Sobre Amantes Envergonhados

Raul Kuk
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5 min readOct 4, 2016

Quem me conhece pouco, acha que não sou nada tímido. Quem me conhece bem, também. Só quem me conhece muito bem sabe que sou desgraçadamente tímido, em níveis que chegam a prejudicar meu convívio social. Eu mato um leão por dia pra conseguir me misturar com a espécie humana, essas criaturinhas feias e cheias de pêlos em lugares errados. Aliás, minha vergonha diante dessa espécie é tão grande que, às vezes, rezo pra ser abduzido e levado para outro planeta, onde eu poderia ficar num zoológico para apreciação do público extra-terrestre.

(E, em um zoológico, sempre existe a possibilidade de reprodução em cativeiro. Mas acho que, mesmo assim, não ia dar certo — é reprodução assistida.)

Eu também tenho muita vergonha de falar da minha vida pessoal em redes sociais. Quem me segue no fêisse (HAHAHAHAHA QUEM SE IMPORTA?) já deve ter notado que não sou de falar muito sério. Uma máscara social de sujeito cool e descolado que, na verdade, joga uma cortina de fumaça sobre meus limitados traquejos sociais. Me coloca em situações embaraçosas, como quando as pessoas ficam esperando que eu seja um sujeito espirituoso e bem humorado o tempo todo. Não rola, amigos. Desculpem essa cobra velha e azeda. Sou muito rabugento e, bem lá no fundo, eu fico é torcendo pra peste negra voltar a assolar a humanidade (e, por alguma estranha ironia do destino, eu ser imune a ela).

Relacionamentos são diferentes. São como campos de batalha, uma hora você precisa deixar de ser tímido, tem que deixar a vergonha pra lá e partir pra luta. Se não, já viu. Até a mitologia trata de tentar empurrar os tímidos para essa peleja fria e desoladora. Os gregos falavam de um filho de Zeus chamados Kairós, o “deus das oportunidades” (é, eles tinham deuses pra tudo. Cabide de emprego.) Kairós era calvo, exceto por um tufo de cabelos na testa: quando a oportunidade se aproxima, nós temos que aproveitar e agarrá-la. Depois que ela passa, já sabe: ele é careca. Não tem por onde segurar uma oportunidade perdida.

Entre os romanos, ele era chamado de Tempus, aquele breve e fugaz momento em que as coisas são possíveis, em que temos que decidir se aquela oportunidade é nossa, se vamos escrever um novo capítulo em nossas vidas, se nosso destino nos pertence. Khronos representava o tempo cronológico, o ciclo da vida, o velho tirano que a tudo governa. Kairós era a oportunidade de derrotar o tirano.

E, meus amigos, quantas oportunidades perdi.

Obviamente sou tímido demais pra falar de minhas desilusões amorosas. Algumas são bem engraçadas — até que eu lembro que aconteceram comigo. Mas foram o espírito de sua época, um reflexo da maneira como eu me relacionava com as pessoas de modo geral, sendo tímido e retraído. Eu até podia começar uma conversa, arrumar um ou outro pretexto, mas invariavelmente eu chegava àquele beco sem saída de ter que fazer alguma coisa — ou lá iria embora Kairós com seu topete de pagodeiro me lembrando que aquela oportunidade estava irremediavelmente revogada. Não é que eu não fizesse nada, de jeito nenhum. Muitas vezes eu realmente fazia algo (errado). Mas é aquela coisa: melhor se arrepender de ter tentado. *

A internet e seu infindável número de redes sociais parece ser uma solução para os tímidos e envergonhados, mas a verdade é que ela não substitui o “contato direto”, digamos assim. Claro, uma hora alguém vai inventar uma rede social em que você não precisa se cadastrar com seu nome verdadeiro, não precisa usar uma foto sua de verdade, não precisa dizer a verdade sobre sua aparência e pode marcar encontros — para os quais não irão. Lembrem-se, a ideia é facilitar a vida dos tímidos, e não colocá-los em situações que os exponham, como, digamos, um encontro de verdade.

Encontros às escuras também são uma oportunidade interessante de tirar os mais acanhados de suas zonas de conforto e forçá-los a encarar a possibilidade de ter um relacionamento de verdade. Bastam alguns amigos darem o “certificado de qualidade” (“Não, essa pessoa é legal, sim. O que? Bonita? Ela é muito legal!”) e você já pode marcar o encontro — de preferência em um local bem distante da civilização. É mais ou menos como o zoológico alienígena que falei lá em cima. Sério, quem vai num encontro às escuras? Apenas espiões, eu presumo. “Não me procure, eu procuro você.” “Ok, mas qualquer tentativa de contato se autodestruirá em cinco segundos.”

(Aliás, por motivos de adequação ao politicamente correto, alguém já pensou em mudar o nome do “encontro às escuras” para algo que passe uma ideia melhor da situação? Sei lá, tipo “dois idiotas desesperados”?)

Na verdade, o maior problema de um encontro às escuras são as regras de convivência social que nos impedem de falar a verdade nua e crua, tipo: “Olha, desculpa, você parece ser uma pessoa muito legal, mas é feia pra diabo”. “Ah, não tem problema, você até que é bonitinho pra um imbecil.” Simplesmente não vai acontecer. Sabe por que? Exato. Tímidos demais pra falarem a verdade. Então acabam agarrando uma oportunidade que não era nem pra existir em primeiro lugar. “Ah, os meus amigos se esforçaram tanto pra eu encontrar esse cara… Vai ficar chato se eu disser que não namoro com ninguém que pese o dobro ou mais do que eu.”

Pra não correr esse tipo de risco, eu decidi que não perderia mais oportunidades, mas acreditem: é matar um leão por dia. Se você vê algo que acha bom, bonito, diga. Se vale a pena, entregue uma flor. Como diria Buda, toda jornada começa com o primeiro passo. O que ele não disse é que este passo é o mais difícil. Então devemos encarar todos os passos como o primeiro, todos os dias como o mais importante, cada oportunidade como única e preciosa.

Claro, o pacote inclui negativas, decepções, desilusões, um pouco de sofrimento aqui, um arrependimento ali. Mas compensa. Não devemos desistir de nossos sonhos por causa de um pesadelo. Como dois amantes tímidos, que passaram horas sentados um ao lado do outro, esperando por um gesto, uma palavra. Uma iniciativa, que nunca vinha. Até que pode chegar um momento em que eles percebam, tarde demais, que sentem vergonha por estarem sozinhos.

O presente é tudo que temos, realmente.

* = há controvérsias.

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Raul Kuk
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We’re just stories in the end. Just make it a good one, huh?