Sobre cafeterias, conforto psicológico e sistematização da paquera
7 de outubro de 2020
Os procedimentos metafóricos funcionam como modo de elaboração coletiva e individual da memória. Dispor imagens de maneira que possam aderir mais longamente à conservação da experiência, a partir de semelhanças as mais notáveis possíveis, é técnica antiga de construção e, sobretudo, de compreensão do mundo à nossa volta.
Mimetizando a selvageria do ambiente natural, a paquera passa por cenas de barbárie tão sangrentas quanto a de um gnu na boca do leão. Diante do estado atual da pós-modernidade, a imprevisibilidade do comportamento masculino e a necessidade de manter a saúde mental em meio à vida solteira hodierna, uma metáfora vem ao nosso socorro para dar ordem ao caos diante de uma decepção afetiva concreta ou possível. Ao tentar nos livrar de rapazes da estatura neuronal de uma mula, ao sentir a carimbada surpreendente de um pé nos glúteos ou ao sofrer justamente pela partida de um raríssimo moço correto, digno e probo, eis uma citação que vale a pena ser gravada em pedra aos pés do Monte Sinai e erguida em praça pública como o décimo primeiro mandamento de Deus:
“A gente não para de tomar café depois do almoço porque bebeu um café ruim. Procura-se outra cafeteria.”
Bebida hoje comum, o café conta com um objetivo primário em suas milhares de variações aromáticas: manter o ser humano desperto. As demais propriedades do líquido preparado a partir da infusão das sementes torradas e moídas do cafeeiro foram sendo desveladas ao longo dos séculos para muito adiante do aumento da velocidade da atividade metabólica e neural do bicho homem. Tornou-se um dos produtos básicos mais valiosos no planeta, em muitos anos somente superado em valor pelo petróleo como fonte de divisas para os países em desenvolvimento, por ter ajudado a melhorar a medicina e por ser vício de muita gente. Em sentido teórico e analogamente, percebem-se princípios semelhantes ao conjunto de fenômenos relativos à prática sexual. Sua finalidade e benefícios, antes limitados à procriação, são exaustivamente investigados, encontram-se em contínua expansão e as descobertas são tão amplas que pariram a máxima que em nada avança além da verdade: “sexo é vida”.
Dessa forma, após formidáveis tardes filosóficas na Chapada dos Veadeiros, pretendemos compartilhar os primeiros passos da sistematização do comportamento humano em face à libido e os mais diferentes tipos de serviço fornecidos pelos estabelecimentos especializados ou cujo foco gira em torno do café. Neste momento, é preciso esclarecer que a bebida emparelha-se à cópula; biscoitinhos e água com gás, por sua vez, ombream os sadios comportamentos acessórios e preliminares esperados dos homens modernos; arquitetura e decoração equiparam-se às características estéticas do pretendente; e assim por diante em interpretação livre dos leitores para incentivar o diálogo em torno de tema tão relevante.
Vamos sem mais demorar às categorias:
Boy Starbucks: descolado, gringo, meio caro, costuma ter boa localização nos grandes centros urbanos. Não é preciso procurar muito para ver uma loja quase igualzinha à outra bem próxima, variando um pouco apenas na decoração e arquitetura. Atendimento e produtos padronizados. Só que para o café prestar mesmo, é preciso pedir e pegar adicionais: capitalista selvagem, não dá biscoitinhos e não libera fácil o Wi-Fi. Existe o clube de vantagens para quem tiver a fim de fidelizar e ganhar uns mimos, mas isso não importa. Invariavelmente, depois de um tempo, você vê que é mais marketing que sabor. No fundo, só serve para tirar foto com o copo.
Boy Kopenhagen: café apurado, biscoitinhos sensacionais e variados à sua escolha, atendimento primoroso. Contudo, depois de pegar uns poucos bombons caros na empolgação para esticar a experiência e finalmente pagar a conta, fica a pergunta: “precisava gastar essa fortuna num café, meu Deus do céu?” Por causa do custo-benefício, frequenta-se esporadicamente, em ocasiões especiais.
Boy Frans (Bsb): estabelecimento de bairro, perto de você, fica aberto até mais tarde (é 24h dependendo da loja), tem de tudo no cardápio, ambiente satisfatório. O atendimento até que é bom, mas o café, francamente, nada demais, embora o biscoitinho esteja sempre ali pra tentar te agradar. Não te abandona, é legalzinho, mas se fechar também, vida que segue.
