Sobre Artes Marciais

Raul Kuk
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7 min readOct 17, 2016

Quando eu tinha aí meus 13 anos, um dos meus grandes passatempos — além de ler gibi — era ir ao cinema. Aqui em Suzano ainda tínhamos uma sala de cinema, o Cine Saci, de reputação duvidosa e clientela idem. Como ainda não havia shopping center na cidade, era isso ou ir pra São Paulo, mas eu gostava de ir no cinema depois da aula, às quartas-feiras, por ser dia de pagar meia-entrada. Então, imagine só, única sala da cidade, eles precisavam exibir filmes que tivessem retorno garantido. O Exterminador do Futuro 2 ficou dois meses em cartaz, o que me levou a ir no cinema oito quartas-feiras seguidas¹.

E poucas coisas faziam mais sucesso na época que os filmes do astro de ação Jean-Claude Van Damme. Hoje eu até suspeito que seus filmes iam direto pra vídeo lá fora e só aqui no Brasil eram exibidos no cinema. Bom, tinha público pra isso e eu estava lá todas as quartas pra assistir a clássicos como O Grande Dragão Branco, Cyborg — o Dragão do Futuro, Kickboxer, Garantia de Morte, Leão Branco — o Lutador Sem Lei, Duplo Impacto, Soldado Universal, Timecop… Hoje sequer posso garantir ter visto todos no cinema — eu tenho um probleminha de memória que relatei aqui — mas achava ótimos e ainda assisto sempre que posso.

“I fuckin’ love COCAINEEEE”

Uma das coisas que mais impressionava eram as habilidades de Van Damme pra luta. Claro, muita coisa no cinema é coreografada, montada pra parecer ainda mais espetacular. Mas conseguíamos algumas informações a conta-gotas (lembrem-se, eram tempos pré-internet) e ficávamos sabendo que ele era realmente um campeão de karatê de reputação internacional, detentor de títulos e recordes. Quem não queria lutar como ele?

Foi somente anos mais tarde, contudo, que fui convencido por uma amiga minha, a Tatiane, a praticar tae kwon do. Uma arte marcial que nunca tive interesse, mas mostrou-se formidável, um estilo de luta dinâmico e que combinava com meu biótipo. Por ser alto e ter pernas compridas, eu tinha a vantagem de manter distância dos adversários e ainda poder agredir, já que o combate é 90% chute. Treinei por dois anos, praticamente de segunda a sábado (cheguei a treinar alguns domingos pela manhã, mas não rendia tanto), com um número muito pequeno de faltas. A única sequência de faltas que tive, na verdade, foi por causa de uma nevralgia que me mandou pra fisioterapia por um curto período, nada grave. Acabei fazendo muitos amigos no tae kwon do, inclusive o Mestre Ogata, hoje árbitro de reputação internacional.

Os protetores indicam onde você NÃO deve bater.

Algum tempo depois, outro amigo meu, o Ednei, me convenceu a praticar wushu, uma modalidade do kung fu — estilo de luta que nunca tive interesse até, claro, começar a praticar. O wushu foi desenvolvido para ser uma arte marcial eficiente e bonita, com toda aquela filosofia de movimentos baseados na natureza. Eu treinei por cerca de um ano, mas com várias pequenas interrupções — boa parte delas por ter as solas dos pés muito finas, já que não tenho o hábito de andar descalço, e eles abriam com o atrito do piso. Mas de modo geral, praticava com bastante disciplina e o Mestre Paulo Zancanelli se tornou um grande amigo.

“Go, go, Power Rangers…”

Depois disso, pratiquei jiu-jitsu por cerca de seis meses, convencido por um médico com quem trabalhei, o Dr Hiroshi. Pra ser bem sincero, eu não tinha a menor vontade de treinar jiu-jitsu (como você já deve ter presumido), por ter uma visão completamente estereotipada do estilo. Era a época das gangues de “pit-boys”, marginais que aprendiam alguns golpes e iam arrumar briga na rua. O que eu não fazia ideia é da quantidade de técnicas que envolvem o jiu-jitsu, um negócio realmente impressionante. Todo aquele atracamento no solo envolve disciplina, técnica, concentração e seriedade num nível que me deixou fascinado. Não é à toa que muitos lutadores de MMA se especializam em jiu-jitsu, pois é uma forma de combate muito precisa, chega a ser cirúrgica. Nenhum movimento é desperdiçado. Curiosamente, meu biótipo se adapta bem à modalidade. Infelizmente, pratiquei por muito pouco tempo, mas ainda penso em voltar.

