Sobre Músicas Que Me Marcaram

Raul Kuk
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6 min readOct 26, 2016

Engraçado como, quando você tenta lembrar-se de músicas, há tantas opções brincando na memória que parece impossível uma em particular se sobressair. Eu podia fazer facilmente uma lista com mil músicas, mas só após me lembrar das primeiras três ou quatro.

Tem uma, entretanto, que parece gritar comigo. Não é a minha preferida, não é de meu artista favorito, não é a mais importante da minha vida mas é a que teve o maior impacto psicológico — ainda que negativo.

Em 1995, mais ou menos, minha vida estava bastante atribulada. Nessa época, o Metallica lançou seu infame álbum Load, sucessor do multiplatinado Black Album. Um dos singles desse álbum era Until It Sleeps, uma semi-balada melancólica e amarga. Nessa época eu ainda ouvia rádio e Until It Sleeps tocava com muita frequência. E ela fazia eu me sentir péssimo. Eu passei por uma série de problemas pessoais naquele ano, muitas cobranças e questionamentos que me apontavam para uma direção desesperançosa. Sem perceber, me vi mergulhando em uma espécie de niilismo, bem antes de saber o que isso significa, e passei a encarar a vida apenas como uma contagem regressiva para o nada. A sensação era terrível e essa música caía como uma luva para esse sentimento.

Apenas muitos anos mais tarde eu soube que a letra era sobre a luta da mãe de James Hetfield contra o câncer — e sobre a própria luta dele, a revolta e o inconformismo que vieram com a perda. Quando essa fase mais, digamos, “desagradável” passou, ainda naquele ano, eu fiquei uns bons dez anos sem ouví-la. Mas mesmo hoje eu acho uma música sombria, triste, perturbadora. Como se algo muito ruim estivesse ocorrendo ao meu redor, algo frio e claustrofóbico, mas não tão terrível quanto o que acontece por dentro, a agonia e o sensação de carregar a morte no peito.

Não sei como é possível uma música evocar tantos sentimentos, mas é exatamente esse o efeito que ela tem em mim. Nenhuma outra me soa tão negativa.

Felizmente, há músicas com um efeito mais positivo, otimista (pelo menos pra mim) e que contam um pouco da história da minha vida. Eu tenho uma música do Guns n’ Roses para cada fase da minha vida. E a primeira, claro, não podia ser outra senão Welcome to the Jungle.

Na época do segundo Rock in Rio, eu tinha aí entre 11 e 12 anos e a Rede Globo fazia diversas chamadas durante o horário nobre em que, além da canção-tema do festival, eles tocavam um riff de guitarra muito bacana. Naqueles dias, um amigo da minha irmã, o Roberto, veio aqui em casa pedir pra ela gravar dois discos para ele em fitas K7. Como minha irmã não era muito boa nisso, passou os discos pra mim e pediu que eu o fizesse. O primeiro se chamava Appetite for Destruction e, o segundo, Gn’R Lies. Sempre gostei de histórias em quadrinhos e a capa do Appetite era uma história completa em um quadro. Mas virando a capa do disco, tinha a foto de cinco cabeludos mal-encarados, caindo de bêbados, e eu pensei “COMO esses caras vão conseguir tocar alguma coisa?!”

Quando a agulha tocou o vinil, aquele mesmo riff de guitarra que a Globo usava nas vinhetas do Rock in Rio explodiu nos auto-falantes. E eu fui definitivamente fisgado.

Solos de guitarra, mudanças de tempo, bateria primal, gritos ensandecidos… Tudo perfeito, tudo no lugar certo, toda aquela cacofonia de sons e barulhos perfeitamente alinhada para dar forma a algo construído com precisão meticulosa, de forma a não deixar ninguém indiferente. A letra, que precisei me esforçar muito pra conseguir ler com o pouco inglês que eu tinha na época, era basicamente sobre chegar num lugar e se auto-destruir, sem arrependimentos, sem olhar pra trás, porque se você não fizer isso com você mesmo, o mundo o fará.

Difícil pensar em uma atitude mais rock and roll do que essa. Foi quando entendi a situação dos integrantes da banda na foto da contracapa.

