Sobre glândulas sebáceas, amnésia e dedicação

24 de junho de 2020

Ana Paula Paiva
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6 min readJun 24, 2020

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Desejoso de encontrar sentido na experiência concreta com o mundo, em meio a mudanças físicas, preocupações, ansiedades e dúvidas de toda sorte, o adolescente passa por essa fase no limiar de graves distúrbios psicológicos. Um dos poderosos desafios entre a puberdade e a maturidade para se descobrir integralmente, entremeado à edificação de amizades e ao contato com novas instituições das mais variadas — desde a escola, passando por cultos religiosos, alcançando festinhas de rock, reggae, axé, entre outros ritmos e facções — , é o choque com a beleza estética no próprio espelho.

Como boa adolescente, eu não julgava o meu reflexo dos mais simétricos e atraentes: pouca estatura e quilos, muita acne no rosto e nas costas. Mamãe observou, na medida em que os anos se passavam velozes, que os medicamentos de uso tópico contra as erupções que teimavam em emergir em minha face não surtiam o efeito pretendido. Mesmo sendo eu bem disciplinada, executando à perfeição a pormenorizada rotina de sabonetes, cremes e gel que os dermatologistas receitavam, mamãe anteviu as marcas que ficariam para sempre em minha epiderme e autoestima se deixasse o rio correr em seu curso natural. Pois sem mais tardar, a genitora arregaçou as mangas e resolveu, em decisão monocrática, radicalizar.

Dona Celina recorreu a uma das melhores especialistas da capital brasileira no ramo da medicina que estuda o revestimento protetor do corpo humano, sua estrutura, funções e relações com as outras doenças do organismo para que prescrevesse à filha de 16 anos o robusto e definitivo Roacutan. Otimista e competente, a médica de pele e cabelos absolutamente perfeitos analisou o caso e nos convenceu que seria seguro tomar o medicamento indicado para o tratamento de formas graves de acne por mais ou menos um ano. A avaliação ocorreria de maneira contínua, com consulta e exames de sangue mensais para checar a função do fígado, os triglicérides, lipídios e enzimas.

Nos primeiros encontros, antes de iniciar a medicação, a doutora alertou que o remédio é contraindicado a mulheres com potencial de engravidar e que a assinatura de um termo de compromisso para tomar o anticoncepcional era obrigatória no meu caso. Virgem de tudo e sem qualquer pretensão de seguir o emancipado exemplo das colegas de escola em arrumar um namoradinho para iniciar a romântica vida sexual, aceitei imediatamente todas as condições da doutora. Embora já tivessem sido expostas todas as informações necessárias para me convencer, a profissional da saúde iluminou novamente o consultório quando disse que o inibidor hormonal de ovulação diminuiria drasticamente as imensas cólicas menstruais que chegaram a me fazer desmaiar uma vez no ano anterior, do lado de fora do badalado restaurante self-service perto da escola.

A partir dali, ignorei todos os preliminares esclarecimentos que se ativeram às contraindicações, às quais minha viçosa estrutura física se agarraria com todas as forças nas semanas seguintes. As dores musculares e nas articulações, a hipersensibilidade na pele e o ressecamento ocular foram pautas das orações diárias, que imploravam a Deus ânimo para aguentar a penúria terapêutica até o final. O tempo passou e eu sofri calada para poupar os ouvidos de mamãe das reclamações diante de um investimento gigantesco para a família em prol da boniteza da filha mais nova. Enfim, no começo do derradeiro terceiro ano do Ensino Médio, com elogios mil da dermatologista à minha obediência imperturbável aos cuidados com a pele naquele período, bem como à motivação contígua e diária de mamãe, me livrei com louvor do Roacutan, do anticoncepcional e das tenebrosas espinhas. Porém minha memória me traía naquele instante de contentamento uma vez que, cumprido o suplício, este tem boas chances de deixar de existir na lembrança.

Alguns dias após jogar no lixo todas as caixinhas e bulas de remédio, sobrevivendo na base de protetor solar e nutrientes de origem animal e vegetal como todo e qualquer ser humano, saí tranquila para mais um dia inteiro de lições no colégio. A lida naquele dia começaria às 7h15 e iria até umas 17h. O almoço, muito provavelmente, seria no restaurante barato da quadra da escola. No entanto, a vida encaixa pessoas realmente formidáveis no caminho de quem deseja prosperar. No alvorecer do ano letivo, iniciei a conquista de uma boa amizade de classe, que culminou em um convite para a segunda grande merenda do dia na casa dela. Rápida no gatilho com relação a assuntos gastronômicos desde a gestação, aceitei prontamente, mas perguntei se, além do valoroso sabor da comida caseira, na residência havia remédio para dores abdominais típicas dos ciclos de fertilidade femininos. Ela assentiu e seguimos de ônibus, em um trajeto de duraria mais ou menos uns 15 minutos de zebrinha e curtíssimas caminhadas.