A milenar técnica da pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose

Uma coisa engraçada sobre as artes marciais é que, sempre que eu ia estudar a história de qualquer uma elas, havia aquela série de lendas e mistérios envolvendo suas origens. O tae kwon do pode ter origens em outras artes marciais da época da Coreia imperial, ou se misturado com o karate. Os primeiros registros sobre o kung fu são de 4400 anos antes da era cristã e o próprio jiu jitsu pode datar cerca de três mil anos atrás. Mas o curioso é notar como todas as artes marciais, incluindo-se aí o sumô e o krav magá, possuem histórias que as colocam como a primeira, que deu origem a todas as outras. Isso é só um detalhe, claro. O que elas possuem de mais nobre é a filosofia, o fato de não ser a luta pelo combate em si, mas toda a aura de aprender a lutar pra não ter que lutar, um paradoxo que apenas ressalta a força espiritual que uma luta praticada com seriedade pode trazer.

Tem um filme de artes marciais que adoro, chama-se Best of the Best. Eu o descobri na época que lutava tae kwon do e, apesar de esse ser o estilo apresentado, no filme só se fala em karate (porque pra americano é tudo karate). A história é o supra-sumo do clichê das artes marciais: num torneio secreto, um nobre lutador americano é morto pelo vilanesco rival do Oriente. O irmão caçula do falecido passa a treinar com afinco para entrar nesse torneio e vingar sua morte.

Chega o final do filme, o caçula finalmente cara-a-cara com o carrasco de seu irmão, tem em seus punhos e pés a chance não só de definir o título, mas de vingar o falecido. Dá uma surra no rival e, quando está prestes a dar o golpe de misericórdia… desiste. Não mata o rival e a equipe americana, pasmem, perde o título mundial.

Na hora da entrega das medalhas, o lutador vilão oriental tira a medalha do próprio peito e a entrega ao lutador que deixou de vencê-lo para não se tornar um assassino, dizendo algo como “salvar uma vida na derrota é conquistar a vitória com honra. Eu lamento sua perda e me arrependo do que fiz, então me ofereço para ser seu irmão.²”

Sim, tem um lutador usando chapéu de cowboy

Toda a filosofia, toda a nobreza que envolve a prática de artes marciais, é verdadeira. Qualquer que seja ela, pode ser boxe, muay thai, capoeira, hap ki do… Todas elas oferecem, cada uma a sua maneira, uma possibilidade de iluminação e auto-conhecimento inestimável. Muitas vezes minhas aulas de wushu eram completadas com treinos de tai chi chuan. E a gente suava muito mais fazendo os lentos movimentos do tai chi chuan do que repetindo as formas do tigre ou da serpente do wushu. Aprendi a respeitar praticantes e professores, e até a querer um pouco disso de volta na minha vida enquanto escrevia essa crônica. Talvez sirva de inspiração e eu pare de adiar. A única certeza que tenho é que não gostaria de ir sozinho.

As minhas experiências sempre envolvem pelo menos um amigo meu no começo, e vários novos amigos no final. Essa acabou sendo a parte mais marcante pra mim. Você precisa confiar muito na pessoa que está à sua frente, treinando com você, pois eventualmente pode rolar um soco ou chute mal colocado que resulte em escoriação, luxação, hematoma ou concussão (a única fratura que já tive na vida foi na falange proximal³ do anelar de um dos meus pés, nem lembro qual). Eu sinto falta dos treinos, das brincadeiras, dos combates, das histórias e filosofias, mas, acima de tudo, sinto falta de encontrar os amigos e ajudar e ser ajudado por eles a me tornar um grande homem — não um grande guerreiro.

Afinal, parafraseando Yoda, guerras não tornam ninguém grande. Amigos, sim.

¹ = Continua sendo o filme que mais vezes assisti no cinema e meu filme favorito até hoje.

² = Na verdade, foi exatamente isso que ele disse. Google, meus caros.

³ = Google novamente, claro.

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Raul Kuk
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We’re just stories in the end. Just make it a good one, huh?