Sobre aquisições tardias, dignidade e autoestima

Ana Paula Paiva
sobre

--

10 de dezembro de 2021

Ao pintor muitas vezes interessa traduzir os efeitos da luz na superfície dos corpos, em registros pictóricos de claro e escuro, técnica que consiste em pintar algumas áreas iluminadas e outras na sombra, passando a impressão de profundidade e volume. Nas obras barrocas, o efeito claro e escuro é uma característica essencial do período decorrente do declínio do Renascimento — que primava pela harmonia e simplicidade. No entorno do século XVI e XVII, a arte e técnica de usar tintas sobre uma superfície veio com o intuito de representar pessoas, animais, coisas, formas que se destacam pela extravagância e pelo contraste da presença de forte luminosidade em algumas figuras enquanto outras estão quase ocultas pela escuridão. A luminosidade que aparece na pintura barroca nos leva a observar o ponto de maior dramaticidade no que se quer retratar, e sua aplicação singular marca as emoções do indivíduo barroco, que está perdido e confuso em seus sentimentos devido aos acontecimentos sociais daquele tempo.

Em outras palavras, a luz dá lugar a sensações. Mesmo persuadida pelo método escolar durante toda a vida e ciente da informação anterior, que poderiam perfeitamente ser articulados em minhas sinapses, os efeitos não tão benéficos da luz solar foram ignorados durante uns quatro anos quando decidi pela ausência de cortinas decentes na sala e quarto principal da residência oficial no Rio de Janeiro. No caso do jogo do claro-escuro, este era praticado dentro da minha casa apenas por Deus — se acreditarmos Nele como controlador das condições meteorológicas, da duração do dia e da noite, da quantidade de nuvens no céu e de todas as outras variáveis da luz natural . A partir da priorização de certos gastos, desprezei o dom que boas peças de pano têm de matizar as perspectivas cromáticas e as alternâncias de luz em qualquer ambiente, e de prover conforto visual tanto a mim quanto aos vizinhos, certamente exaustos da minha nudez espontânea.

Para além da barreira financeira, que ruiu muito antes de eu deliberar pela compra e instalação das cortinas em abril deste ano (bem como pelo início das negociações com a proprietária que se deu pela efetiva troca das janelas de madeira por esquadrias modernas), é de se refletir sobre as causas dessa e de outras decisões habitacionais, cujo impacto ultrapassou a obediência aos preceitos básicos da decoração. Em 2021, os 50 metros quadrados do apartamento em que resido foram palco para a espécie humana como ponto central para o entendimento do mundo, trazendo à tona uma mulher dotada de racionalidade crítica, que questiona a realidade em sua volta no que tange à melhora substancial da rotina caseira.

Conjuntamente, o teocentrismo mantinha seu império em casa no que diz respeito às condições de temperatura. A posição de Deus como centro do universo manteve-se e ancorou-se com a ausência de aparelho de ar-condicionado, embora a morada contasse com ventiladores de teto em seus cômodos principais. Restou a residência — ouso dizer que uma das únicas da Zona Sul do Rio de Janeiro — submissa às altíssimas temperaturas do Verão carioca. A partir da doação efetivada pela amiga de fé Cristine, em novembro último, o aparelho foi imediatamente alocado no quarto principal, e assim teve fim parte da penitência espontânea, maquinal, involuntária, inconsciente cumprida durante cinco anos por inércia e desleixo de espírito.

No entanto, nesse processo expiatório — oriundo provavelmente do excesso de energia empregado pelos progenitores na minha puberdade — chamou atenção de grupos sociais brasileiros por bastante tempo a ausência de um outro eletrodoméstico específico na residência em Botafogo, minha segunda naquele bairro, mas a primeira que eu iria mobiliar de cabo a rabo. O vácuo deixado na área de serviço pela inexistência de uma máquina de lavar roupas em um apartamento de dois quartos em área nobre da Cidade Maravilhosa atormentou mamãe desde o princípio e ao longo de muitos meses.

— Eu te dou, filha. Já estou comprando o fogão, a geladeira…, disse mamãe ainda na loja em 2016.

— Eu prefiro a televisão que tem Netflix dentro!!!, falei antolhada, pensando somente na quantidade de dinheiro que ela já tinha gasto naquilo tudo pra me ajudar a ter uma vida nova.

— O micro-ondas eu entendo você não querer, mas as roupas, minha filha… Não tem lógica, afirmou mamãe desanimada no Ponto Frio do Conjunto Nacional.

