Sobre um sonho de infância que realizei

Raul Kuk
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6 min readOct 11, 2016

Essa é fácil:

NENHUM.

Não realizei nenhum “sonho de infância”. Não que eu não tenha sonhos, ou que eu leve uma vida amarga e miserável, ou só tenha tido sonhos impossíveis. Não, não é isso. A verdade é que muitos dos meus sonhos de infância foram sendo refinados com o passar dos anos. A maioria deles não passou da infância. Poucos chegaram à adolescência. Nenhum sobreviveu até a idade adulta.

Minha mente é inquieta e meu espírito não se prende a nada, nem a sonhos, nem a mim mesmo. Ele apenas continua em frente, com novos sonhos, novas ideias, novas aspirações. Novas vidas para desbravar, novas experiências, novos objetivos. Vamos descartar o óbvio:

1 — jogador de futebol.

Não foi por falta de talento, eu juro. Eu tinha uma carreira promissora na várzea, até ir estudar em uma escola onde tínhamos aulas teóricas de Educação Física. Nada contra, mas eu tinha onze anos. Nessa idade, era pra eu estar praticando o máximo de esportes que me fosse humanamente possível e sempre fiquei com a impressão que meu talento (volantão voluntarioso, destruidor de jogadas e canelas alheias) morreu ali. Nunca mais joguei com a mesma ousadia e alegria, salvo por um ou outro lampejo de gênio. O sonho nasceu comigo e morreu quando eu tinha uns 12 anos.

2 — piloto de Fórmula 1.

Sempre gostei de Fórmula 1, passei a infância assistindo as corridas, mesmo de madrugada. E parecia fascinante a ideia de dirigir um daqueles carros. Na minha opinião de leigo, os carros de Fórmula 1 são o ápice de engenharia. Nada é mais impressionante que aquelas flechas sobre rodas — isso, pelo menos, até uns dez anos atrás, quando os carros começaram a ficar bem feios. Meu interesse pela Fórmula 1 despencou quando Ayrton Senna morreu. Admito que já não estava muito interessado nas corridas quando ele saiu da McLaren. Eu tocava em uma banda de metal na época e passava os domingos ensaiando clássicos de Black Sabbath e Kiss. Nos anos seguintes, tive ainda menos motivos pra acompanhar, já que minha equipe favorita, a Jordan, ia de mal a pior até mudar de nome e seus simpáticos carros amarelos desaparecerem das pistas para sempre. Mas não foi aí que o sonho morreu, não. Foi bem antes. Quando eu percebi que não entendia nada de carros, não queria entender e era desastrado demais pra guiar qualquer veículo mais complexo que um carro de autorama. Eu devia ter, sei lá, uns dez anos. Nem sei porque diabos pensei em ser piloto de corridas se nem de carros eu gostava.

3 — arqueólogo.

Eu assisti Caçadores da Arca Perdida muito jovem. Obviamente, como qualquer criança, eu achava que a vida de arqueólogo era aquilo lá mesmo: um chicote, um chapéu e a destruição inconsequente de relíquias inestimáveis. O fato de eu ser bastante desastrado ia facilitar bastante o desenvolvimento da minha carreira. Eu me lembro de ter entrado numa igreja em Minas Gerais que tinha um candelabro de cristal gigantesco, e só existem dois daquele no mundo todo — o outro está numa igreja na França. Eu nem respirava de medo de esbarrar no candelabro e derrubá-lo do teto (uns oito metros acima da minha cabeça). Sou desastrado nesse nível. Na dúvida, nem mesmo respiro. Desisti quando percebi que não era uma carreira muito promissora (leia-se: “nada parecida com os filmes de Indiana Jones”), na época que assisti A Última Cruzada. Um sonho que nem chegou à puberdade, coitado.

4 — presidente.

