Sobre peleja, mendicância e fliperama

Ana Paula Paiva
sobre

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23 de setembro de 2021

Há mais ou menos sete anos, abandonei totalmente a vontade de, por meio de jogos eletrônicos, interagir com uma tela de computador e televisão a fim de me desfazer da realidade imediata. Tal hábito de jogar videogame começou a ser adquirido ainda no ventre de mamãe quando ela, terrivelmente cansada de carregar milhares de quilos pra lá e pra cá, sentava-se em posição de índia no sofá, empunhava um pequeno joystick preto retangular e incorporava os objetivos pecuniários, marciais ou alimentícios de personagens pixelizados do Atari, com habilidade e dedicação diretamente proporcionais a da maior parte da alcateia política brasileira em destruir o país desde 1500.

Da infância até parte da vida adulta, os consoles, fitas e CDs obtiveram grande parte do meu tempo e eram enfileirados nas estantes de casa. Quando meus pais adquiriam ou trocavam o computador da residência oficial, eu ia logo caçar os joguinhos disponibilizados de graça por Bill Gates. Em especial, no precedente caso, lembro-me que na qualidade gratuita de entretenimento, o que me mais espairecia nos momentos de solidão e descrença da adolescência era o controle das palhetas do pinball.

Versava-se de um jogo que exigia concentração e me deixava entregue à aleatoriedade dos acontecimentos. A passagem imaginária para o país da maionese era adquirida a cada nova partida e, naquela movimentação voraz entre os obstáculos da máquina, as músicas malcontentes individualizadas em caixinhas ou fones de ouvido compondo a trilha sonora da experiência, eu esquecia um pouco do mundo, que podia se esquecer um pouco de mim.

Abandonado em definitivo o modus operandi da adolescência, ocorre que, recentemente, percebi semelhanças entre a dinâmica do pinball e o perigosíssimo encontro às cegas, bem como a performance da junção episódica de pessoas que se avistaram pela primeira vez em aplicativos de relacionamento. Este último tipo é digno de foco.

Atirando pela janela a imensa maioria de encontros que ocorrem apenas e tão somente para a cópula em dupla ou coletivamente — que aliás, não sejamos moralistas, tem o seu valor social e cultural –, é interessante metaforizar quando falamos de acontecimentos dentro de alguma expectativa de civilidade e de segurança em que duas pessoas, pelo acaso algorítmico, dão match, papeiam por alguns dias e combinam de adentrar no mundo real, preferencialmente em local público e movimentado. Dessa forma, proponho que imagine como se estes estivessem em uma dinâmica de máquina de pinball, ora um como a bolinha e ora o outro como o jogador, em um revezamento incessante.

Do ponto de vista da linguagem corporal, o par está em cena como em diálogo de maneira viva e presente. O medo de ser desinteressante e do fracasso daquele colóquio são os obstáculos aos quais o jogador e a bolinha são violentamente arremessados. Como na correspondente eletrônica, a atividade exige concentração.

Do ponto de vista da conversação, jogador e bolinha são necessariamente personagens alternantes naquela situação. Pulam de um assunto ao outro, como se a bolinha tivesse ricocheteado, e o jogador tenta de todo modo evitar que a esfera de metal caia no espaço existente na parte inferior da área de jogo, falindo o intento. Em meio aos “tilts” do pinball e ao descontrole inerente ao folguedo, ambos se debatem a fugir desesperadamente dos espaços de silêncio, piadas ruins e histórias sem graça, ao mesmo tempo que investigam minunciosamente um ao outro.

Em algumas ocasiões, investi neste tipo de conjuntura não forçada de constrangimento e, muito recentemente, respaldada por uma sequência de perdidos desnecessários tomados por quem era até então considerado candidato a boy-de-fé — por mim e por parte de meu solene círculo de amizades —, internalizei uma específica interjeição-curinga designativa de indignação e desagrado, e recorri aos aplicativos de relacionamento na esperança de lograr êxito. Não tendo angariado a tão valorosa paciência no hiato do último fracasso, papeei por mais ou menos um dia e meio com um exemplar masculino da espécie humana por meio do famigerado Tinder. Ansiosa pela substituição do rapaz, alegrei-me com um convite de comer pastel em um barzinho bacana na Praia do Flamengo, o qual eu ainda não conhecia.

