Sobre divertimento em massa, intolerância e avelã

Ana Paula Paiva
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19 de julho de 2021

Com a minha mudança da capital federal para a cidade mais sensual desse país, cada vez tenho mais amigos que não possuem carros ou sequer sabem dirigir. Moradora privilegiada da zona sul carioca – em meio à proliferação de aplicativos de motoristas particulares, além de um sistema de transporte público mais ou menos eficiente –, a bolha a qual ocupo sente pouquíssima necessidade de gastar rios de dinheiro com gasolina, impostos, lavagens a seco, multas por excesso de velocidade e, obviamente, com um automóvel próprio.

Em Brasília, no entanto, o cenário em todos os sentidos é oposto. Embora haja um ou outro que não veja vantagem em enfrentar as intempéries do trânsito com os próprios punhos, a maioria acachapante possui ou sonha em ter um veículo na garagem. Assim, quase todos os seres da espécie humana que habitam a cidade e atingem maioridade penal estarão posicionados nas cadeiras da escola de direção ou no mesmo dia do aniversário ou em data próxima, caso os parabéns caiam no sábado, domingo ou feriados.

A necessidade de se locomover dessa forma é tão presente e real no brasiliense que, em uma das milhares e humilhantes dinâmicas de grupo que antecedem um estágio remunerado e que obtiveram o prazer do meu aparecimento, das cinco pessoas que queriam ocupar a mesma posição, quatro cidadãos com mais ou menos 20 anos afirmaram que certamente o dia mais feliz de suas vidas foi o que conseguiram, com muito empenho, adquirir o próprio carro. Mesmo desejosa de assumir aquela vaga e indo, talvez, contra todas as estratégias dos processos seletivos, embora totalmente sincera, apenas eu mencionei em ranking as eufóricas data e hora da constatação de que poderia realizar o sonho de estudar de graça na Universidade de Brasília como a primeira colocada em satisfação pessoal, sendo a segunda o dia em que tirei a carteira de motorista e a terceira (graças a Deus e aos esforços de mamãe) ganhar o meu meio de transporte particular.

Ainda remontando ao passado, talvez por assistir aos meus pais dirigindo o tempo inteiro para fazer qualquer coisa em espaço externo ao lar e antevendo as próprias necessidades de transporte no porvir, construí um fetiche pelos automóveis na infância. Inserida de maneira integral na cultura local, sabia todas as marcas, tinha opinião própria sobre as cores e modelos mais bacanas, esganiçava palpites (quase nunca solicitados) quando eventualmente ocorria a troca de um dos dois exemplares desse objeto gigantesco na garagem de casa. E por aí ia.

Por conseguinte, no parque de diversões — além de completamente avessa às aventuras em altura, em looping, em sustos ou em tiros — meu folguedo preferido era o bate-bate. Porém, distante dos gostos habituais e comuns, a graça não estava nas colisões elásticas, sendo estas propositais ou fortuitas, simulando as mortais batidas veiculares. O meu intento era curtir o movimento constante do carrinho elétrico, totalmente controlado por mim ao volante. Eu ficaria ali horas andando em círculos sem trombar com ninguém, embora não deixasse de fingir sorrisos educados quando algum idiota vinha violentamente de encontro a mim. Em prol da franqueza memorial, confidencio que a ânsia da proto-condutora era enfiar o pé no acelerador, fazer a curva onde houvesse limite e recomeçar a deslizar como se no berço da solidão da rodovia estivesse. Embora também existissem em parqueúnculos estabelecidos em shoppings, obviamente, o meu desejo de alcançar a velocidade máxima do veículo leve sob antena era atingido com menor eficácia naqueles templos do capitalismo. Nesses estabelecimentos, as pistas dos bate-bate não eram tão avultosas quanto a do inesquecível parque de diversões a céu aberto que aterrizava na cidade duas vezes ao ano. Por conta da escassez de edições, eu contava os dias para chegar aquele evento ao qual mamãe me levava. Minha organização individual ia do horário de acordar à indumentária, que deveria ser extremamente confortável para passar o dia inteiro em recreação e alimentação precária com as amigas.

No dia anterior ao passeio, o estado emocional fervilhava com o mapa do parque em mãos, antevendo quais seriam os brinquedos térreos que iriam usufruir da minha presença e, claro, dimensionando a pista do bate-bate. E eis que toda essa preparação não segurou minhas garras de cometer erro grave quanto a escolha nutricional preliminar, o que geraria aprendizado interessante a diversos ramos da existência, mas também transtornos futuros a mim e a quase todos os seres humanos que me cercam.