É sério. Eu era criança na época da campanha pelas eleições diretas, adolescente quando os cara-pintadas tomaram as ruas em protesto ao governo de Fernando Collor (não participei) e sempre, sempre tive a mais absoluta certeza que eu podia fazer melhor que qualquer um daqueles caras (exceto, talvez, Paulo Maluf). O que um presidente fazia, afinal, além de discursos na TV sobre o que ele deveria fazer? Meus discursos seriam poemas, músicas, desenhos animados. Do alto de minha sabedoria de, sei lá, uma década de vida, eu só pensava em como um regime totalitário sob o meu comando funcionaria de forma lúdica. Sem inflação — é só não aumentar os preços. Sem desemprego — é só construir fábricas de, sei lá, qualquer coisa. Fábricas de fábricas. Pronto. E, a cada ano, uma guerra pra manter as pessoas em permanente estado de diversão (“Wowwww, a guerra desse ano vai ser todo mundo que nasceu em ano par contra quem nasceu em ano ímpar!”), não podendo se estender por mais de um mês. Ela substituiria o carnaval, que nunca gostei. Eu não me lembro quando desisti desse sonho, mas tenho certeza que quem perdeu foram vocês!

5 — super-herói.

Eu acho que nunca cresci o suficiente para me afastar desse, pelo menos não por completo. Não demorou muito pra eu perceber que a) não era um alienígena sendo criado por humanos; b) não era um mutante; c) não era um milionário. Fora isso, honestamente, as chances são muito pequenas (digo isso porque nunca cogitei seriamente a possibilidade de passar por um experimento científico fracassado que me desse poderes — isso era absurdo demais até pra mim). Mas eu sempre fui muito crítico quanto às histórias que eu lia nos gibis ou assistia na TV. Eu achava que podia ter “algo mais”. O Fantasma, por exemplo, vivendo lá na África devia, obrigatoriamente enfrentar dinossauros. Porque sim. Bruce Wayne devia comprar o Planeta Diário pro Clark Kent não ter o salário descontado sempre que desse um sumiço pra salvar o mundo como Superman. A Mulher Maravilha, Supergirl, Zatanna, Batgirl e tantas outras heroínas deviam ter uma equipe pra elas com apenas um homem (já que, na Liga da Justiça, eram vários homens e apenas uma mulher). O Mandrake devia fazer mágicas que resolvessem os crimes que ele investigava mais rapidamente. O cara é mágico, não dá pra olhar numa bola de cristal e perguntar: “Ok, quem é o assassino, onde ele está e como eu o pego sem correr risco?” É tãããõ difícil assim? E o Hulk devia ser o Hulk o tempo todo. Ora, se você pode ser mais forte que qualquer outra pessoa no mundo, pra que vai querer voltar a ser o Banner fracote? Ah, o Batman devia se livrar do Robin e arrumar uns ajudantes que não precisassem ser salvos o tempo todo.

Lá pelos meus onze anos eu comecei a desenhar meus gibis — coincide com a época que meu desempenho escolar desceu à Fossa das Marianas — e não parei mais. Sempre escrevendo, sempre bolando minhas histórias, sempre tentando, testando, experimentando. Escrever não é exatamente divertido (às vezes você tem que escrever sobre algo como, sei lá, “um sonho de criança que você realizou”, então percebe que não realizou nada e vive preso entre uma geração de pessoas que acreditou que o trabalho duro poderia ajudá-lo a conquistar seus sonhos e uma outra geração após a sua que está vivendo muito melhor, com acesso a informação que você nem imaginava, deixando você sem esperança e sem sonhos), mas é sempre uma recompensa em si mesmo. Não importa, exatamente, quantas pessoas leiam — ou elogiem, ou critiquem, ou façam sugestões, ou digam que você não tem talento, ou que está apenas desperdiçando mais de seu tempo (e do tempo delas).

Eu continuo escrevendo minhas próprias histórias desde, mais ou menos, meus onze anos. Há várias delas espalhadas por aí. Em algumas, eu realizo sonhos de infância. Em outras, o sonho é uma recompensa em si, como escrever é uma recompensa em si e me dá esse senso de realização. De colocar um pouco de mim em letras, em palavras, transformando uma página em branco em algo que tenha algum significado, um propósito. Lapidando parágrafos, polindo ideias, refinando pensamentos e moldando um futuro que não está pra começar. O futuro começou lá atrás, quando escrevi e desenhei meu primeiro gibi. Era um gibi do Batman, no auge do hype causado pelo primeiro filme do Tim Burton.

Eu podia continuar escrevendo para sempre, e esse seria o meu sonho de infância realizado. É bem mais legal do que ser super-herói se você pode ser qualquer coisa.

Escrever. Nem sempre é divertido, mas a vida é assim também.

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Raul Kuk
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We’re just stories in the end. Just make it a good one, huh?