Por volta das 17h, saí do trabalho e me dirigi ao estabelecimento etílico de salto-alto, blusa e calça de linho. Quando desci do carro, um rapaz, encontrava-se lá em uma das mesas de madeira da calçada. Acenou para mim. Naquele enquadramento, somente poderia ser o pretendente, cujo visual era composto por uma barba e cabelos maiores e mais desajustados que os dos retratos digitais disponíveis no perfil no aplicativo. Camiseta com a gola levemente gasta, bermuda verde desbotando e uma pochete de perna arrematavam a carência de elegância do look, apesar de tudo muito limpo. De posse da primeira impressão, caminhei na companhia de Jorge da Capadócia para a batalha daquele fim de tarde, que não tardou a começar.

Enquanto os chopps desciam, o funcionário público confidenciava momentos pandêmicos, opiniões sobre o papel do Estado na sociedade, desafios da profissão de psicólogo, adversidades da monogamia, externando que ele mesmo se encontrava em um relacionamento aberto — nada contra, mas muito cafona . Por outro lado, na ribanceira de pasteis e petiscos deliciosos, o papo e a figura extravagante divertiam, embora não me provocassem desejo sexual. Ou seja, eu controlava as palhetas do pinball com alguma tranquilidade. De repente, ele pergunta à queima-roupa:

— Você fuma?

— Sim. E você?

— Eu não, só que me deu vontade. Me dá um cigarro?

— Não porque hoje eu não trouxe. Não gosto de passar essa vergonha no primeiro date.

— Na moral? Tô com a maior vontade de fumar. Só que a banca de jornal é longe.

— É? Que coisa.

— Quer ir lá comprar?

O carioca é um tipo folgado, mas aquilo era de um ineditismo equivalente à eficiência da máquina pública.

— Véi… Não.

— Certeza?

— Sim.

— Pode crer… Vou pedir ali na mesa do lado.

Ainda meio de cara com a face de lenha do sujeito, cuja fé de ter tentado a sorte daquela forma em um primeiro encontro por conta de míseros cigarros é do porte da de Abraão, observei sentada o movimento do acompanhador da minha noite rumo aos vizinhos de boteco, na tentativa de solicitar cigarro. Todavia, o cabeludo não teve oportunidade nem de iniciar a frase e foi logo repelido com alguma indiferença pelo receptor, que sequer fez contato visual. Nova troada naquele fim de tarde: o cidadão confundiu o jovem que me acompanhava com um morador de rua.

O pleiteante de cigarros insistiu e apontou para trás, para mim. Foram uns poucos e eternos segundos de embaraço sem igual, conquanto surpreendentemente não houvesse grosseria de qualquer das partes. Nesse momento, ouvi a pronúncia de alguns pedidos insistentes de desculpas do que equivocou. Em seguida, ocorreu a entrega não só de um, mas de dois cigarros inteiros. Eu pedia misericórdia a Deus esfregando a mão direita na testa.

Ele retornou, sentou e não tocamos no assunto. Filou os dois cigarros, não lembro se me ofereceu. Com a quantidade de chopp aumentando em nossas goelas, o desejo por mais rolinhos de tabaco veio com força. Outro tiro:

— Tô cheio de vontade de fumar.

— Natural.

— Você tá com vontade também.

— Muito pouca. Em casa tem.

— Não quer mesmo ir lá na banca de jornal?

— Não.

— Você tem dinheiro?

— Tenho.

— E se eu for lá comprar?

— Boto fé.

Cacei cédulas na carteira e entreguei para ele afirmando:

— Lucky Strike verde ou o Dunhill azul.

— Nossa, é ela que escolhe o que a gente vai fumar? Vai nem me perguntar o que eu gosto?

Retornei na lata.

— Ué. Eu que tô dando o dinheiro. O cigarro é meu, concorda?

Depois dessa granada, o rapaz saiu. Terminei minha bebida e fui mandar mensagens para avisar as amigas que ainda estava no compromisso, mas com medo de o homem não voltar e abandonar a conta de quase 300 reais de chopp, tira-gostos e dezenas de massas fritas preparadas com farinha de trigo, estendidas e dobradas em pedaços que recebem recheios salgados. Paranoica, olhava o relógio de dois em dois minutos, ao mesmo tempo em que eu ria da própria minha cara na presença do universo, que sabe ser muito cômico. Ele reapareceu enquanto eu aceitava meu destino.

A tensão foi dissipada por meio da carteira inteira de cigarros, na companhia da qual bebemos mais. O beijo saiu à fórceps, com a falta total de entusiasmo de minha parte mesmo com o nível alcoólico que me levaria presa dez vezes se estivesse ao volante.

Antes da meia noite, parti sozinha. Esperançoso, o moço tentou sair comigo novamente, com o papo de como foi ultrajante o preço da última conta.

Não respondi. Nunca mais.

Rio de Janeiro pela fé.

Oremos.

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