Sobre empirismo, visão periférica e baderna

Ana Paula Paiva
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6 min readFeb 15, 2021

15 de fevereiro de 2021

Coberta da virtude por meio da qual manifestamos fraqueza e respeito ao desconhecimento de uma série de situações às quais não tivemos nem tempo nem chance de vivenciar, reconheço que nunca tive a oportunidade de participar ou sequer de avaliar o convite para uma festividade sexual que reúne mais de dois seres humanos. Todavia, isto não impede de, em um saudável exercício de imaginação, verificar percepções contrastantes ao me representar mentalmente em grupos de no máximo três pessoas empenhadas em satisfazer urgências luxuriosas em conjunto.

Sempre em tese, a minha projeção emocional percorre dois caminhos. Ou de desgosto profundo ao me notar, mesmo que momentaneamente, desocupada no convívio das práticas libidinais de outra mulher e um homem, o que provocaria imediato tédio e desinteresse por toda a atividade; ou de cansaço extremo diante de dois exemplares masculinos em consequência do excesso de estímulos, informações e impulsos, o que fragmentaria em demasia a atenção requerida para o boa performance, em uma escalada exagerada da autoexploração que poderia, no limite, culminar em mais um caso de burnout na sociedade trabalhista, capitalista e de informação pós-moderna.

No entanto, destoando de toda uma horda filosófica que constata a falta de contemplação e a crescente sobrecarga emocional atual, a técnica temporal e de atenção multitarefa a meu ver não é de todo maléfica. Esta abordagem individual focada no alto desempenho em relação aos desafios cotidianos está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem e dialoga com o instinto de sobrevivência na vida natural, tão bela quanto extremamente fatigante defronte de uma implacável cadeia alimentar.

Ao refletirmos sobre a espécie humana, dona de tantos feitos inimagináveis em tempos ancestrais, contamos com esta privilegiada memória genética e social primitiva que nos permite realizar várias tarefas ao mesmo tempo. Ao resultar em adaptações evolutivas tão relevantes, esta habilidade deve ser estimulada nos mais variados contextos em que a autoconservação, bem como a harmonia das relações sociais são examinadas.

E existe uma circunstância em especial em que se mostra cintilante a necessidade de evidenciar, consciente ou inconscientemente, o que o nosso sistema nervoso central é capaz de operar neste angustiado planeta Terra.

No Carnaval em solo brasileiro, em maioria dedicamo-nos a festejos, bailes, desfiles e folguedos populares. Quando nos dispomos a encarar o perrengue próprio do período de três dias que ocorre antes da estação litúrgica da Quaresma — fora dos retiros espirituais e viagens ao exterior — , percebe-se em meio à quizomba um processo grupal para a superação do individualismo profundamente arraigado, ultrapassagem necessária para a realização de um trabalho comunitário em prol do brilho, da fantasia e da diversão faça chuva ou faça sol. A busca é pelo desenvolvimento da consciência social, sem ignorar totalmente a autonomia dos indivíduos, em torno do que conseguimos alcançar adiante das fronteiras do fígado, do humor, do bom-gosto, da legislação, da nudez, da fé, do uso desenfreado de microplásticos e de tantos outros fatores que impactam ferozmente nos valores, na moral, na ética, no equilíbrio psicológico e na timeline dos cidadãos comuns durante o ano.

Na versão carioca das solenidades carnavalescas de rua, a experiência acumulada nos últimos anos mostrou o poder da consolidação de regras que garantem a boa dinâmica e a eficiência da curtição, independentemente do número de integrantes do grupo e das contradições que emergem no coletivo.

Os robustos aprendizados rumam ao infinito, mas é imprescindível cravar em pedra os cânones dos cortejos de blocos clandestinos.

· Gestão de equipe: fundamental confiar na liderança, no método e nas orientações de quem mora na cidade e já possui arraigada vivência no Carnaval de rua no Rio de Janeiro por pelo menos dois anos consecutivos. Os responsáveis por essa gestão devem estar sempre atentos à movimentação interna e externa ao grupo, mantendo a equipe motivada e engajada para aumentar a produtividade, articulando aspectos pessoais, características grupais, vivência subjetiva e realidade objetiva.

· Gestão do tempo: se um membro do grupo vai urinar, todos devem se esforçar para proceder da mesma forma. A intenção é garantir o mínimo de rolês desse tipo ao longo do bloco.

· Gestão democrática: a eleição do ambulante preferido do bloco deve atender o gosto alcoólico da maioria dos integrantes do grupo e visa obter mais um ponto de encontro quando o bloco caminhante estaciona.

· Gestão nutricional: caso precise de alimentação, avise ao máximo de integrantes possível sobre esta parada estendida, pois o próximo bloco, em regra, não começará sem você.