Além de apreciadora do mercado automobilístico, como boa criança, meus globos oculares em supermercados, conveniências de postos de gasolina e biroscas eram atentos às novidades ligadas à indústria dos docinhos. Mamãe, vaidosa sempre e tentando driblar o vício do marido em refrigerantes e sorvetes, evitava comprar guloseimas. Contudo, com alguma pena da filha raquítica, me prendava uma vez por semana com um exemplar de produto alimentício temperado com açúcar ou qualquer outro ingrediente sacarino. Se viesse com um brinquedinho, edificava-se ainda mais a alegria da diminuta, que colecionava com esmero todos aqueles brindes vagabundos.

No entanto, o plano de mamãe de me manter longe o máximo possível dos derivados da pâtisserie por pouco foram frustrados com a chegada do Ferrero Rocher às padarias, umas vez que vem em embalagens com três bolinhas recheadas da mais gostosa pasta de avelã que poderia existir. Ora, ordenou perspicaz, vai dividir o pacote com a irmã mais velha e não quero ouvir um ai nessa casa.

Entretanto, em uma manhã de sexta-feira, mamãe acordou, realizou os afazeres pessoais e, provavelmente na hora do banho, resolveu inovar. Foi ao mercado após o expediente na repartição pública e rebentou no lar com uma torre atulhada de bombons Ferrero Rocher. Teríamos visitas naquele dia e, como cuidadosa anfitriã, ela quis fazer uma graça com os que vinham bebericar café. Aquela pilha de docinhos convidativa brilhava na sala de jantar. Solicitei com muita humildade à progenitora se poderia comer mais de uma unidade dos bombons cintilantes. Esta assentiu com a cabeça, em silêncio, e no meu infanto contentamento deixei de perceber o olhar condenador e, muito provavelmente, cheio de praga da mulher que prevê qualquer intenção e movimentação minha até os dias atuais, em sonho ou vigília.

Degustei um bombom e fui para o dormitório. Comi mais dois, disfarçadamente, e fui para a varanda. Engoli outros três vorazmente e, em progressão geométrica, dizimei desavergonhada o cabedal de docinhos, pendurada na mesa. Naquele processo, uns poucos transeuntes conseguiram apanhar um bombom ou outro. Todavia, afirmo com convicção, pelo menos uns 80 por cento daquele acervo de confeitos foi parar na minha cavidade abdominal.

Crianças e adultos lidam com as péssimas consequências da ingestão de alimentos contaminados por microrganismos responsáveis por infecções gastrintestinais, geralmente fruto de acidente, de acaso, de azar. Mas naquele fim de semana, por sua vez, entrei em contato, na força da dor, com a noção de limite na absorção de comidas. Ora, 1,30 metro de altura e mais de um quilo de açúcar, aglutinados, não poderiam dar resultado melhor do que uma diarreia atroz, que me derreteu e amarrou ao vaso sanitário por muitas horas daquela sexta-feira. Porém, o desconforto rompeu os limites do sexto dia da semana. O sábado foi de desidratação e tornou inviável o passeio daquele semestre: a tão esperada ida ao ITA Park.

Com os olhos fundos e pálida feito um defunto, me humilhei à mamãe para não deixarmos de ir ao parque de diversões — vale observar que o queixume não durou por muito tempo porque a adulta que me deu à luz não é adepta à pedagogia de Paulo Freire. Com argumento robusto no alto dos meus nove anos de idade, aleguei que demorariam infindáveis seis meses para a próxima vinda do grupo de entretenimento itinerante. Altiva, mamãe indeferiu, justamente, todos os pedidos, o que me transportou a uma tristeza monumental.

O oceano de desgosto, juntamente com a lembrança da perturbação digestiva, me fizeram carregar pela vida asco e ódio pelo famoso e idolatrado creme de avelã com açúcar, cacau e leite. Assim, a abolição desse alimento do menu, ao passo que foi de grande valia para meus níveis de glicose a longo prazo, já causou constrangimento com namorados, tipo de gente que gosta muito de presentear com iguarias edulcoradas. Em certa oportunidade, cheguei à desfeita de cuspir um desavisado pedaço de chocolate estrangeiro na frente de prestimoso mimoseador. Entre camaradas estáveis ou em potencial, minha perturbação neurótica é motivo de escárnio. Entre a maioria dos viventes, é razão para contestações, interrogatórios e desconfiança sobre o meu caráter. Nesta polarização assimétrica, apenas vez ou outra me deparo com um espírito amigo que compreende a leitura obrigatória de rótulos ou questionamentos a garçons quanto aos ingredientes da sobremesa escolhida para ser compartilhada após a refeição.

Os anos de terapia não conseguiram solucionar este trauma. Mas se meu Deus me salvou, posso pregar o que eu quiser: ódio à Nutella.

Brasileiros e brasileiras pela fé.

Oremos

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