Boy café de padaria: a princípio, é descontraído, jogo rápido, despretensioso e seguro. Sabe-se perfeitamente o que encontrar nesse tipo de estabelecimento. É aquele café em que você conversa um pouco com os rostos conhecidos, chama o chapeiro pelo nome se tiver um pouco mais de intimidade. O atendimento é objetivo, justo, sincero: tem café pronto ou tá fazendo? Quando o café é bom, você não passa raiva com o atendimento e é perto de casa ou do trabalho, tende a virar sua cafeteria de estimação, mas não é o ideal. Não há e vai ser muito difícil ter biscoitinho por livre e espontânea vontade. Só se o governo obrigar.
Boy café de beira de estrada: ao utilizar de outros serviços da loja e seus arredores (banheiro, abastecimento, salgadinhos, pastel, água etc.), passa ali rapidinho e bebe-se o café da oportunidade. Você sobreviveria sem esse, mas é prudente tomar um pouquinho pra ajudar a não pescar no volante. Café forte demais, cumpre sua função sem charme. Nem sonhe com biscoitinho ou água com gás. Muito dificilmente você irá frequentar novamente se não estiver precisando mesmo. Estabelecimento não existe no Trip Advisor.
Boy café gourmet: um achado no caminho da terapia. Entrada discreta em rua pouco movimentada. Lá dentro a decoração é uma graça, ambiente delicioso, tipo do Pinterest sem ser cafona. Café incrível, biscoitinhos e outros mimos frescos, copinho de vidro com água com gás, não é caro. Atendimento personalizado e sem encher o saco do cliente. Logo que te vê, o dono já sabe a mesa que você vai sentar e vem com a novidade super gostosa da semana pra te sugerir. No entanto, depois de te fidelizar, o estabelecimento fecha as portas do nada. Você sofre, não entende o que houve, busca explicações no Instagram e no site do café para saber se faliu, se foi má administração ou se trocou de ponto. Fica de luto. Acaba aceitando, não deixa de frequentar a terapia por isso e as saudades da cafeteria ficam.
Boy Biscoitos Mineiros (Bsb) e Cafeína (RJ): quando abre um ponto novo, é a sensação do bairro. Atendimento excelente, decoração bacana, café fresquinho, os melhores biscoitinhos amanteigados da região, vindos diretamente do interior. O encantamento leva à fidelização. Mas a loja bem localizada se populariza rapidamente. Em horários nobres, as mesas ficam disputadas, formam-se filas desorganizadas, barulhentas e intermináveis. Quando se consegue um lugar, vê-se a piora maiúscula do atendimento. As últimas experiências te deixam com ódio a ponto de mudar de calçada para não passar na frente da loja. Mas aí o dono pega e grita da calçada: “EI, SUMIDA! PQ VC NÃO VOLTOU MAIS? TEM UMA MESA AQUI ESPECIAL, SÓ PRA TI! VEM PROVAR O BISCOITINHO NOVO!” Quando chega lá para proporcionar uma nova chance ao estabelecimento, resultado: fica em pé no balcão e o biscoitinho acabou.
Boy aplicativo de delivery: o pó de café de casa acabou e o desespero invade a sala de estar. Por isso, você resolve pedir pelo aplicativo de entrega porque o preço está bom, sem taxa de entrega e o atendimento vai ser rápido. Mas o café chega frio, biscoitinho murcho, e o arrependimento culmina na vontade de devolver o pedido. Passada a raiva, é preciso ficar atenta às configurações do celular, pois a roubada fica apitando dias a fio com promoções e descontos que, no fim das contas, não compensam.
Boy café turco: estabelecimento voltado às experiências dos viajantes. Não é todo turista que conhece, os grãos e a moagem são especiais, o estabelecimento é dedicado a visitantes seletos. Localização privilegiada, com vista panorâmica, arquitetura única, decoração rústica, porém de bom gosto. O café, os biscoitinhos, a laranja cristalizada e a água com gás à vontade tornam-se um quarteto de violinos ao pôr do sol no verão europeu. No entanto, o estabelecimento não tem horário fixo de atendimento. Um dia abre, no outro não se sabe, sem previsibilidade. O atendimento oscila demais, passando do sonho ao desleixo em 12h. Para beber este café mais de uma vez, é preciso sorte, fé, disponibilidade e nervos de aço.
NOTAS DE RODAPÉ:
1 A citação e a premissa deste ensaio são de autoria do amigo e entusiasta do amor Kenedy Brayan. O desenvolvimento teórico é de Camila Chrispim e Ana Paula Paiva.
2 Esta é uma lista exemplificativa que está longe de ser dona da verdade. Estamos à disposição da sociedade para ajustes, acréscimos e reflexões.
3 Conforme a impossibilidade de totalização fora dos termos da morte, estamos cientes de que nem todos os brasileiros gostam de café ou de sexo (ao mesmo tempo ou alternadamente).
Brasil, brasileiras e brasileiros pela fé.
Meditemos.