Sobre a Decadência

Raul Kuk
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4 min readAug 10, 2016

Um dos meus maiores medos é a perda da memória. Ir, pouco a pouco, esquecendo rostos, nomes, lugares, eventos e começar a lembrar com detalhes do meu tempo de serviço no Vietnã e na Coreia (essa última parte, tecnicamente, não seria “perda” da memória, tá mais pra senilidade pura e simples). Mas a lenta marcha dos neurônios rumo à entropia, como lemmings pulando do precipício, é inevitável — a menos que a gente morra antes, mas aí esquecer se deixou a torneira da cozinha aberta — ou até como foi parar de cuecas no meio do culto da Universal, acompanhado de uma anã barbada e com uma severa crise de urticária — vira uma preocupação muito pequena.

O envelhecimento, ou a decadência das células, é um processo natural do corpo humano, não muito bem explicado pela ciência. Ciência essa que não explica o fato do centro da Terra ser tão quente quanto o Sol, o que é a gravidade, porque bocejamos… Na verdade, a ciência não explica muito bem quase nada. O que esses cientistas ficam fazendo com o dinheiro dos nossos impostos, afinal, que não são capazes de inventar um imã de geladeira que avisa quando a cerveja está acabando!? Bom, talvez eles tenham esquecido.

Eu tenho uma relação conflituosa com minha memória. Esqueço muita coisa com facilidade, outras eu tento me apegar com unhas e dentes e há aquelas das quais não me livro por mais que me esforce. Por exemplo, daqui cinco minutos eu vou me esquecer completamente que você já leu esse artigo e vou indicá-lo outra vez como se fosse uma grande novidade. Mas vou lembrar do seu olhar complacente, pensando enquanto me ouve: “eu já sei, cara. Eu já sei.” Eu lembro cada nota de cada música em cada disco do Guns n’ Roses (ok, não são tantos assim), sei todos os diálogos de Exterminador do Futuro 2, cada desenhista que já passou pelo Batman, mas sou terrível pra me lembrar de compromissos agendados, de agendar compromissos ou pra que serve uma agenda.

Aliás, não lembro nem do que falava quando comecei esse texto.

Dizem que os elefantes não esquecem, o que deve ser muito desagradável. “Dumbo, você pisou no meu pé!” “Mas Jotalhão, isso foi vinte e dois anos, quatro meses, oito dias, seis horas e quarenta minutos atrás!” “Mas eu nunca vou esquecer…” Por outro lado, uma vez que esses paquidermes rancorosos ouvem Michel Teló, eles são obrigados a passar o resto de suas existências com aquelas melodias hediondas na cabeça. Karma instantâneo. Não sei se eu conseguiria viver com isso.

Bom, se a decadência é inevitável, nada como abraçá-la como uma velha amiga — afinal, o processo começa quando nascemos. Cada dia a mais é um dia a menos e precisamos lidar com isso da melhor maneira possível. Há toda uma indústria pra isso. Creme anti-rugas, tinta para cabelo, maquiagem, peruca, cirurgia plástica. Essas coisas nos dão a nítida sensação de que, simplesmente, não adianta. Somos todos uma versão real do Mumm-Ra (me refiro à “forma decadente”, não ao “de vida eterna”), em maior ou menor grau. Uns mais feios, mas não importa. Com sorte, vai chegar aquele ponto das nossas vidas em que não vamos nos lembrar mais como eramos bonitos quando mais jovens, como todas as nossas atividades biológicas funcionavam em perfeita sincronia, como eram alimentos com tempero, que sabor tinha misturar coca-cola com café, como era lembrar de ir no banheiro, ou lembrar PRA QUÊ a gente vai no banheiro, afinal.

Claro, não são só os neurônios. Os rins entram em decadência, fígado, intestino, estômago, pulmões, coração… Acho que essas coisas simplesmente ficam de saco cheio e pensam “quer saber? Não vou pro escritório hoje.” Já os neurônios são aquele cara que trabalha até o último minuto — ainda que esse último minuto possa chegar bem antes de o resto do corpo perceber.

Certeza que, houve um dia, em 1935, que uma esposa perguntou para o marido:

- Querido, você deu comida para o gato?
- Dei sim, querida.
- Então cadê ele?
- Ele quem?
- O gato!
- Que gato?
- O nosso! Querido, qual comida você deu pro gato?
- A dele, ué!
- Você não confundiu com aqueles átomos radioativos e venenos que usa nas suas experiências?
- Não, querida. Eu coloquei rótulo em tudo.
- Então onde você viu o nosso gato pela última vez?
- Na caixa onde deixei a comida dele.
- Mas você guarda átomos radioativos e venenos dentro daquela caixa!
- Então espero que ele não fique lá dentro muito tempo…
- Erwin Schrödinger! Nosso gato está vivo ou está morto!?
- Bom… Antes de abrir a caixa, você deve considerar o gato morto e vivo simultaneamente.
- …

Estou pensando seriamente em usar isso pra justificar todos os meus esquecimentos. As coisas podem ser e não ser, simultaneamente, até que alguém me questione sobre elas, quando vou poder dizer que abrir essa caixa pode não trazer o resultado aguardado. É imprevisível! Como vou saber?

Só espero lembrar da explicação enquanto meus neurônios lentamente caminham rumo à extinção. Como os elefantes, ou os cientistas distraídos.

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Raul Kuk
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