— No Rio de Janeiro faz muito calor e lá em casa tem tanque agora!, afirmei orgulhosa e feliz.

— Estudou tanto pra que, Ana Paula?

Saí da loja em êxtase, com a televisão inteligente e os demais presentes, enquanto mamãe e o funcionário que nos atendeu estavam tentando compreender a lógica das minhas escolhas. Esta reação ocorreu em cadeia, com qualquer nova amizade que levava para conhecer a minha casa, e o espanto escorria na sociedade qual fosse a circunstância, a cada vez que o assunto era mencionado.

O diálogo e a incredulidade derivados da pergunta óbvia “você lava na mão?!” eram mais recorrentes que os sucessos do sertanejo universitário nas rádios FM. E eu tinha em mente as respostas para qualquer tipo de argumento. As explicações giravam em torno do prazer gerado pelo contato com a água na quentura ambiente e do custo elevado de uma máquina desse tipo. Aos interlocutores, minhas alegações eram absurdas, porém os indignados tinham dificuldades de me convencer que o convívio com a água era maléfico e o custo do objeto, insignificante.

Todavia, em mais de 20 meses de prática retórica, um ineditismo epistemológico iria me apanhar em flagrante.

Mais ou menos em janeiro de 2018, a Praia de Ipanema estava apinhada de gente tentando aplacar o calor insuportável da estação do ano que dá fama à cidade do Rio de Janeiro. No grupo de Whatsapp, as combinações para ir à beira-mar começaram logo cedo e, como sempre, minhas fraternas companheiras foram curtir as chamas na frente, pois eu tinha duas ocupações importantes aos domingos: fazer marmitas e lavar as roupas.

Com a caixinha de som ligada nas minhas canções prediletas a todo volume, as atividades eram realizadas na paz do Senhor, sem maiores incômodos ou pressa. Alguma preocupação havia com a hora de sair para as areias, que não poderia se adiantar muito, mas nada que tirasse a harmonia da meditação nas tarefas domésticas.

Tudo feito, “vamos a la playa”. Cheguei ao local combinado com as atualizações do fim de semana na ponta da língua para iniciar as rodas de conversa no simpósio semanal sobre a vida própria e alheia sob o sol. Ao justificar meu atraso, como de costume, minhas questões tecnológicas entraram em pauta rapidamente, sujeitas a toda ordem de crítica que giravam em torno da obrigação moderna de ter uma máquina de lavar roupas em casa.

Uma das integrantes da roda, todavia, era um pouco novata no meu círculo de amizades — e ainda estava passando por testes psicotécnicos, disfarçados de papos fortuitos, para saber se ela teria o nível de bom senso exigido para ganhar a minha confiança. Cristine logo se meteu a perguntar também:

— Ué, você não tem máquina de lavar?

— Não não. E não sinto falta.

— Você lava na mão então?

— Sim. Essa atividade não me incomoda. O contato com a água…

— Eu já entendi essa parte. Só acho que você poderia ter chegado mais cedo na praia se você tivesse uma máquina de lavar roupas.

A luz, de diferentes intensidades, entra pelos olhos e é dirigida ao cérebro, que a recebe como uma sensação de luminosidade, de brilho e de cor. Isso se dá pois possuímos este formidável sistema ocular que capta esses estímulos. Embora tivesse usado a minha audição como sentido introdutório naquela ocasião, a réplica de Cristine teve o efeito de uma radiação eletromagnética poderosíssima, cujos comprimento de onda impactaram minha retina e expandiram minha mente em trinta anos luz, a partir de uma linha de raciocínio que nenhum outro ser humano teve capacidade de sintetizar até então.

Pela primeira vez em dois anos fiquei em silêncio, tendo que concordar que, apesar de qualquer discurso elevado e pretensioso da minha parte que justificasse passar por uma situação tecnologicamente desnecessária atualmente, eu estava perdendo muito tempo na minha vida.

A máquina de lavar roupas começou a funcionar na área de serviço apenas em 13 de junho de 2018. Quando o sistema de gás em casa parou de funcionar e tive de tomar banho desaquecido por alguns dias durante o inverno até tudo ser consertado, o contato com a água fria passou a exceder o limite do tolerável pelo meu sistema imunológico e o aparelho teve de ser adquirido.

Sendo assim, parafraseando Comte, o progresso é a lei da história da humanidade e o ser humano está em constante processo de evolução. Nem que seja no coice.

Rio de Janeiro pela fé.

Oremos.

--

--