Roubei o amigo da minha irmã, ouvimos muito Guns n’ Roses juntos. O tempo passou, perdemos o contato e acabei recebendo a notícia da morte dele. Ouvi Nightrain pelo amigo ausente.

Voltando àquela época, eu quis conhecer mais e mais bandas, ouvir mais e mais músicas. Meses depois, comprei um disco do Iron Maiden — apenas por causa da capa, é bom que se diga. Na verdade, todas as capas são muito boas, mas a simetria daquela era quase hipnótica. Chamava-se Powerslave.

A primeira música foi um soco na cara. A segunda, idem. A terceira… Até chegar na última: um épico de 13 minutos chamado The Rime of the Ancient Mariner, com a letra baseada em um poema de Samuel Taylor Coleridge escrito no final do séc XVIII. A história é assustadora: um navio se perdeu na região Antárctica, até que um albatroz apareceu e lhes indicou o rumo correto. Um marinheiro mata o albatroz e, apesar da revolta do restante da tripulação, o navio segue por águas calmas e eles se tornam “cúmplices” do crime. É quando eles encontram uma nau assustadora onde a Morte e a “Morte em Vida” disputam as almas dos marinheiros num jogo. A música tem momentos tétricos, mudanças de tempo e um clima que nos transporta para aquele navio, mais de duzentos anos atrás. Suas últimas frases ecoam na minha cabeça desde a primeira vez que a ouvi:

E o convidado do casamento é um homem mais triste e mais sábio

E o conto continua, e continua, e continua…

No começo desse ano, a morte de David Bowie me afetou bastante. Sou um fã tardio — como eu só ouvia metal, não me interessei de fato pela música dele por muitos anos. Então você dá uma chance para Alladin Sane, se arrisca com Ziggy Stardust, pede emprestada uma coletânea e voilá! Fisgado.

Algumas músicas me deram bons momentos em tempos difíceis. Outras me deram insights em dias inacreditavelmente bonitos. Honestamente, nem sou tão fã assim das músicas dele, apesar de ter ouvido todos os discos. Admiro o artista que tentou fazer diferente, procurou sempre se reinventar, sem medo de correr riscos. Bowie era um gênio e, sem ele, a música que a minha geração gosta teria sido um pouco menos divertida (e incluo aqui até mesmo Iron Maiden e Guns n’ Roses).

E mesmo o fã de metal em mim precisa admitir que Bowie era the man. Um Timelord, sem a menor dúvida. Changes, As the World Falls Down, Heroes, Under Pressure, Life on Mars?, Jean Genie e, principalmente, Starman, bem como todo o álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars.

Foi uma história de amor. Eu pensava nela quando ouvia Bowie, ainda penso e creio que sempre vá pensar. Mesmo antes de me apaixonar, lembro de ter ouvido Changes e ter mandado o link para ela. “Eu estava justamente pensando nessa música!”, ela respondeu. Alguns meses depois fomos à exposição sobre Bowie no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Tinhamos começado a namorar fazia pouco tempo.

Eu nunca disse pra ela o quanto eu achava que Bowie tinha a ver com a gente (acho que, no fundo, ela sabia). É praticamente uma música pra cada lembrança de momentos nossos, uma trilha sonora bem sutil, discreta. Eu não falo sobre isso, não divido esses momentos. Mas os guardo junto com todas as outras lembranças que tenho dela — e um pendrive com a discografia dele junto, just in case…

The hand that wrote this letter
Sweeps the pillow clean
So rest your head and read a treasured dream
I care for no one else but you
I tear my soul to cease the pain
I think maybe you feel the same
What can we do?
I’m not quite sure what we’re supposed to do
So I’ve been writing just for you

Essa é a grande diferença entre a música e qualquer outra forma de arte. Somente a música te leva de volta — e te lembra que o futuro ainda o aguarda, fazendo qualquer velha melodia parecer sempre renovada. Nós podemos lembrar de qualquer fase de nossas vidas baseados em filmes, livros, gibis… Mas os sentimentos, esses pertencem à música.

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Raul Kuk
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We’re just stories in the end. Just make it a good one, huh?