Sobre… Marvel na Netflix

Marcio Sampayo
Sobre
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9 min readOct 11, 2016
Damm, that looks great!

Eu sou péssimo com memórias. Boa parte das minhas lembranças de infância são um pouco mescladas com histórias que meus pais contam. Dizem que com três anos eu pulei o muro de casa para ir atrás dos meus irmãos mais velhos, que estavam jogando bola no campinho do bairro, ligeiramente afastado de casa. Quando meus pais estavam a ponto de chamar a polícia, por achar que eu tinha sido sequestrado (provavelmente pela gangue dos palhaços da Kombi branca), meu irmão mais velho chegou me arrastando pela mão.

Ele tinha esperado até acabar a partida de futebol que ele estava jogando, para me levar de volta pra casa.

Entre as poucas memórias que eu tenho com clareza, a maioria envolve super heróis. Eu tenho dois irmãos mais velhos, e eles já liam os gibis do Homem Aranha da Ebal e da RGE… Tínhamos aqueles bonecos da Gulliver, feitos de plástico duro, com os personagens da Marvel, e brincávamos durante tardes inteiras com eles.

Assistíamos aos desenhos (des)animados que passavam, ao seriado do Incrível Hulk e éramos completamento fascinados pela série do Homem Aranha. Tanto que eu tinha um uniforme completo do personagem, com uma máscara especial que minha mãe tinha costurado, e eu costumava usar por baixo da minhas roupas “civis”.

O tempo todo.

Em uma ocasião, talvez com cinco anos, talvez com seis (péssima memória, lembram) eu tinha dificuldade de fala, trocava o R pelo I ou algo assim, e ia a uma fonoaudióloga. Enquanto ela falava com minha mãe na sala de espera, tirei toda minha roupa civil (estava com o uniforme completo por baixo da roupa), coloquei a máscara do Homem Aranha e fiquei lá, agachado em cima da mesa dela, esperando. Quando ela entrou, dei um pulo, ela saiu correndo da sala assustada, eu tirei a máscara e coloquei toda a roupa de volta.

Minha mãe entrou correndo com a médica e eu, claro, jurei de pé juntos que o Homem Aranha tinha passado por lá, mas tinha saído pela janela.

Bons tempos.

Em outra ocasião, esta sim muito mais marcante, eu e meus irmãos estávamos no carro com minha mãe e minha avó, e minha mãe tinha que ir ao Banco pagar uma conta (sim, meninos… Antigamente não se pagavam as coisas pela internet, e ir ao banco era um compromisso quase que diário). Na frente do Banco tinha uma banca de jornal, meu irmão foi com minha avó para comprar alguma coisa para ela, e comprou para mim duas “revistinhas” que tinham sido lançadas naquele mês.

Era Julho de 1983. Eu faria oito anos em Setembro. As revistas eram Homem Aranha e o Incrível Hulk, número 1, da Editora Abril.

Formadores de caráter

Não é exagero dizer que os quadrinhos mudaram minha vida. Foi por causa dos quadrinhos que me tornei um colecionador. Foi para ler quadrinhos que eu aprendi sozinho a falar inglês. Foi para comprar quadrinhos em inglês que eu aprendi a andar de ônibus sozinho e ir até a esquina da Avenida Ipiranga com a São João, onde existia uma loja de comics chamada “Muito Prazer”, que tinha os “lançamentos” com apenas algumas semanas de diferença em relação aos Estados Unidos (a Abril publicava com uns dois anos de diferença). E tenho valores e conceitos que aprendi nos quadrinhos e apliquei e aplico até hoje na minha vida.

A partir daquela edição numero 1 que meu irmão me deu, nasceu em mim um colecionador. Não só mantive toda a coleção de formatinhos que a Abril lançou a partir dali, mas com o passar do tempo descobri as outras revistas que eles publicavam, como Capitão América, Heróis da TV e Superaventuras Marvel, e comecei a correr atrás das edições antigas, a garimpar sebos e conhecer TODAS as bancas de jornais que existiam no meu bairro, depois nos bairros próximos e, finalmente, mapeando as melhores bancas da cidade.

Diferente dos meus irmãos, por exemplo, que com o passar dos anos foram abandonando as revistas em quadrinhos, os super heróis permaneceram comigo até hoje. E apesar de acompanhar ocasionalmente as aventuras de Superman, Batman e da Liga da Justiça (eu aprendi inglês para acompanhar a repercussão da Morte do Superman), meu coração sempre teve dono. Ele pertence à Casa das Idéias provavelmente desde que coloquei os olhos nas aventuras de Peter Parker pela primeira vez.

Em Julho ou Agosto de 1987, do alto dos meus doze anos, comprei a leva de revistas mensais, fui para casa e deitei no sofá. Li Homem Aranha, Capitão América, Heróis da TV… E peguei a Superaventuras Marvel Nº 62.

A estória “principal” da edição era dos X-men (em uma de suas melhores épocas, quando Claremont era bom e, até então, o principal motivo para me fazer ler a revista). Tinha mais uma estória do Shang Chi (de quem nunca gostei e não fazia questão de acompanha), e uma estória do Demolidor.

E essa foi um porrada no estômago!

A namoradinha do herói estava viciada em drogas e vendia a identidade secreta dele em troca de uma dose. Com a informação nas mãos, seu arqui-inimigo, o Rei do Crime, dedicaria todos os seus recursos — e os próximos meses de revista — a destruir a vida de Matt Murdock, o alter ego do Demolidor.

Identidade Secreta por Drogas. Gibi para crianças.

Quando abaixei a revista, me lembro de ter percebido que tinha lido algo diferente. Algo que eu provavelmente deveria ser novo demais para estar lendo. Algo que mudaria minha forma de ver os quadrinhos a partir dali.

