúdo racial ou social, que também são muito engraçadas.

Num cenário onde a inclusão de uma mulher negra no elenco do Saturday Night Live ainda levanta polêmica e precisa ser discutida mesmo passados mais de 20 anos das alfinetadas de In Living Color, um programa como Key & Peele se faz muito necessário, ainda mais por ser tão engraçado.

O racismo estrutural no Brasil acontece de uma maneira bem mais velada e ainda existe uma resistência muito grande de vários setores da sociedade em discutir esse assunto. Por conta disso a tensão e o separatismo racial acabam sendo visivelmente bem mais acentuados nos EUA do que aqui, e muito melhor explorados para fins humorísticos também. Não quero parecer o Ali Kamel e dizer que aqui não existe racismo, isso é burrice, mas Key e Peele até citam o Brasil nessa entrevista para a GQ como exemplo de um local onde a questão social tem mais peso como fator segregacional do que a racial. Tudo bem que eles formaram essa opinião depois de assistirem o filme Cidade de Deus, mas a nossa realidade não é tão diferente assim da deles.

Key & Peele já teve três temporadas, e possui uma quarta confirmada com estreia para setembro de 2014. Muitas esquetes estão disponíveis no site do Comedy Central, outras podem ser vistas no seu canal do Youtube. Aliás, acredito que os vídeos do Key & Peele são responsáveis pela maior quantidade de acessos do canal, e até por isso não consigo entender o motivo do Comedy Central Brasil ainda não ter exibido o programa, mas ter colocado em sua grade séries como The Michael J. Fox Show ou ¡Rob!, shows tão ruins que antes da estreia todo mundo já sabia que seriam cancelados.

Essa esquete não tem nada a ver com a conclusão do texto, mas gosto dela e acredito que seja uma das mais populares deles no Youtube. Também recomendo assistir essa, essa, essa, e acho melhor parar ou senão isso aqui vai ficar enorme.

- ¹ Pensei em incluir o The Chris Rock Show nessa lista, mas vi que ele se enquadra na categoria de Late Night com esquetes, por que trazia sempre um entrevistado e um convidado musical. –

P.S.: Deixando um pouco de lado a questão racial e voltando a uma discussão bastante recorrente no Sobre Comédia: a importância do roteiro pra qualidade de um programa; decidi transcrever aqui um trecho da mesma entrevista que Key e Peele concederam para a GQ, onde Jordan Peele fala sobre o processo de escrita do show:

GQ: Como é o processo de escrita de vocês? Acontece muita improvisação? Jordan Peele: Nós tivemos um dos mais luxuosos processos de escrita possíveis. Tivemos 13 semanas onde nos reunimos com os melhores amigos e roteiristas que pudemos encontrar, 8 roteiristas no total. E nós ficamos numa panela de pressão de comédia. Escrevemos mais de 260 esquetes, pra que no final ficassem reduzidas a 54. Keegan e eu gostamos de tentar nos preparar para não falhar, e parte do sucesso em qualquer coisa é gastar tempo o suficiente nessa coisa.

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Originally published at sobrecomedia.com on March 18, 2014.

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Eduardo Branco
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desenho e escrevo. não necessariamente nessa ordem