Até subir na versão diminuta do ônibus circular do Plano Piloto, as dores me permitiam andar a pé. Só que os frutos da enfermidade amadureciam rapidamente e, no momento em que sentei em um dos bancos, próxima ao corredor, a primeira pontada aguda atingiu um dos ovários, irradiando a pena por todo o abdômen e as pernas. Em pânico, agarrei a mão da inocente anfitriã da vindoura refeição, clamando ajuda para descer do coletivo. Lembro bem de suas otimistas palavras ao pé do ouvido:

— Calma, Aninha! Falta só mais um pouquinho pra gente chegar! Lá em casa você deita e te dou remédio. Calma, calma.

— PUTA QUE PARIU EU NÃO TO AGUENTANDO! ME AJUDA PELO AMOR DE DEUS!

Me levantei sufocada e caí de joelhos no afã de sair do ônibus para apanhar um pouco de ar. A recém adquirida parceira de turma disparou correndo atrás de mim para me amparar e descemos juntas, exatamente no ponto da casa dela. Sem energia para me deslocar mais, tombei de lado, embaixo da árvore em frente à Biblioteca Demonstrativa, na 506/507 Sul, e fechei os olhos cheios de lágrimas e terror.

A partir daqui, as memórias são combinações de recortes dos relatos da pobre amiga combinados com pouquíssimos flashes meus da ocasião.

Embaixo da frondosa sombra próxima ao edifício que abriga uma importante coleção pública de livros, eu gritava alto, quase arrancando a mão da colega de colégio na tentativa inútil de transferir um pouco do sofrimento, que ia e vinha em ondas intensas de dor. O movimento chamou bastante atenção dos pacatos transeuntes, no centro de uma cidade em que nada de muito estridente ou indiscreto costuma acontecer nas vias públicas. Nem buzina o brasiliense tem estímulo ou hábito de usar. A maioria que se aproximou daquela estrondosa cena vespertina era de curiosos abestalhados com a adolescente agonizando. Contudo, um arrojado cidadão iria salvar a lavoura.

Um jovem motorista de ambulância, que estava de folga, ergueu-se da massa e se ofereceu para levar as duas garotas para o hospital mais próximo, na condição de que a mocinha sadia ligasse para alguém maior de idade. Enquanto decidia quem ia ser a adulta a gerir o restante da crise, entrei carregada no Pálio Branco do estranho e permaneci deitada no colo da condiscípula. O piloto, por sua vez, percorreu as ruas da cidade planejada em altíssima velocidade, furando os sinais de trânsito e desrespeitando o espaço dos outros desavisados condutores, certamente se sentindo pressionado pelos berros do banco de trás.

Não sei quanto tempo depois, abro os olhos definitivamente. Sem dor, estou deitada de barriga pra cima em uma cama limpa de hospital. No coral de preocupações, mamãe, irmã e a corajosa amiga à minha direita. Era visível a discreta inquietação ao redor, o que me deu a sensação de estar protegida e bem cuidada. O médico dava explicações, as quais eu me esforçava o triplo para entender. Ao fim e ao cabo, faltava um último exame antes da liberação, desta vez de sangue para conferir sei lá o quê. O doutor se aproximou, pegou a minha mão bem delicadamente, carinhoso até — naquela solidariedade masculina que entende clinicamente o que está acontecendo, mas que nunca compreenderá, em sua plenitude, os segredos que traz o corpo de uma mulher. O médico gastou alguns segundos tentando me explicar as razões de pegar uma gota de sangue do meu dedo indicador, por intermédio de um pequeníssimo orifício.

Se em um instante eu estava confiante na prestação do serviço e na sinceridade do afeto daquele homem, no seguinte levantei meio tronco indignada da cama, apesar de exausta, e bradei a decepção com a cortância daquele objeto:

— PORRA! NÃO ERA SÓ UM FURINHO?

Acho que essa foi a primeira risada do dia da minha briosa companheira de uniforme. Perdemos a aula daquela longínqua tarde. Mas ela nunca mais largou minha mão.

Brasília pela fé e gratidão.

Meditemos.

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