Algo que me fizera amadurecer um pouco mais, antes do tempo.

Corta para 2011.

24 anos depois, minha vida já tinha dado algumas voltas. Já tinha estudado, me formado duas vezes, escolhido uma carreira, mudado de casas mais vezes do que dedos nas mãos, já tinha casado e já tinha me separado… A Netflix chegou ao Brasil, com a promessa de filmes e séries em streaming e, mesmo com as ofertas de 7 dias grátis, o conceito não me chamava a atenção. Eu sou um ser analógico em um meio cada vez mais digital, então eu tenho mais dificuldade para embarcar nessas novidades tecnológicas do que a imensa maioria…

Mas a verdade é que eu já tinha TV a cabo, e não sentia a menor necessidade de ter Netflix, o que me parecia simplesmente ter serviços em duplicidade, na época.

Mas algum tempo depois, a coisa mudou de figura. Depois do desastre que tinha sido o filme do Demolidor com Ben Affleck, os direitos do personagem tinham retornado para a Marvel. Já surfando na onda do imenso sucesso que seu universo compartilhado vinha fazendo nos cinemas, a Marvel fechou uma parceria com a Netflix para produção de conteúdo original, e a primeira tentativa seria justamente a série do Demolidor.

Em Abril de 2015, Demolidor estrearia mundialmente na Netflix. Era hora de usar aqueles 7 dias que a Netflix vinha me prometendo há muuuuuuito tempo.

E depois disso, tudo seria diferente para mim.

A Netflix tem um esquema diferente de produção de suas séries originais. Eles produzem a série e disponibilizam todos os episódios de uma vez. Isso estar tornando cada vez mais popular as “maratonas”, onde você assiste uma série inteira de uma vez, começando na Sexta Feira e parando só quando a série acaba, desde que você não tenha filhos pequenos (meu irmão do meio assistiu as quatro temporadas de House of Cards em 10 dias. Eu assisti a primeira temporada inteira de Patrulha Canina nesse período. Não sei quem pode se considerar um vencedor aqui).

Com 13 episódios de 50 minutos em vez de míseras duas horas, a série tem muito mais espaço para desenvolver seus personagens. E com bons roteiros, bons diretores, um elenco afiado e um personagem tão rico quanto o Demolidor, a primeira temporada da série foi o sucesso esperado e merecido que o fãs tanto esperavam.

E a Marvel, claro, comemorou.

Consolidando seu imenso domínio midiático, a Marvel expandiu seu conceito de universo compartilhado também na televisão. Depois de Demolidor, tivemos Jessica Jones, com sua protagonista de moral duvidosa, lutando conta o abuso sexual e psicológico que sofreu nas mãos do Homem Púrpura, agradando aos fãs e aos movimentos feministas cada vez mais crescentes.

Também aproveitou para apresentar ao público outro representante das minorias, o Herói de Aluguel, Luke Cage (que também ganharia série própria algum tempo depois).

Na segunda temporada de Demolidor, o herói já estabelecido teve a grata inclusão do anti-herói preferido da Marvel: O Justiceiro, muitíssimo bem interpretado por Jon Bernthal, garantindo também seu lugar ao sol, em sua futura série própria.

Esbanjando personalidade, a série do Luke Cage traz o personagem na versão soft apresentada pelo roteirista Brian Bendis em estórias recentes, em vez da versão kick ass herói de Aluguel dos guetos, típica dos anos 70, mas acerta em cheio no alvo. Apesar do herói indeciso entre cumprir seu papel de protetor do Harlem ou fugir, a série soube explorar bem as tensões raciais existentes nos Estados Unidos, a relação entre a polícia e os negros, e a própria exploração do movimento negro entre aqueles que alegam defendê-lo.

Mais do que o final “corajoso” que alguns críticos gostam de explorar, o que o último episódio da série mostra é, que diferente de seus antecessores, aqui a Marvel já está definitivamente consolidada com o formato da Netflix, e confia em explorar as pontas soltas em próximas temporadas.

E felizmente, não precisaremos esperar muito. Já em Março do ano que vem, teremos a série do Punho de Ferro, que já teve um teaser pra lá de promissor divulgado na última New York Comic Con… E, nos mesmos moldes do que já fez no cinema, em seguida teremos a tão esperada reunião de todos os protagonistas de suas próprias sérias, dessa vez juntando forças e montando a super equipe conhecida como DEFENSORES.

The Defenders Reunited.

Outro dia, meu grande amigo Fábio Ochoa, o maior escritor americano vivo nascido em Pelotas, comentou “Quem diria que eu viveria para ver uma série do Luke Cage” e, sem saber, refletiu um sentimento que eu tenho cada vez que a Marvel anuncia uma nova empreitada, seja no cinema, seja na televisão.

Um encantamento infantil, um sorriso no rosto que só um guaxinim falante segurando um trabuco gigante e uma árvore ambulante podem trazer, uma sensação de que você nunca, jamais, poderia imaginar que viveria para ver algo assim acontecendo.

E o que muita gente — especialmente os “novos fãs” — não entendem, é que eles jamais saberão o que é isso.

Essa nova geração que já nasceu com internet e email, que já nasceu dona de toda informação que existe no mundo, que já se sente no direito de se ofender pela opinião dos outros e de decidir o que é certo para si e para o mundo, essa nova geração conhece apenas os personagens das séries e filmes, desconhecem o gigantesco background dos quadrinhos, suas origens, o desenvolvimento que tiveram ao longo de décadas de estórias, algumas bem contadas, outras não.

Essa geração pode ter muita coisa, mas nunca vai ter esse encantamento, esse sentimento de ver algo que você acompanhou desde pequeno tornando-se realidade, bem diante de seus olhos.

Tenho pena deles.

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