· Gestão de crise: caso algum integrante se perca ou suma desavisadamente, seja por conta de paquera, furto ou viagem na maionese, o resgate ocorrerá em poucos minutos na frente do bloco.

· Gestão de posicionamento global: se precisar ficar para trás no intuito de adquirir drinks e drogas, avise previamente pelo menos dois integrantes do grupo e esforce-se para alcançá-lo ao lado direito da banda, onde ele invariavelmente estará, salvo ambientes extremos e situações de emergência.

· Gestão de asseio: tenha uma fantasia ou traje por dia de agito em prol da própria saúde e das narinas dos demais integrantes do grupo que estarão coladinhos em você nos próximos dias.

Sem desmerecer os itens supracitados, tomo a liberdade de destacar um tópico que salta aos olhos e que merece ser desenvolvido com mais esmero que os demais: a gestão de expectativas. Entre confetes e serpentinas, é preciso renunciar à frustração, ao rancor e ao saudosismo. As programações nem sempre darão certo, os amigos desaparecem ou furam e, muito importante, o risco de morte é iminente.

Certa feita, em 2017, o querido amigo de infância e vizinho na Capital Federal João Victor, no dia em que fazia anos, liderou uma incursão pré-carnavalesca à Ilha de Paquetá. Com seus quase 1,80 de altura, ele era o musculoso pássaro amarelo de uma revoada multicolorida belíssima que iria pousar no arquipélago próximo à Cidade Maravilhosa, dedicado ao descanso de Dom João VI. Eu, apesar de não ser uma das aves do bando, habitava à vontade o grupo animalesco fantasiado especialmente para aquele dia.

Barca da ida às 6h30, ok. Banda animadíssima no trajeto marítimo, ok. Desembarque e cortejo nas ruelas sem asfalto, ok. Era mais ou menos 13h e já havíamos atingido e dobrado a meta de ingestão de bebida alcoólica. Tudo corria bastante bem até que o aniversariante convocou os mais agastados pela fritura climática a retornar para o continente, almoçar e dar prosseguimento às comemorações por ter completado com saúde e disposição mais uma volta em torno do Sol.

Embora naquele estado etílico, nos encaminhávamos devagar ao pequeno porto da cidade, pois estávamos adiantados quanto ao horário do embarque. Papo vai, papo vem, passamos as catracas e subimos esfomeados no longo deque em que a barca estava ancorada. Lado a lado, eu e o líder do grupo que enfrentou mais uma edição do bloco de Carnaval mais custoso do Brasil, imersos em risadas mil, despreocupados, cantantes, percorremos o caminho suspenso por inteiro e iríamos ultrapassar a entrada da embarcação. Mas o improvável aconteceu e, de um instante a outro, proferi histérica:

— JOTAVÊÊÊÊ!!

Foi dada a largada para um espetáculo entre o barco e o deque. Os meus dois pés, as duas pernas, até a metade dos glúteos, em obediência zelosa à gravidade, ultrapassaram a plataforma de tábuas de madeira, posicionada verticalmente a pelo menos três metros da água e, desta infame vez, distante o suficiente da barca para o vão me acolher de corpo inteiro. Os decibéis concentrados na última vogal do apelido de João Victor, em pedido desesperado por socorro, subiam a medida que a queda catastrófica se acelerava.

Praticante diário de desportos, frequentador assíduo de academia, forte como um estivador de porto e perspicaz como um político do centrão, JV rapidamente girou o tronco e agarrou com as duas mãos meu punho direito. Acostumado a erguer mais de 60 quilos de supino ao som de divas do pop nacional e internacional, o companheiro de aventuras içou-me à sobrevivência.

Logo depois de me posicionar em pé, dentro do barco, em segurança, inteiramente sóbria ouvi a pergunta e a afirmação que não poderia jamais deixar de sair da boca do amigo:

— VOCE QUER ME MATAR, ANA???????? PRESTA ATENÇÃO!!!!!!!!!!!

Com os olhos estatelados, uma mão em cada joelho, sentadinha na cadeira azul meio acolchoada da barca do retorno para o Rio, de cabeça baixa escutei em silêncio o desfiar de reprimendas. Mas sustentei discreta os olhos cheios de lágrimas e um sorriso horizontal próprio dos indivíduos que sabem que têm com quem contar.

Mais ou menos uma hora depois, chegando ao continente, feitas as pazes com o acaso e o susto, procedemos como manda a canção: levanta, sacode a purpurina e dá a volta por cima!

E tivemos mais um belo Carnaval.

Amigo JV, considere este registro um afetuoso presente pelo seu aniversário, que em 2021 comemoraremos agarrados às nossas boas lembranças de alegorias, adereços, músicas e de felicidade. Perdoe o adiantar do pacote. Como sabes, escrever é maior que eu.

Obrigada por tudo!

Rio de Janeiro pela fé.

Sambemos.

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