Sobre interruptores, rebelião e bem-estar social

28 de novembro de 2020

Ana Paula Paiva
sobre
5 min readNov 28, 2020

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Holanda, início da noite. Enquanto Marcela me explicava, pela milésima vez em quatro anos, as vantagens de se adquirir uma máquina de lavar roupas, aguardávamos a chegada do barco que ia nos deixar no outro lado do rio, onde estava a minha casa temporária em Delft. Como toda embarcação lenta e gigantesca, certamente iria se atrasar e nos deixar papeando mais um pouco após bons drinks primaveris — pensei comigo durante a argumentação impaciente sobre a obrigatoriedade da presença do eletrodoméstico em qualquer residência moderna.

O barco não somente chegou no horário previsto, como descobri ser desnecessário adquirirmos as passagens para adentrarmos. O meio de transporte em questão era fruto de uma promessa não cumprida de campanha eleitoral, uma vez que o governante à época não foi capaz de construir uma ponte naquela rota. Diante daquela informação, vi para crer e compreendi, em plena prática, uma organização política e econômica que posiciona o governo como responsável por promover o bem-estar social da população.

Com todos os pelos do meu moreno corpo brasileiro eriçados, desisti até da teoria que vinha construindo ao longo das férias europeias de que aqueles indivíduos todos ao meu redor não eram da raça humana. Em verdade vos digo, são detentores desde a manjedoura do direito de usufruir dos bens e serviços oferecidos pelo Estado, a partir do princípio de dignidade universal. “Por isso esse povo é ateu, Marcela! Não precisam ter fé em nada”, teologizei aos berros, dedos indicadores em riste, incrédula, lembrando de todas as vezes que estive no encalço de um ônibus destruído na Capital da Esperança ou na Cidade Maravilhosa.

De costas para o entendimento que considera o serviço público um direito do cidadão, o brasileiro transita com dificuldade pelas injustas delimitações que ocorrem dentro do sistema capitalista e separam pessoas de diferentes níveis sociais, provação esta, segundo muitos autores, imposta em grande parte pela exploração e opressão de uma classe dominante sobre uma classe dominada. Esta teoria econômico-social de grande valia e esmiuçada ao longo dos séculos pela academia e gente de classe média frequentadora de bares ruins foi-me aplicada no mundo real logo durante a provocadora infância, espaço da vida individual muito útil para aprendizados duradouros.

Naquele tempo, como irmã mais nova, eu fazia parte do proletariado e participava da máquina capitalista com a principal ferramenta para manter a engrenagem produtiva: minha valorosa força de trabalho. Eu era responsável principalmente por pegar os copos d’água, o cobertor, os biscoitos se estivessem ao meu alcance na cozinha, a toalha, o papel higiênico, além de desligar a televisão sem controle remoto que estanciava no quarto divido com o único membro da burguesia: minha irmã mais velha. Detentora dos meios de produção, era Ju quem poderia me lecionar as regras e praticar os jogos de baralho, dominó e tabuleiro, ajudar nos desafiadores deveres de casa, ler revistas em quadrinhos enquanto predominava o analfabetismo do proletariado, entre outras atividades intelectuais.

Na figura do Estado, por sua vez, mamãe e papai representavam os agentes transformadores, com o monopólio do poder de polícia, e que deveriam garantir educação, saúde, habitação, renda e seguridade social aos cidadãos daquela casa. No entanto, desconheciam a situação exploratória — ou simplesmente lavavam as mãos, não sabemos. Assim, a burguesia mantinha seu poder como classe social dominante, pois isso era o melhor para ela.

Dessa forma, a sociedade seguia em uma paz de papel machê, pois a tensão interna aumentava a cada dia após a iniciação do proletariado ao universo das letras. Com oito anos de idade, eu estava prestes a implantar um novo sistema e a destruir de uma vez por todas as divisões de classe daquela casa. Sem saber que a insurreição estava por vir, Ju bradou deitada preguiçosamente em seu leito de descanso:

— PAULINHAAAAA, VEM CÁÁÁÁÁÁ!

— Pra quê?, respondi em outro cômodo.

— Vem cá, Paulinha… É rapidinho, pra eu te mostrar uma coisa, pediu mansa.

Pezinhos nervosos atravessaram a casa e chegaram ao encontro da irmã mais velha.

— O que é?

— Apaga a luz pra mim.

O desalinhamento dos meus chackras ali foi total. Cumprindo o destino do trabalhador dentro do sistema capitalista, naquele exato momento tomei consciência de classe e alcancei o meu poder naquele aparelho social. Não foi, esclareço, uma meta por mim previamente estipulada, contudo qualquer coisa que necessária e naturalmente aconteceu. A revolução do proletariado ia estourar.

— NÃO APAGO!!!!!!!!!!!

— Credo, Paulinha. O que custa? Você já está aqui…

— NÃO!!! QUE COISA!!!

— Tô pedindo por favor, Paulinha… Apaga a luz…

— VOCÊ SÓ FALOU POR FAVOR AGORA!!!, lágrimas despencavam dramáticas dos meus olhos.

— Não é verdade… Eu preciso falar por favor pra você saber que é por favor?, falou tentando esconder a vontade imensa de rir.

— EU… EU… VOCÊ NÃO VAI ME CONFUNDIR! EU VOU EMBORA DESSA CASA!!!

Apelei. Conquanto ainda um pouco desorientada com a última sentença proferida pela sapiente irmã mais velha, saí de cena decidida a não meter a mão naquele interruptor. Em seguida, a raiva embaraçou-se à culpa de não atender um pedido de quem me ensinava tantas coisas e compartilhava de tantos medos diários, nada fáceis, que somente nós duas sabemos a dimensão. Sem ninguém pedir, a Ju pré-adolescente protegia como podia a pequena parente. Blindava-me da realidade errante por meio de, literalmente, qualquer artifício. E eu, cinco anos mais nova, diminuta e ignorante, somente tinha condições de retribuir com copos d´água e biscoitos.

Me rebelei naquele dia, é verdade. Atualmente acho muita graça do episódio e reconheço que precisei daquele piti para conseguir dar o primeiro passo rumo à tão salutar, embora ainda muito longínqua, independência. Se naquele momento eu consegui limitar a liberdade de atuação da pessoa que eu considerava mais genial, esperta e bonita entre todos os seres humanos existentes, o mundo só poderia ser meu dali para frente. Entretanto, até os dias de hoje, volto a ter um metro e vinte de altura quando ela me abraça perante minhas maiores crises, grandes tropeços e colossais desesperos, falando a frase que mais repetimos uma para outra na vida: “vai passar”.

Eu sempre quis ser ela. Décadas passaram e aqui estou mais um dia sendo só eu mesma, porém com a sorte de ter nascido com melhor irmã do mundo, pela qual acenderia e apagaria dez vezes todas as lâmpadas do mundo. No aniversário de Ju desse ano, que nos deixou tão distantes fisicamente, quero aproveitar para agradecer por tudo, mesmo sabendo que nunca vou conseguir demonstrar o que essa pessoa significa no meu sistema solar, incluindo as maiores estrelas e as menores partículas subatômicas.

Te amo, Ju! Saudades sempre.

Celebremos

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